Capítulo 20: Interrogatório
Renato estava ali, sentado sobre o asfalto quente, ofegante, machucado, quase sem forças. Ao redor, havia uma verdadeira zona de guerra, com carros batidos, estilhaços de vidro e metal, e o furgão em chamas. Próximo a ele, o corpo do Mercenário Possuído estava caído com um buraco no peito.
Foi quando viu os soldados se aproximando, cercando-o, empunhando fuzis, mirando-os perigosamente para ele.
Renato, por instinto, tentou se levantar, fugir, lutar, qualquer coisa que suas forças permitissem.
Um dardo o atingiu na coxa antes que pudesse realizar qualquer movimento, e o choque elétrico fez seu corpo tremer. Renato trincou os dentes, segurou o dardo na mão e puxou-o, e o jogou para longe.
— Parado! — gritou um dos soldados. — Deita no chão com as mãos na cabeça!
O rapaz tentou argumentar. Algo como um sorriso misturado a uma careta de raiva surgiu em seu rosto.
— Eu não sou o bandido aqui!
— Deita no chão ou nós vamos derrubá-lo!
Renato suspirou. Olhou para o furgão e se lembrou de Jéssica e Mical. Ele deitou no chão. Alguém, cuja palavra “gentileza” não fazia parte de seu dicionário, pegou seu braço e puxou para trás, e prendeu com duas algemas.
— Uma ambulância! Precisam chamar uma ambulância! Tem duas garotas ali que podem estar feridas!
Alguns dos soldados se acumularam em volta do corpo de Lúkin Ivanov com curiosidade. Outros se dirigiram em direção ao furgão.
Meteram Renato dentro da gaiola de uma viatura. As grades tinham um brilho dourado e vários símbolos entalhados. O vidro traseiro do carro era todo escuro, o que tornava impossível ver do lado de fora e acompanhar o percurso. Ele só sabia que estava em movimento pelo balançar do carro.
Ele também não conseguia ver os ocupantes que guiavam a viatura, mas conseguiam ouvir suas vozes.
— Será que foi esse moleque mesmo quem matou o Mercenário Possuído? — disse o primeiro.
— Não sei. Pra mim não faz muito sentido, mas sabe como são essas aberrações. Não dá pra desconsiderar nada.
— Verdade. Tô curioso pra saber dos resultados dos testes laboratoriais nele.
— É, eu também. Mas eu tô mais curioso pra saber o que vão descobrir com o corpo do Possuído.
— Ei! — gritou Renato —, quem são vocês? Pra onde estão me levando?
— Fica quieto, garoto.
— Tem duas meninas… elas são minhas amigas. Devem estar machucadas.
— Aquelas duas pirralhas? Não se preocupe com elas. Se preocupe mais com você mesmo a partir de agora.
— O que vai acontecer?
— Já mandei ficar quieto.
Renato ficou em silêncio por alguns segundos, até que voltou a falar:
— Eu tenho meus direitos! Preciso saber porque vocês estão me levando e pra onde! Cadê minhas amigas, droga?! O que aconteceu com elas? Elas estão bem? Estão vivas, pelo menos? Me respondam alguma coisa, por favor, caramba!
Um dos homens suspirou.
— García, esse moleque já me encheu o saco. Eu vou apagar ele.
— Vai lá. Eu não tô nem aí.
Renato ouviu o “click” de um botão sendo apertado. Em seguida, sentiu um cheiro estranho, adocicado, e ele foi ficando sonolento. As pálpebras pesavam, e a visão foi ficando embaçada.
— O que… quem são… — Ele apagou antes de conseguir formular uma frase.
*
Renato abriu os olhos de sobressalto, como alguém que desperta de um pesadelo, e se ajeitou na cadeira. Não era uma cadeira confortável. Suas costas doíam e o braço estava dormente. Ele se espreguiçou.
Do outro lado da mesa, um homem o encarava, sentado numa cadeira um pouco melhor. Usava um uniforme militar estranho que era quase todo preto com vários detalhes dourados. Tinha por volta de cinquenta anos, cabelos grisalhos e olhos cinzentos.
