Progenitor das Sombras

    Caderno 2 – Os dois lados

    Capítulo 2

    Fogo inundava o chão ao meu redor, a criança em meu colo se segurava forte em meu pescoço, era uma situação difícil. Porém, tudo que eu me perguntava era o motivo de aquelas pessoas, ao invés de atacarem a criatura, estarem me atacando.

    O monstro que nos perseguia era mais rápido que ghouls e demônios. Ghouls matam por diversão, demônios por vontade de matar, mas espreitadores apenas matavam aqueles que olhavam para a jóia em sua testa. Logo, por ter sido a primeira pessoa a olhá-la, essa menina em meu braço seria o alvo. Então, por que eles estavam nos atacando?

    Eu não fazia ideia, mas observava a criatura que avançava sem pensar duas vezes. Garras rápidas, ferozes, rasgavam aleatoriamente o ar na intenção de machucar. Se fosse um ghoul, tentaria acertar minhas pernas e me impedir de correr. Por sorte esse monstro não tinha tal inteligência.

    — Pode fechar os olhos e prender a respiração por um instante? Não precisa se forçar se não conseguir. — Eu falei para a menina, observando seu braço arranhado pelas unhas do cachorro que a algum tempo estava em suas mãos. A muito eu tinha me desfeito daquela criatura, devia estar a salvo pois o joguei na multidão.

    A menina fechou a respiração depois de uma lufada de ar, vendo isso, comecei a me concentrar. Uma energia escura se acumulou em minhas mãos e pernas, senti meu corpo esfriar, ele ficou um pouco mais leve, meu pulo mais alto. Mas era preciso muita concentração para fazer isso enquanto desviava dos golpes do monstro, era difícil, mas eu tinha que conseguir.

    “Caminhada nas sombras…” eu repeti em minha própria mente, tentando manter meu objetivo claro. Desde que consegui essa habilidade, não a usei mais do que cinco vezes. Me lembrar da sensação de estar em outro mundo era importante, do silêncio de lá, eu gostava do silêncio, esse devia ser meu “ponto de apoio”, o motivo de eu querer voltar. Mas senti que a cada instante que passava, mais o corpo da menina tremia por conta da “escuridão”…

    O frio, a solidão, as sombras me acompanhavam há tantos anos que eu já não me importava de ficar sozinho, mas era doloroso demais fazer alguém como ela passar por essa situação. Me virei aos que estavam ao redor, gritei, fazendo algo que nunca achei precisar fazer: — Por que estão assistindo?! Ela vai morrer!! Parem logo essa criatura!! — Eu pedi ajuda, algo que me foi ensinado a nunca fazer, e foi nesse instante que descobri o porquê: no seguinte momento vi um sorriso tendencioso no meio da multidão, não apenas um, mas vários daqueles presentes observavam aquilo como se vissem um macaco fazendo truques em um circo. E junto àquilo, de repente me veio um pensamento:

    “Está falando do gabinete do sorvete? Minha mãe é a dona…” Ela não era uma nobre, e nem eu.

    Eu estava de mãos atadas, eles podiam me atacar e dizer que estavam impedindo o monstro de se aproximar. E se eu soltasse a menina, mesmo aqueles que dormiam nos becos mais sujos da cidade iriam me odiar.

    “Quero matá-los”, pensei controlando a raiva dentro de mim. Eu realmente não podia salvá-la, e foi quando usei minha única opção: obrigar alguém a fazer isso por mim.

    Me jogando no meio da multidão, procurei por aqueles de status mais alto. Aqueles que tinham o brasão de bronze no peito não tinham poder, apenas dinheiro, mas haviam os brasões de ouro, era certeza que esses teriam tanto dinheiro quanto poder.

    A criatura continuou me perseguindo, aqueles ao redor continuaram a tentar me afastar. E foi quando arranjei minha primeira presa, um homem de meia idade, que apenas observava de forma calma a situação; mas sua postura dizia uma única palavra: Leão, ele com certeza era um controlador de fogo, um Vocan.

    No momento que dei indícios de me aproximar, ele entrou em guarda. Era isso, ele percebeu minha intenção, talvez fosse um veterano de guerra. Não importava, desde que ele pudesse usar seu poder.

    Logo percebi os músculos do homem se contraírem, veias enxertadas de magia tomaram seus braços poderosos. Seu pulmão subiu e, junto a uma forte respiração, litros de chamas se espalharam por todo o lugar, consumindo tudo em seu caminho…

    Senti minhas pernas aos poucos se carbonizarem. A criança ainda estava em meus braços, por sorte ela tinha se encolhido ao sentir o calor, além de ser bem pequena. Tentei sair logo de dentro do fogo para que ela não se asfixiasse com a fumaça.

    Saindo das chamas, olhei o brasão de prata no peito do homem antes de me virar para a criatura. Assim como eu, ela também se levantava depois de sofrer queimaduras leves. Mesmo assim, não conseguia tirar aquele gosto amargo da boca. Era repugnante, ele não havia mirado a criatura, mas em mim. Que maldição eu tinha para o mundo todo querer me matar?

    —… eu estou cansado disso, de suportar…

    E sem pensar duas vezes, corri na direção do homem. Ele preparou novamente sua lufada de ar, tentou me atingir, queria me afastar de qualquer jeito; tanto que logo em seguida mirou na criança em minhas mãos. Virando meu corpo, puxei a menina para meu peito, mas ela havia soltado meu pescoço muito facilmente.

