Capítulo 84 - Os Ubyitsy
Após subir a montanha conhecida como eco do mundo, Stedd encontrou peregrinos que muitas vezes subiam a montanha para rezar nos templos suspensos a centenas de metros do chão. Eles estavam bem agasalhados, já que a montanha era um dos lugares mais altos e gelados do continente.
Seus pés estavam afundados até a canela na neve e ele se virou, indo em direção ao uma escadaria de pedra. Cobriu o nariz com um cachecol e ajeitou a alça da mochila no ombro. Subiu as escadas vagarosamente, açoitado pelo vento da nevasca.
Apoiando as duas mãos na porta de madeira, ele a empurrou e as dobradiças rangeram num som estridente. Assim que ele passou pela porta, a fechou num baque. O castelo de pedra estava silencioso. Não se ouvia nada que vinha de fora nem nada lá dentro.
Stedd continuou andando sem muita preocupação. Desceu as escadas e passou pelo hall de entrada virando à esquerda, indo na direção do seu antigo quarto.
Abriu a porta devagar e o encontrou exatamente como o deixou a cinco anos. A cama estava desarrumada, havia brinquedos de madeira no chão, uma estante de livros e um monte de armas brancas penduradas na parede.
Ele jogou a mochila no chão e se sentou na cama, passando a mão sobre o lençol vermelho se recordando da infância. Normalmente sua casa ficava vazia, pois seus irmãos mais velhos estavam sempre em missões de assassinato. Por isso ele costumava passar mais tempo com gêmeos Ylladiana e Yengold, que eram um ano mais velhos que Stedd.
Agachando-se, ele pegou um guerreiro de madeira e depois o jogou de lado.
— Ainda continua barulhento. — disse uma voz na porta.
Stedd ergueu a cabeça, encarando sua irmã mais velha. Quando nem seus pais e nem Wilster não estavam em casa, era ela quem tomava as rédeas da família.
Os cabelos dela eram negros e longos e estavam entrelaçados em uma trança, diferindo bastante do prateado dos seus irmãos. Ela usava uma túnica grossa da cor preta e botas de pele de urso, já que aquele lugar era sempre frio. Os olhos dela eram vermelhos, sua pele pálida e seus lábios grossos.
— Yebella… já faz um tempo.
— Sim, faz. Você cresceu desde a última vez que te vi.
Sorrindo, Stedd fez que sim e se ergueu da cama.
— Eu também estava com saudades.
Yebella abriu os braços e deu um abraço bem apertado no irmão mais novo. Stedd era o caçula, portanto sempre foi o mais mimado, principalmente pelo pai, que sempre fez suas vontades.
Após desvencilhar do irmão, Yebella apertou a bochecha dele e abriu um sorriso gentil.
— Nebora, Malgath e Veny estão em casa, eles vão ficar felizes em ver você.
Stedd ergueu uma das sobrancelhas. Não era nada comum tantos de seus irmãos estarem em casa. Animado, ele seguiu sua irmã para os fundos. Conforme caminhava, Stedd começou a ouvir o barulho de lâminas se chocando e gritos de fúria.
Yebella abriu a porta de madeira dos fundos e chegaram ao enorme quintal. O clima ali era bastante ameno por conta da barreira que protegia o local. A barreira era transparente e dava para ver a intensa nevasca que ainda acontecia do lado de fora.
O barulho era devido a Veny e Malgath que travavam uma luta intensa. Veny tinha o cabelo prateado como os de Stedd, mas seus olhos diferiam dos olhos de seus irmãos. O habitual vermelho dava lugar a um verde vibrante, quase fantasmagórico. Malgath tinha o cabelo preto curto e seus olhos eram vermelhos. A maioria dos membros da família de Stedd eram magrelos e sem quase nenhum tipo de músculo. Até mesmo as mulheres eram magras e donas de um corpo sem muita curva.
Mas haviam dois irmãos que fugiam a essa regra, um deles era Malgath, que era bastante musculoso. A outra era Yebella, que tinha um corpo bem voluptuoso, mesmo por debaixo daquelas roupas grossas.
Veny segurava uma espada longa e esverdeada feita puramente de mana, já Malgath segurava um machado quase do tamanho dele.
Partindo para cima de Veny, Malgath girou o machado e o cingiu na altura da cabeça, descendo com tudo.
[Pancada!]
Veny defendeu disputando forças com Malgath. Sabendo de sua desvantagem, Veny jogou o machado do irmão para o lado e o chutou no tórax. Malgath se arrastou na neve, mas ainda segurava seu machado gigante. Num movimento rápido, Malgath enfiou o machado no chão e com sua força descomunal lançou um montante de neve junto a terra no irmão.
Vush!
Num simples balançar de braços, Veny fez a neve e a terra voltarem contra o irmão. Malgath tentou se defender com o braço, mas ficou sem visão e então, Veny avançou pelo ponto cego do irmão em uma velocidade surpreendente.
Crash!