Próximo dele, sobre a mesa, havia uma pasta de documentos.
— Bom dia, bela adormecida — disse o homem, que abriu a pasta e começou a ler o conteúdo de algumas páginas. — Ou devo dizer: Renato Yakekan, estudante. Hum, suas notas são bem medianas. Vai reprovar em química, desse jeito, garoto. Deixa eu ver, testemunhou seus pais serem mortos quando tinha apenas cinco anos, heim? Uh, isso deve ter sido traumático. Passou um tempo num lar para crianças, até que foi adotado por um casal de ativistas. Onde eles estão agora, Renato? Tem ideia? Alemanha? Noruega? Ah, não, espera aí, aqui diz que eles desembarcaram em Moscou hoje de manhã.
Renato olhou em volta. Estavam numa salinha que era um cubículo, com uma única lâmpada fluorescente como fonte de iluminação. Com exceção da mesa e as duas cadeiras, não havia mais nenhuma mobília. Numa das paredes existia um grande espelho retangular. Renato já tinha assistido filmes o suficiente para saber que do outro lado havia pessoas assistindo os dois.
— Isso é um interrogatório?
— Bingo! Muito perspicaz da sua parte.
— Isso é sobre os assassinatos que estão acontecendo com os alunos da escola? Porque eu realmente não sei nada a respeito.
O homem franziu o cenho.
— Não. Isso é com o outro departamento.
— Então por que eu tô aqui? Cadê as minhas amigas? O que fizeram com elas?
— Vamos combinar assim: você responde uma pergunta minha e eu respondo uma sua logo em seguida. O que acha?
Renato pensou por um momento.
— Pode confiar em mim — disse o homem. — Eu sou do governo.
Renato deixou um riso baixo escapar dos lábios.
— Alguma coisa engraçada?
— Não, desculpe. Eu só achei fofo você pensar que ser do governo te torna confiável.
— Hum?
— É que isso costuma ter o efeito contrário. Ninguém mais confia muito no governo hoje em dia.
— Uma coisa bem triste, não acha? Confie em mim, então. Você tem algumas perguntas também, não tem?
— Certo — respondeu. — Afinal, parece que não tenho muita escolha, não é?
O homem sorriu.
— Você é mesmo perspicaz. Bom, primeiro deixa eu me apresentar. Eu sou o agente de inteligência Hernandes. Sou responsável por uma equipe do DEPAM e, no momento, te temos sob custódia. Acho que isso esclarece algumas coisas. Então, primeira pergunta: qual sua relação com Lúkin Ivanov.
Renato pensou um pouco. Ele não podia contar tudo, mas tinha a intuição de que se mentisse, seria descoberto.
— Tirando o fato de ele ter machucado pessoas importantes para mim, nenhuma. Eu nem o conhecia há um mês atrás. Minha vez: cadê minhas amigas? Elas estão bem?
— São duas perguntas, Renato. Escolha uma.
— Minhas amigas estão bem?
— Estão vivas. Se vão ficar bem, quem vai dizer é nosso médico. Você faz parte de alguma religião, culto, seita ou grupo de estudos sobre magia, Renato?
— Não. Quando vou poder ver as duas?
— Isso eu não sei. Como conseguiu usar a pena de fênix?
— Isso eu também não sei.
Hernandes sorriu. Renato continuou:
— Tinha duas pessoas que fugiram. Uma garota baixinha e magra, do cabelo preto, e um cara sinistro com cara de quem come whey protein no café da manhã todo dia. Vocês pegaram eles?
Hernandes enrugou a testa.
— Kath e Andrei também estavam lá? Hum, interessante. Bom, não os pegamos.
— Então vocês deixaram os psicopatas fugirem? Parabéns!
— O que você sabe sobre magia?
— Muito pouca coisa. Praticamente nada, na verdade. Nem aqueles truques de mágica com baralho eu consigo fazer. Eu tô sendo acusado por alguma coisa?
