Capitulo 26.1 — Com o passar do tempo

Charlotte

A facção humana, desde a sua fundação, operou com uma hierarquia que jamais havia sido alterada. Apenas uma pessoa, o líder supremo, tinha conhecimento completo sobre os segredos que os humanos ignoravam, aqueles ocultos por trás de mitos e lendas. Divindades, deuses, demônios, fadas — tudo aquilo que habitava o imaginário humano. Um registro antigo e secreto, inacessível a todos, exceto ao líder, continha detalhes de tudo o que havia ocorrido no planeta Terra desde tempos imemoriais.

O planeta Terra, como os humanos o chamavam, era conhecido pelos antigos apenas como “o Planeta Humano”. Para as raças superiores e transcendentes, era um simples lar para a humanidade, um mundo sem muita relevância por muito tempo. Isso se deu devido a um antigo decreto do Deus Supremo, uma ordem que proibia as criaturas sobrenaturais de interagirem diretamente com os humanos. E assim foi durante séculos. A humanidade cresceu e prosperou, ignorando a vastidão e a diversidade de raças que existiam ao seu redor.

No entanto, tudo mudou há muitos anos, quando um simples humano se deparou com um jovem demônio. Um pacto foi selado entre eles, e com isso, o equilíbrio de eras foi alterado. A interação entre humanos e seres sobrenaturais foi permitida, e o direito ao conhecimento foi concedido à raça humana. Foi a partir desse primeiro encontro que, em apenas dois anos, uma facção humana foi fundada, surgindo como uma força para proteger seu povo.

O primeiro líder da facção compreendeu que, embora os humanos tenham agora permissão para interagir com outras raças, isso também abriu portas para novas ameaças. Muitos, entre os seres mais poderosos, tentariam escravizar a humanidade ou explorar suas fraquezas. Para proteger o “Planeta Humano”, o líder distribuído, regras e divisões rigorosas, destina-se a garantir que nenhuma ameaça passe despercebida.

A facção é especificada em torno de uma classificação clara. No topo estava o Líder Supremo, o humano mais poderoso de sua raça, responsável por decidir todos os passos estratégicos da facção, seja em termos de alianças com outras raças ou na defesa de seu próprio povo. Abaixo dele, dividiam-se as forças em dez unidades. O mais importante deles, a Décima Divisão, era composta apenas por prodígios — soldados especiais, poderosos o suficiente para enfrentar ameaças que nenhuma outra divisão poderia combater.

A Décima Divisão tinha um estatuto especial: seus membros eram tão poderosos que o capitão da divisão só recebia ordens diretamente do Líder da Facção. Ninguém mais, nem mesmo os capitães das outras nove divisões, tinha autoridade sobre a Décima Divisão. Quando surgia uma ameaça que exigia a mobilização de todas as divisões juntas, a Décima Divisão era enviada confidencialmente — e lidava com o problema sem dificuldade. Sua força era absoluta.

Contudo, essa divisão, outrara a mais temida e respeitada, havia desaparecido. Com a saída do líder anterior e de seus membros, ela deixou de existir, criando um vazio no sistema de defesa da facção. Mas isso estava prestes a mudar. Um evento havia sido anunciado: a eleição para o novo líder da Décima Divisão estava próxima, e isso reacendia as esperanças daqueles que ansiavam por uma nova era de poder.

Enquanto Charlotte ponderava sobre tudo isso, sua mente vagava pelas memórias de seu passado. Os humanos são realmente fascinantes… pensou. Finalmente, ela começou a entender por que alguém tão querido para ela havia escolhido permanecer tanto tempo naquele planeta. Ele tinha um motivo, um propósito, mas ainda assim, uma ponta de ressentimento persistente em seu coração.

Levantando um pouco a camisa, ela olhou para uma pequena cicatriz em seu corpo. O corte, embora discreto agora, contava uma história de dor profunda. A ferida não doía mais fisicamente, mas o golpe emocional era outra história. Aquele ataque aconteceu no Grande Salão Real, um evento monumental onde estavam reunidos convidados de todas as raças, incluindo até mesmo um deus.