Ele atravessou a garganta de Malgath com sua espada de mana. Retirou a espada rapidamente e Malgath tocou seu joelho no chão. Soltou seu machado pesado e apoiou a mão na garganta.
Veny deu uma risadinha e colocou a espada no ombro.
— Com essa são 5×5! — bradou Veny orgulhoso de seu feito.
Malgath retirou a mão do pescoço e ele estava curado.
— Que merda! — Esbravejou Malgath — Você continua com esses seus jogos sujos, não aprende nunca?
— Jogos sujos? Foi você quem jogou terra na minha cara, eu só devolvi para você.
— Que se dane, vamos mais uma, usando magia dessa vez!
— Meninos! — Os dois olharam para Yebella na escada e seus olhos foram se concentrar em Stedd.
— Ted! — disseram os dois ao mesmo tempo.
Ambos subiram as escadas rapidamente com semblantes bem alegres. Malgath fez carinho na cabeça de Stedd como sempre fez desde que seu irmão era uma criança. Veny já o abraçou e o ergueu, batendo as mãos no ombro dele.
— Você cresceu! — disse Veny empolgado — Como é a universidade? Como é a capital?
— Ei, ei! — disse Malgath com bastante empolgação — Eu soube de algumas histórias suas. É verdade que falou mal de todos os nobres em uma festa e ameaçou o imperador na frente do parlamento todo?
— Espera aí! — disse Veny com ainda mais empolgação — Soube que entrou em uma guilda, é verdade?
Stedd estava um pouco envergonhado, mas, ao mesmo tempo, estava bastante feliz. Ele admirava seus irmãos mais velhos, e o sentimento parecia ser reciproco. Eles estavam bem contentes falando das realizações de Stedd.
— Por que veio para casa? — perguntou Yebella.
Stedd franziu os lábios.
— Fui expulso da universidade…
Seus irmãos o encararam, mas não disseram nada.
— O que aconteceu? — perguntou Yebella.
— Alguns nobres espancaram uma garota da nossa guilda e eu resolvi ir lá e enfrentá-los. Acabei matando um estudante e aleijei dois que eram parentes de gente importante do império.
Yebella assentiu.
— Suas ações inconsequentes finalmente te alcançaram, não é? Você pelo menos tem sua família agora. — Ela deu um tapinha nas costas de Stedd — Vem, vamos comer. Nebora já deve ter preparado a janta.
Em silêncio, eles entraram e caminharam pelo corredor, chegando a uma cozinha bastante aconchegante. Havia uma fogueira no chão, bem no meio da cozinha. Mesas de madeira a circundavam e orbes emitiam uma luz bem fraca.
Nebora estava vestindo seu avental branco e mexia o caldeirão com uma grande colher de madeira. Ela era a mais baixinha dos irmãos. Seu cabelo era preto e cacheado. Seus olhos eram grandes e avermelhados. Ela era bem magra e seu semblante parecia bem inofensivo.
Assim que parou de mexer no caldeirão, ela encarou os irmãos e arregalou os olhos enormes assim que avistou Stedd. Abrindo um sorriso, largou a colher e correu até o irmão pulando em seus braços.
— Teddizinho! — Ela o soltou, olhou em seus olhos e o abraçou novamente. — Nossa, já faz quanto tempo? Uns cinco anos?
— Por aí…
— Porque não se senta e janta conosco?! — Sugeriu Yebella — Tenho certeza que você tem muita história para contar.
Eles estavam sentados na mesa e Stedd contava com empolgação sobre sua temporada com seus amigos. Seus irmãos prestaram atenção em tudo que era dito e fizeram diversas perguntas.
— Então espera aí — disse Veny mastigando a coxa frita do frango — Você entrou em um grupo com uma fada e uma Asmurg? E a fada ficou humana e começou a namorar um elfo negro que não é um elfo negro?
— Basicamente isso…
— Cara, que inveja! — disse Malgath — Deve ter sido bem divertido. O máximo que consegui foi uma temporada no país de Caliman. Tem só deserto e morte a cada metro quadrado.
— E como acabou a guerra naquele lado? — perguntou Stedd e logo depois bebeu seu vinho.
Malgath terminou de engoliu e arrotou.
— Aquele rei, o tal Tuly, no fim conseguimos o derrotar, mas ele era bem poderoso, deu um pouco de trabalho. Mas segue aquele mesmo padrão de sempre. O povo vê o salvador em um rei que acham que conseguirá trazer a glória a uma nação inteira. Não dou dois anos para que o povo daquele pequeno país volte a ser explorado.
Nebora mastigava calmamente, enquanto o resto dos irmãos devorava os alimentos como animais.
— Pelo que li — ela comentou — Tuly era da casta nobre do clã do deserto. Foi um rei que conseguiu prosperar a incrível capital de Caliman, localizada naquele mar de areia escaldante. É uma pena que ele tenha sido destituído. Sem ele, aquele povo sofrerá bastante.
Malgath assentiu.
— O dinheiro fala mais alto. Se o povo quiser me contratar para matar o novo rei, eu aceito hehe.