— Ah, não. Ainda não. Nós só estamos investigando algumas coisas. Como conseguiu derrotar o Mercenário Possuído?
— Com granadas. Elas são bem úteis, sabia?
— Hum. Entendo. Bom, Renato, foi um prazer falar com você, mas a conversa acabou.
Hernandes levantou e se dirigiu até a porta.
— Ei, espere! O que…?
A porta se fechou e Renato pôde ouvir a chave girando na fechadura.
“Droga!”
Ele esperou. Achou que mais alguém fosse entrar a qualquer momento, fazendo outras perguntas ou talvez esfregando acusações em sua cara. Não aconteceu.
Ficou sentado ali, esperando, por uma hora, até que começou a ficar impaciente. Se levantou e foi até o grande espelho na parede.
— Tem alguém aí me olhando, não tem? — gritou ele. — O que vocês querem comigo?
Não houve resposta.
— Caralho! Vão se foder!
Ele socou o espelho. A única coisa que aconteceu ao espelho foi sua respiração embaça-lo um pouco. Reparou finalmente no quanto estava machucado. Estava sem camisa, então podia ver vários hematomas arroxeados no peito, barriga e ombros. Uma cicatriz de queimadura atravessava seu rosto, da têmpora direita até o queixo. Correu os dedos por ela.
“Foi há tão pouco tempo e parece uma eternidade”.
Sentou-se no cantinho entre duas paredes do cubículo, apoiando as costas numa parede, e abraçou os joelhos. Estava frio.
Pensou em Jéssica e Mical. Hernandes disse que elas estavam vivas. Estariam longe ou perto? Muito machucadas?
Pensou em Clara Lilithu. Ela estava mesmo morta? A ficha ainda não tinha caído. Ele ainda tinha aquela sensação de que ela iria aparecer, detonando as paredes, explodindo o pinto desses agentes desgraçados, para buscá-lo. Dessa vez ele não iria pedir por algo menos drástico. Ele até ajudaria na porradaria.
Ninguém apareceu. Estava sozinho, com frio, triste pela perda, machucado por fora e por dentro.
“Eu não vou deixar eles verem uma lágrima minha sequer!”
Engoliu aquela sensação amarga que tentava subir pela garganta.
Esperou e esperou, o suficiente para contar mil segundos umas quinze vezes. O estômago roncava; o frio ficava mais intenso. Renato chegou a pensar que isso fosse proposital. O ar frio, expelido pelo ar-condicionado no alto da parede, pareceu ficar ainda mais gelado. Era quase como… como se eles quisessem vê-lo sofrer.
“Mas por que fariam isso?”, ele se perguntou em pensamento.
“Para vê-lo explodir”, respondeu uma voz em sua cabeça. “Para ver o que você pode fazer quando fica irritado. Eles querem te levar ao limite para testá-lo”
“Mas… isso não faz sentido. Por que fariam isso comigo?”
“Porque eles não sabem de sua força, mas querem saber. Levar um homem ao limite é a forma mais eficaz de conhecê-lo”.
“Não terão esse gostinho então!”
A voz riu em sua cabeça.
“Seu limite ainda é baixo demais, garoto. Não tem como surpreender essa gente mesmo que você queira.”
“Não importa! Eu tenho mais de um um tipo de força! Mais de um tipo de poder! Esconder aquilo que eu sou também é uma habilidade.”
“Verdade” respondeu a voz, como se achasse tudo aquilo desinteressante.
E continuou ali sozinho. Deitou no chão duro e tentou dormir. Não conseguiu. Notou que uma lágrima tentava sair do olho esquerdo, então ele piscou rapidamente e limpou a lágrima com o dedo. Não iria chorar; não iria implorar; não iria perder a razão. Manteria a mente fria, porque só dessa forma poderia raciocinar com precisão.
Em algum momento a porta se abriu e vários soldados armados entraram e o cercaram.
— Coloca a mão na cabeça! Rapido, porra!
Renato obedeceu.
Alguém jogou um saco preto em sua cabeça. Outro alguém prendeu seus pulsos com algemas, pressionando-o contra o chão.
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