Era para ser uma noite de celebrações, de alianças, mas terminou em tragédia. Charlotte se lembrou claramente daquele momento. O salão foi feito por risos e conversas animadas, quando, de repente, seu mais querido amigo — a pessoa que ela mais admirava — cravou nela sua espada negra. O brilho sombrio daquela lâmina ainda assombrava suas memórias, assim como a dor que atravessou no instante em que o golpe a atingiu, transpassando seu corpo.

A surpresa inicial em seus olhos rapidamente deu lugar ao desespero. O sangue quente escorria de seu ferimento enquanto ela caía, incrédula com o que acabara de acontecer. Não fora uma batalha comum. Não, seu amigo, o homem que ela tanto estimava, havia se voltado contra ela… mas não foi ela o verdadeiro alvo. Antes que Charlotte pudesse reagir, ele já se moveu, sua atenção totalmente focada no deus presente na sala.

Por mais que tentasse entender, aquele momento permanece envolto em mistério. Havia razões mais profundas, segredos que ela ainda não compreendia totalmente. Ela havia sido uma peça em um jogo muito maior do que poderia imaginar, e aquele golpe marcou o início de uma nova fase em sua vida — uma fase de dúvidas, ressentimentos e respostas que ela ainda buscava encontrar.

 Ela desmaiou logo depois, o corpo fragilizado e a mente em choque. Quando acordado, dias se passaram. Perguntas inundaram sua mente, mas nenhuma delas encontrou resposta. Azrael não estava mais lá. Ele foi exilado, desaparecendo sem deixar rastros. Ninguém sabia do seu paradeiro por 200 anos. Duas longas e solitárias centenas de anos.

Então, finalmente, a notícia de seu retorno chegará até ela. Mas havia algo estranho. Azrael, o príncipe herdeiro dos demônios, vivia agora em um planeta proibido, longe de tudo e de todos. A notícia a encheu de raiva e frustração. Por que ele não me veio procurar? Ele sequer se importou? Esses pensamentos martelavam sua mente, mas o demônio nunca apareceu. O reencontro que ela tanto ansiava nunca aconteceu.

Alguns anos mais tarde, Charlotte encontrou uma oportunidade de viajar para o planeta onde estava exilado. Determinada a encontrar respostas, descobriu que o motivo de Azrael não ter retornado não era a princesa Mana, como ela havia pensado inicialmente. O verdadeiro motivo foi enraizado em algo muito mais profundo — um pacto. Entre os demônios, os pactos tinham um valor inigualável, superando até mesmo a própria vida.

Mas havia mais. Não era apenas o pacto que o prendia naquele planeta distante. Havia outra razão, mais misteriosa, que intrigou Charlotte profundamente. Ela olhou para Eriel, sua líder. Eriel era uma garota de aparência delicada e pouca experiência, mas para quem sabia a verdade, ela era algo muito mais especial do que aparentava. Ao observar os movimentos dela, Charlotte não poderia evitar lembrar-se de alguém. Uma pessoa gentil, que ela confiava e que agora estava morta há muito tempo.

Eriel move-se com graça, utilizando sua habilidade de manipulação do tempo. A cada movimento, sua silhueta deixava um rastro translúcido, como uma cópia fantasmagórica de si mesma. Embora habilidosa, havia uma inexperiência evidente em seus gestos. Sua espada branca, que ela manejava com maestria, parecia parte de seu corpo, mas faltava a ela a experiência de combate real. Era uma guerreira talentosa, mas ainda não forjada nas batalhas mais mortais.

Charlotte sabia que o plano, cuidadosamente elaborado pela princesa com a ajuda de Ethan, era extremamente ambicioso. A chave estava em como Eriel reagiria ao descobrir a verdade. Eles estão apostando alto, pensou Charlotte. Azrael, por sua natureza, foi atraído por apostas arriscadas — desafios eram a melhor forma de conquistá-lo. Mas Eriel? Charlotte se perguntava se ela era parecida com aquela pessoa gentil de séculos atrás. Apressar as coisas, especialmente com o casamento iminente de Azrael, poderia destruir o delicado equilíbrio do plano.

Enquanto observava o treinamento, algo chamou sua atenção. “Essa espada…“ Charlotte murmurou para si mesma, estreitando os olhos. Havia algo familiar na arma que Eriel empunhava. Era magnífico, e ao entrar em contato com a mão da jovem, emitia partículas de luz alongadas, semelhante à maneira como Azrael liberava o poder de sua própria espada, Noir, em sua terceira forma.

