Capítulo 33 – Irmão
— Quando será que o céu se tornará novamente azul? Eu quero vê-lo. — Debaixo de uma enorme árvore, um menino sem nome observava as nuvens brancas entre as folhas verdes escuras.
Seus arredores eram cercados por grama e orvalho, como se tivesse acabado de amanhecer. Apesar de aquele clima estar assim a bastante tempo.
Com a cabeça apoiada confortavelmente na raiz da árvore, ele esticou seu corpo e tocou a grama gelada com seus dedos. Sua respiração de paz saiu junto a um sorriso. Sorriso esse que chegava a ser depravado de tão incomum que era.
Como alguém pode viver com tanta felicidade estando tão sozinho?
Mas o garoto não via assim. Tudo era tão verde e vivo nesse lugar que mesmo os lindos bosques dos contos de fadas mal se comparavam. E se dissessem que não existiam fadas nesse lugar, muitos se recusariam a acreditar.
— O que é isso? — O menino perguntou ao sentir algo gelado tocar sua pele.
Folhas caíam despreocupadas, folhas de vidro que sumiam ao toque, que perdiam seu tom de verde logo que deixavam os galhos de sua árvore e desapareciam magicamente com o mínimo dos toques.
Com um tom de mágica o verde do ambiente se tornou cinza e branco, principalmente por causa da neve que caia, mas não inteiramente por causa dela. Um jardim abençoado pelo dedo dos deuses, onde mesmo a neve gelada não era fria e a fome não existia. Não seria esse o lugar perfeito?
Aos poucos o corpo do garoto foi soterrado, como se ele próprio fosse uma raiz daquela árvore. Sua consciência adormeceu.
Naturalmente todo verão tinha seu inverno. E ele dormiu, calmo, sabendo que acordaria pois todo inverno tinha seu fim.
Sendo jogado para fora do líquido turvo, Artéraphos se levantou com certa facilidade. Seu corpo parecia estar sendo rejeitado pelo líquido parecido com petróleo, então mesmo caminhar em cima dele era possível.
— O que é aquele lugar? — Artéraphos perguntou a si mesmo. — Aquela árvore, aquelas folhas, a grama. Ezequiel encontrou aquele lugar antes e aquelas são memórias? É possível existir um lugar assim nesse mundo?
Mesmo tendo muitos anos e conhecido diversos lugares, Artéraphos não tinha certeza de ter encontrado algo parecido. Se ele tivesse encontrado, com certeza se lembraria. Mas não parecia ser esse o caso.
Olhando para os arredores ele percebeu a construção em ruínas. Quase tudo foi engolido pelo líquido escuro e quase todo o líquido já havia evaporado e desaparecido. O que restava era uma pequena poça altamente concentrada próximo a onde ele estava, e agora que reparava, tinha certeza que não estava mais no segundo andar da mansão.
— Meu manto está seguro… e a empregada também parece estar bem. — Olhando para o líquido debaixo de seu pé, um pensamento fez Artéraphos sentir calafrios:
“Esse líquido é pura energia das sombras, não acredito que sobrou apenas isso. Apesar desse mundo estar repleto dessa energia por causa de uma maldição, aquela energia era o suficiente para criar outra. Alguém deve ter a absorvido antes de Ezequiel. Ah… tantas perguntas e nenhuma resposta, isso me deixa incomodado.”
O barulho de bolhas estourando soou pelo lugar. Olhando para trás, Artéraphos percebeu o corpo de Ezequiel sendo jogado como veio ao mundo para fora do líquido escuro. Ele se aproximou e viu a diferença do garoto magro de antes para o de agora. Em sua sincera opinião ainda era feio. Ele nunca gostou da aparência humana, mas estava bem melhor que antes.
— Vai ficar deitado aí? Levante-se — disse Artéraphos ao perceber que o menino não dormia, apenas fingia dormir.
— Só mais cinco minutos.
— Que desagradavel. — Puxando Ezequiel pelo braço, ele o ajudou a se levantar e completou: — Diga-me qual habilidade escolheu para a sua ascensão.
— Do que está falando? Uma habilidade?