— Duvido muito que isso vá acontecer. — disse Yebella olhando para Stedd — Seu amigo, com pele escura, mas não é um elfo, pertence a alguma casta do país de Caliman?
Stedd fez que não enquanto mastigava.
— Colin é de um clã conhecido como Silva. Ele deve ser de alguma tribo mais ao sul do deserto.
— Silva? — Veny indagou — Nunca ouvi falar, deve ser de alguma tribo sem importância daquele deserto miserável.
Yebella bebeu um pouco do vinho e se concentrou no irmão mais novo.
— Papai confiou a princesa da dinastia Song a você, não confiou?
Stedd terminou de mastigar e fez que sim.
— Confiou.
— E por que não a trouxe com você?
— Ela está mais segura com Colin.
— Colin, o que o falso Elfo negro tem de tão especial? — perguntou Veny.
— É o líder da guilda. — Ele respondeu — A namorada dele é uma monarca de duas árvores. Não se preocupem. Fui expulso da universidade, mas isso não significa que eu não posso morar na capital.
— E você vai fazer isso? — perguntou Veny.
— Quem sabe, mas voltarei para ver o grande torneio de guildas.
Os irmãos se entreolharam.
— Talvez você não devesse ir até lá. — alertou Yebella.
Stedd ergueu as sobrancelhas.
— Por que não?
— Só posso dizer que não será seguro.
— Espera, é bem raro de estar todo mundo em casa. O que isso significa? Alguma missão?
Yebella bebeu do vinho mais uma vez.
— Pode se dizer que sim.
— Uma missão que precisa de vocês quatro?
— Wilster e os gêmeos também vão. — disse Veny.
— A família toda? — indagou Stedd.
Veny bateu o copo na mesa.
— Ele merece saber. Já que não pertence mais à universidade, significa que ele pode ajudar a gente.
— Ajudar com o quê? — perguntou Stedd.
Yebella suspirou e coçou a nuca. Bebeu do vinho mais uma vez e seus olhos vermelhos focaram em Stedd.
— A capital sofrerá um ataque, é tudo que posso dizer.
— E vocês foram contratados?
Yebella fez que sim.
— Isso é tudo que posso dizer no momento.
— Quando será atacada? No torneio de guildas?
Os irmãos ficaram em silêncio.
— Pretendem matar o imperador?
Continuaram em silêncio.
— Não posso dizer muito, mas é melhor que pegue Lei Song e se esconda em algum lugar. O continente não será seguro daqui a algum tempo.
— O continente não é seguro agora! — berrou Stedd em fúria. — Por que não podem me contar?
— Wilster e os gêmeos estão sob efeito de uma maldição. Se falarmos demais eles podem acabar morrendo.
Stedd franziu o cenho e bebeu do seu vinho.
— Não iriam me contar, certo?
Yebella fez que não com a cabeça.
— Você sabe das regras que papai impôs sobre os contratos que aceitamos. Se está preocupado com seus amigos, trate de tomar conta deles.
O que deixava Stedd aliviado, era que eles estariam longe de casa pelos próximos seis meses. Assim que estivesse dando o prazo para o torneio, ele retornaria para a capital. O festival de Guildas durava vários dias seguidos. Seria difícil ele fugir com seus amigos durante esse tempo.
Ele não sabia que tipo de ataque seria, nem passava por sua cabeça quem era o contratante. Os serviços de sua família não eram nada baratos, quem os contratou tinha bastante dinheiro. Cada um dos irmãos cobrava um preço de acordo com sua eficiência em missões. Wilster, Yebella e Nebora eram os mais caros.
Wilster era o mais velho e o mais habilidoso dos irmãos. Yebella era um ano mais nova que Wilster, mas se tratando de combate, a força de ambos era bastante pareada. Enquanto Nebora, bem, ela aparentava ser uma garota fraca de feição meiga e sorriso gentil. Sua força e habilidades estavam longe de serem equiparadas aos irmãos, mas ela tinha pacto com a entidade dos mil nomes.
Conseguia mudar de aparência sem muita dificuldade. Podendo ser uma garotinha frágil num momento ou um homem tão robusto quanto Malgath no outro.
— Eu não tenho escolha, vou ficar aqui por um tempo até que as coisas se ajeitem. — disse Stedd depois de um suspiro.
Veny abriu um sorriso.
— Ei, Tedd, vamos lutar, quero ver o quão forte ficou!
— Preciso de um descanso, não dormi desde que saí da capital. — Stedd se levantou — Valeu pela janta, estava uma delícia como sempre.
Nebora abriu um sorriso e assentiu.
A alegria que Stedd sentiu ao encontrar parte de seus irmãos foi imensa. Ele os amava, afinal, eram sua família. O que o preocupava era o tal ataque que poderia acontecer na capital. Ele amava sua família, mas também amava seus amigos que deixou para trás. Mesmo que tivesse passado pouco tempo com eles, ele ainda se importava.
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