A terceira forma da espada negra de Azrael permitiu que ele fundisse sua mente e alma com Noir, liberando o poder divino contido na lâmina. Os dois formaram uma ligação tão profunda que o poder de uma deus fluía entre eles, aumentando exponencialmente sua força. Se a espada de Eriel tinha propriedades semelhantes, aquilo significava que sua arma era mortal até mesmo para um deus.

Só me resta esperar.” Pensou Charlotte, sua mente fervilhando com perguntas e suposições. A espada de Eriel tinha um poder oculto, mas como ela ou usaria? E mais importante, qual seria o papel desse jovem e inexperiente líder no futuro que se desenrolaria rapidamente diante de seus olhos?

A tensão estava no ar. O casamento de Azrael se aproximava, os destinos das raças estavam interligados, e o que estava no jogo era muito maior do que qualquer um deles poderia prever. Charlotte sabia que os próximos dias seriam cruciais – e esperava que Eriel estivesse preparado para o que estava por vir.

De acordo com os planos de Ethan, Azrael compareceria como representante dos demônios no evento da facção, uma rara oportunidade de vê-lo antes de seu casamento iminente, quando ele assumiria oficialmente o título de governante supremo dos demônios. Depois disso, eventos como aquele se tornariam impossíveis para o rei, já que suas responsabilidades o manteriam atado ao trono. Charlotte sabia que esta era sua chance — talvez a única — de colocar em prática o plano traçado.

O plano de Ethan era audacioso. Ele acreditava que, se Eriel encontrasse Azrael, algo profundo seria desencadeado. O selo que restringia as memórias de Eriel começaria a enfraquecer, e a verdade, oculta por tanto tempo, viria à tona. Charlotte refletiu sobre isso, considerando o quão delicado era o equilíbrio de forças envolvidas. Dois dias antes do casamento… Esse seria o momento em que ela agiria. Nesse instante, Charlotte acreditava que estaria forte o bastante para quebrar ou selo completamente, permitindo que as memórias de Eriel retornassem. Mas, ao mesmo tempo, colocava nas mãos de Eriel uma escolha crucial — uma escolha que poderia mudar o curso dos acontecimentos.

Apesar de toda a pressão, Charlotte não queria forçar Eriel. Se ela não quiser ver Azrael, tudo bem, pensou. O passado dela será revelado de qualquer forma. Mas Charlotte sabia que, sem o encontro com Azrael, as memórias seladas poderiam permanecer fragmentadas e o poder latente de Eriel, aprisionado para sempre. Era um risco calculado, e Charlotte sentiu que não poderia desperdiçar essa chance.

Para aumentar suas chances, o próximo passo do plano era guiar Eriel até a caverna onde Azrael havia sido aprisionado anos atrás. A caverna, um local envolto por antigos e poderosas magias, era famosa por sua capacidade de enfraquecer todos os que entrassem em seu domínio. Uma magia que permeava o local corroía a força e a resistência dos visitantes, drenando suas energias lentamente. Charlotte sabia que esse era o ponto fraco que poderia explorar. Com a ajuda da magia da caverna, o selo que prendia as memórias de Eriel seria enfraquecido, e esse seria o momento ideal para agir.

“Vou depositar minhas esperanças em você…” sussurrou Charlotte para si mesma, olhando para o vasto horizonte diante dela. Sua mente já estava focada no que estava por vir. Ela sabia que, para Eriel, esse seria um desafio monumental. As memórias seladas continham verdades que poderiam abalá-la profundamente, e encontrar Azrael apenas complicaria ainda mais as coisas. Mas Charlotte acreditava que essa era a única maneira de restaurar Eriel por completo e descobrir o papel que ela desempenharia no destino das raças.

O tempo estava contra elas. O casamento de Azrael estava se aproximando rapidamente, e os eventos que precederam essa união eram fundamentais. Agora, Charlotte precisaria garantir que Eriel estivesse preparado para enfrentar seu passado, ou todo o plano cuidadosamente orquestrado por Ethan seria em vão.