— O que?! É natural você receber uma já que usou partes de monstros no processo. Se a adquiriu, vai saber sobre ela. Habilidades são como respirar, fazem parte de você.
Ainda se sentindo meio tonto, Ezequiel sentou-se novamente no chão: — Oportunidade é algo que não deixo passar, eu acho. Não sinto nada de diferente no meu corpo, espera! Sinto algo vindo! — A expectativa tomou o corpo de Artéraphos, tanto que ele se aproximou para observar a nova habilidade do menino.
Afastando as mãos de seu corpo, Ezequiel segurou o ar ao seu redor. Seu corpo enrijeceu e uma expressão feia tomou seu rosto. Ira, Artéraphos não esperava menos daquela pessoa. Se movendo em alta velocidade, o corpo de Ezequiel foi para frente lançando uma densa rajada de ar em linha reta. Artéraphos tentou se afastar, tarde demais. Incrédulo, ele observava o catarro do menino em sua roupa.
— Seu desgraçado! Como ousa!! — ele gritou apertando as mãos, pronto para dar um cascudo na cabeça do menino.
Sem ligar muito para aquilo Ezequiel falou: — Ai que sensação boa. Estava preso dentro de mim, mas quando saiu foi bom demais. Me arranje umas roupas ou vou acabar resfriado.
Como se estivesse recitando um cântico, Artéraphos começou a lançar sílabas soltas ao ar. Nunca um ser das sombras praguejou tanto quanto ele com aqueles resmungos, e muito provavelmente nenhum tinha passado tanta raiva assim em sua vida. Sua voz se acalmou aos poucos: — … não acredito. Nem ferrando, não mesmo. Me nego a aceitar essa vida de cão.
— Temos algo em comum então. — Se levantando, Ezequiel se dirigiu ao portão de saída da mansão, mas logo nos primeiros passos foi impedido por Artéraphos.
— Nem pense em sair daqui.
— Ou o que? — Ezequiel disse cheio de arrogância, e o já sem paciência Artéraphos caminhou de modo firme até o menino. Sua voz soou pesada:
— Não reclame quando alguém quer te ajudar, sente-se. — Saindo imediatamente em direção a sua capa, Artéraphos não disse nenhuma palavra a mais.
Ezequiel esperou de braços cruzados com uma feição de zangado. Apesar de ter achado ruim, ele não saiu do lugar. Nunca houve naquela terra um menino tão dócil quanto aquele.
— Sente-se — Artéraphos repetiu tirando um banco de madeira de seu manto. A empregada estava coberta por vários cobertores e flutuava como mágica não muito longe de sua cabeça, mas ela nem ao menos atraiu a atenção do menino.
— O que vai fazer?… — Logo que Ezequiel terminou sua pergunta um som alto e estridente ecoou pelo lugar fazendo suas orelhas se moverem em agonia.
— O que acha? — perguntou Artéraphos segurando um sino dourado tão pequeno quanto sua mão e um martelinho de prata.
— Horrível — respondeu o menino com um rosto de desconforto.
Movendo o martelinho para perto do sino, Artéraphos o tocou de leve. O tinir do metal soou mais uma vez, continuou, parecia ainda mais alto que antes. Sem conseguir aguentar o som estridente, Ezequiel tampou os próprios ouvidos. Parecia pronto para pular em Artéraphos e fazer o sino parar, quando o próprio Artéraphos o fez.
— Ohoho, isso foi tão ruim assim? — Artéraphos perguntou com uma risada ao ver o olhar bruto no rosto de Ezequiel.
— Deixa eu enfiar mil agulhas em seus tímpanos e bater nelas com um martelo. O que é esse sino? Mesmo tapando os ouvidos consigo ouvi-lo.
— É um item usado para treinar criaturas.
— Nem ferrando — a voz de Ezequiel soou com descrença. — Isso é um sino para cachorro?
— Huhuhu, não aja assim por algo tão pequeno. Vamos continuar o teste… — Guardando o sino em seu manto, Artéraphos retirou alguns papéis em branco e uma lamparina. Sua mão se moveu acendendo a lamparina e fazendo traços coloridos tomarem os papéis. Ele concluiu: — Vamos começar com números, diga-os na sequência que estão nas folhas.