    — Merda! — Recebi o golpe com as costas, tendo a parte de trás do meu corpo carbonizada. E a criatura estava a menos de seis metros, se preparando para pular em minha direção.

    Não dava, tinha que fazer algo antes que a besta me alcançasse. Não podia usar as sombras, a menina estava desmaiada, mas se eu usasse o poder da escuridão, era certeza que ela morreria. Corri na direção do homem, tentando prever de forma falha o caminho que suas chamas fariam caso ele as usasse novamente. Ele tentou mais duas vezes me acertar. Mas valeu a pena…

    Chutando a canela direita dele, arrastei seu pé, o fazendo cair de joelhos. Senti o gosto meio amargo de minha boca desaparecer ao impedi-lo de se levantar, segurando seus cabelos meio encaracolados:

    — Fogo… — eu disse, puxando seus cabelos acastanhados. Ele podia ter tentado ativar seu poder ao perceber minha ordem, mas nenhuma chama saiu em direção à criatura.

    Chutando o homem em direção à besta, ele caiu, mas tentou imediatamente se levantar; segurando o pulso direito envolvido em energia.

    Ele devia ter tentado usar seu poder mais uma vez, antes de simplesmente ter as garras do espreitador em seu peito. A besta não parou para ver se ele estava vivo ou morto, o acertou de forma seca, apenas porque ele entrou em seu caminho.

    Se pudesse, eu mesmo estudaria essa criatura. A pedra em seu corpo já nascia junto a ela ou era colocada por alguém? Por que ela só atacava o primeiro que olhasse para a pedra? Além disso, por que caçar humanos? Apesar de ser algo realmente interessante, eu não tinha tempo para isso agora.

    Por algum tempo continuei desviando dos golpes da criatura, mas no fim, eu observava o corpo dela não muito longe, completamente esmagado, não valia um centavo que fosse agora.

    Um guardião havia aparecido, seu nome era Yor, uma mulher entre seus 26 anos. Além de fazer parte da guarda, por causa do poder de controlar as rochas, seu corpo se tornava tão duro quanto uma. Ela recebeu todo o dano da criatura de frente e simplesmente a esmagou com seus próprios pés, coisa que mesmo eu não tentaria…

    — Você tem o direito de permanecer calado. Se confessar o próprio crime talvez tenha sua pena diminuída — ela disse com um tom sério ao colocar algemas em mim. Eram algemas especiais, criadas usando o próprio poder dela. Aliás, eram bem apertadas, tentei forçá-las um pouco e realmente seria difícil quebrá-las. Mas eu não resisti:

    — Eles foram mortos por mim. Se você tivesse me dado mais uns dez minutos, provavelmente muitos outros estariam agora — respondi observando àqueles ao redor, que gravavam sem se preocupar com nada.

    — … eita? — a mulher respondeu em um tom de descrença, parecia não ter entendido. — Se isso for uma confissão… — Por um instante ela parecia ter novamente perdido a linha de raciocínio, e com um semblante estranho, apenas disse que me levaria.

    — É claro que ele não tem medo de ir para a prisão, é o sobrinho do governador.

    —Tenho certeza que ele não ficará mais de dois dias. Ele matou nobres para proteger ratos, tinha que ter pena de morte.

    — Fiquei sabendo que há alguns dias ele chorou no túmulo do inimigo. Ele com certeza é um demônio, estava do lado dos demônios esse tempo todo.

    Nesse mundo sempre houve uma verdade, algo universal: Todo herói precisa de um vilão…

    — Olha lá, ele está sorrindo, é um psicopata. Vocês também ouviram quando ele disse que mataria a criança se não matássemos a criatura?

    — É sério isso? Eu também ouvi algo parecido, mas não tinha certeza até então… nossa… que horror…

    E era uma verdade que não tinha como desviar. Cláudio era o herói, aquele que construía o bem estar de todos, e eu observava aquilo e via o quanto estavam enganados. Todos aqueles olhares, medo, nojo, raiva, eles passaram a odiar. Mas sabe de uma coisa, eu estava rindo.

    O sobrinho do homem mais poderoso deste mundo agora se tornava: “Ezequiel, O Louco”. Esse apelido começou a se espalhar como uma enchente, em questão de minutos já havia se tornado meu novo nome. Mas não pude deixar de sorrir ao dizê-lo isso em minha própria mente.

    — Vamos.

    — Não me toque, apenas diga para onde ir e eu irei. Não vou resistir  — respondi evitando a mão da guardiã.

    Em minha visão, os nobres nunca iriam mudar. E esse pensamento ia se perdurar por bastante tempo, até que eu conhecesse uma mulher…

    De qualquer forma, nesse momento eu não os odiava completamente. Cada vez que aquele nome estranho era repetido entre as pessoas, mais eu sentia que a energia dentro de mim se intensificava. Cada segundo que passava, eu me tornava ainda mais forte.

    Além disso, também houve aquela voz, uma voz amorosa: — … me perdoe meu benzinho, mamãe nunca mais vai ficar longe de você, você nunca mais vai precisar passar por isso de novo, viu? Viu? A partir de agora mamãe vai estar sempre com você… — Eu não vi seu rosto, nem como ela estava cuidando da menina. Mas instantaneamente imaginei ela a abraçando. Aquela criança ainda chorava, estava com frio e com certeza teria um pesadelo essa noite. Mas se fosse uma voz tão gentil como aquela, eu tinha certeza que ela ficaria bem.

    Às vezes também era bom ser o cara mau.


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