— O primeiro é…
Apesar de não entender o que eram aqueles testes, Ezequiel continuou a fazê-los. Inicialmente ele apenas tinha que reconhecer qual era o número desenhado naquela folha, porém, toda a folha era composta por pequenas formas geométricas. Os números eram construídos através da mudança das cores daquelas formas. Sem muitos problemas Ezequiel finalizou o teste.
Tirando um prato com um pedaço de queijo de dentro de seu manto, Artéraphos se aproximou. Era surpreendente como ele tinha tanta coisa inútil guardada. — Sente fome?
— Um pouco. Para que é isso?
— Para comer, tome. — Cortando o pedaço ao meio, ele entregou uma parte para o menino. — Estou vendo as habilidades que você possui, só isso.
— O que um queijo vai dizer sobre minhas habilidades? — Dando uma fungada no queijo Ezequiel sentiu um cheiro meio amargo, mas não era tão ruim quanto havia pensado. Os dois morderam ao mesmo tempo, como se dividissem o café da manhã. — Explica melhor isso daí.
Enquanto mastigava infinitamente, parecendo comer borracha, Ezequiel tentava estudar a expressão de Artéraphos. Ouvindo o menino, Artéraphos explicou: — Todos os descendentes possuem características especiais. Normalmente elas podem não despertar até que o descendente passe pelo Batismo, mas você já parecia ter traços dessas características antes de se batizar. Você se lembra da comida que a empregada te ofereceu? — Artéraphos se referia a janta que Ezequiel havia comido logo depois de sair da prisão e chegar em casa, antes de ter que enfrentar os vários fragmentos da alma da empregada.
— Acho que sim.
— O queijo está bom?
— É…. é ruim não.
— Que bom, pensei que o gosto teria mudado depois de cem anos. — Um olhar de descrença tomou o rosto de Ezequiel ao ouvir as palavras de Artéraphos. — Não me leve a mal, aquela comida estava lá a mais de uma semana, não percebeu as larvas?
— As vi. — Ezequiel respondeu voltando a mastigar.
— Eu sabia! Você é um louco mesmo. Nenhum humano em sã consciência comeria aquilo.
— Não é um problema para mim que não sou humano. Tudo que consumo pode ser usado em minha regeneração, coisas vivas principalmente. Já tentei ficar dias sem comer e não faz tanta diferença na velocidade que me recupero, mas a dor… essa se torna insuportável.
— Interessante. Já tentou comer um humano? — Um olhar sério tomou o rosto de Ezequiel fazendo Artéraphos mudar rapidamente de assunto. — Por que escolheu um método tão demorado para seu batismo? Juntar tantas partes de criatura… que eu saiba seus irmãos preferem a cultivação…
— Não ouse falar sobre cultivação em minha frente. — A voz cheia de ressentimento do menino interrompeu a de Artéraphos. — Eu nunca usaria um método tão nojento e macabro para conseguir força.
— Eu só quero entender seus motivos…
— Além disso, não me compare àquelas pessoas. Eles não são da minha família. Eu nunca vou aceitar ter o mesmo sangue que aqueles monstros.
Pela expressão de desgosto que Ezequiel mantinha enquanto falava daquelas pessoas, Artéraphos teve certeza que havia algo errado naquilo.
“Aquelas pessoas nunca permitiriam um de seus filhos saírem de seu domínio, o sangue que correm em suas veias é muito precioso. Já tinha imaginado que ele fugiu, mas parece ser pior do que eu pensava.”
— Vamos para o próximo teste — Tirando três bolas de gude de cinco centímetros de seu manto, Artéraphos as mostrou a Ezequiel. — Quando não conseguir vê-la bata o pé no chão.
Artéraphos usou toda sua força para jogar uma das esferas para o céu escuro. Um brilho fraco como uma faísca seguiu os rastros da bolinha marcando o lugar por onde ela passava. Nove segundos depois Ezequiel bateu o pé no chão trazendo incerteza para Artéraphos. Achando ser impossível ele jogou a segunda bolinha.
Cinco segundos, esse foi o tempo até que Ezequiel batesse novamente o pé avisando que perdeu a bolinha de vista. Porém, com a velocidade que a bolinha se movia havia uma diferença enorme de distância entre nove e cinco segundos.
Atirando a última bolinha, Artéraphos se sentiu ainda mais surpreso ao ouvir logo em seguida o pé de Ezequiel bater no chão.
— Vamos parar com isso, meus olhos estão cansados — disse Ezequiel estendendo a mão para Artéraphos. — Me dá um prato de comida.
“Parece que sua visão é inumana até certo ponto. Quanto mais ele usa, menos pode usar. Espera, ele pediu comida? Então também precisa comer quando gasta energia…”
— Eu não tenho um prato de comida, vamos para o último teste.
— Quando eu morrer de fome e for para o inferno, vou ter certeza de te negar um prato de comida.
— Como se você cresse em algo assim. — Tirando três agulhas de seu manto, Artéraphos se aproximou de Ezequiel que imediatamente o pulou para trás ao ver os três itens pontudos. Uma mistura de medo e incapacidade tomou o rosto do menino.
Percebendo o medo dele, Artéraphos guardou as agulhas e tirou uma cimitarra de seu manto. Estranhamente Ezequiel parecia mais calmo na frente de uma espada que de uma agulha.
— Seu braço, vou tentar cortá-lo — disse Artéraphos se aproximando e explicando para que serviam os testes: — Você parece ter algum problema na visão, mal consegue distinguir cores parecidas e por isso não conseguia dizer quais eram os números nas folhas. Além disso, não consegue sentir o gosto e o cheiro das coisas.
A cimitarra cortou para baixo em alta velocidade em direção ao braço de Ezequiel. E como uma haste de metal batendo contra o tatame, a cimitarra simplesmente voltou para trás ao tocar a pele do menino. — É como eu pensei — A voz de Artéraphos soou novamente ao perceber uma pequena marca de corte na pele do garoto, mas nada profundo. — Você pode realmente não ter absorvido a habilidade das criaturas, mas a força contida em cada item foi usada para melhorar seu corpo.
— Isso é bom o suficiente.
— Não é — Artéraphos retrucou. — Pelo que entendi sua visão tem uma capacidade incomum, mas isso é limitado ao tempo de uso. Seus ouvidos são tão bons quanto os de um cão, mas é apenas isso. Essas duas habilidades são de rastreadores e inútil em combate de verdade. No momento que sua força não puder ser usada em combate, principalmente contra feitiços de qual tipo que seja, sinto dizer que você vai ser morto.
— “Eu espero que seja verdade…”
Apesar de ter ouvido os sussurros de Ezequiel, Artéraphos o ignorou. Morte era um conceito diferente para aquelas duas pessoas. Enquanto um tinha a real capacidade de morrer e se tornar parte do nada, o outro retornaria dos mortos e de alguma forma continuaria sua árdua jornada.
— O item que te ofereci quando o encontrei, o coração. Você irá buscá-lo? Meus sentidos de Udnark dizem ser um item necessário em sua jornada. Eu o pegarei para você desde que queira, assim poderei pagar pelo menos um pouco da minha dívida.
— É apenas um item qualquer — Ezequiel disse sem se importar. — Se algum dia eu precisar desse item, eu vou tê-lo. Se ele está como parte do meu destino, algum dia eu vou encontrá-lo. Você não precisa ir buscar, eu não gosto disso, de sentir que meu destino está sendo escrito por outra pessoa.
— …
Sem mais nada para dizer, Artéraphos estendeu sua mão para o lado e abriu um portal. Ezequiel perguntou: — Você vai voltar para o Mundo das Sombras?
— Pretendo.
— E se eu te pedisse para encontrar uma pessoa?
— Como um Udnark eu posso buscar itens e objetos, mas não pessoas. — Se levantando, Ezequiel se aproximou de Artéraphos.
— Não precisa procurar por ele, mas, se encontrá-lo, por favor, traga-o até mim.
— Hmm… — Maldita curiosidade que tomava a mente de Artéraphos nesse momento. Se não fosse necessário procurar, só podia significar que essa pessoa estava no mundo das sombras. Mas… — Quem é? — Sem aguentar, ele perguntou. Porém, a resposta veio como um martelo batendo em sua cabeça.
— Seu irmão, o primeiro Udnark.
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