Ao mesmo tempo que aquele era um dia agitado para outros, não era para Ezequiel que agora saia de uma padaria mais ao centro da cidade.

    Em seu lado uma mulher o acompanhava de perto. Seus cabelos acinzentados chamavam atenção daqueles ao redor, muitos a admiravam pela sua pura e jovem aparência.

    — Está bom? —perguntou Ezequiel se referindo a duas roscas caramelizadas que a moça segurava. A primeira estava mordida, a segunda pela metade.

    Ele estava um pouco surpreso. A alguns instantes ele entregou o lanche a moça enquanto pagava por tudo, mas logo que tentou pegar de volta recebeu apenas a metade de uma rosca já comida. Ele até tentou pegar a que estava inteira mas no desespero a mulher mordeu um pedaço. E como se não bastasse ela ainda fingiu espirrar, simulando estar gripada.

    Ele não ousaria comer algo que lhe deixasse com gripe? Certo? Errado, ele realmente não se importava com essas coisas mas no fim ele acabou comprando mais uma rosca doce para si. Não por nojo, mas já que ela desejava tanto aquilo o que mais ele poderia fazer além de lhe dar?

    — Doce — disse a mulher com a bochecha rechonchuda, como um esquilo se empanturrando de nozes.

    — Doce, né? — Vendo o prazer da mulher ao comer, Ezequiel abocanhou um pedaço com bastante caramelo.

    Diferente dela que parecia adorar o gosto excessivo de açúcar, ele sentiu um certo amargor subir por sua garganta. — Acho que é a coisa mais doce que já provei — disse ele engolindo a massa seca. Parecia que mesmo sua forma de sentir os gostos era diferente das pessoas comuns.

    Haviam bastantes lojas na area onde eles estavam, principalmente mercados e padarias. Agora que havia conseguido comida Ezequiel pensava qual seria seu proximo passo, e logo uma comossão chamou sua atenção do outro lado da rua.

    Sendo chutado para fora de um estabelecimento um homem de roupas finas chingava em voz alta um homem de corpo massivo enquanto cambaleava: — Seus ratos, malditos ratos! Tenho dinheiro para comprar esse estabelecimento!

    O homem massivo falou suspirante: — É melhor você esquecer de voltar aqui.

    — Vou te denunciar! — gritou o nobre. No momento que disse essas palavras ele correu para realmente chamar um guarda. Porém, tirando uma cadeira de algum lugar o homem massivo correu até o de roupas finas a toda velocidade gritando:

    — Então vou te ajudar a esquecer!

    — Maluco! Socorro!!

    A cadeira acertou em cheia a cabeça dele e foi partida em duas. Não teve outra, ele caiu duro. Conferindo o pescoço do homem caído o de corpo massivo se certificou de que ele ainda estava vivo e, acenando com a cabeça, ele riu tirando a poeira das mãos:

    — Hahahaha, mais um trabalho bem feito — disse ele — e como não matei ninguém, não devo ter problemas com os guardas.

    Saindo de volta para o estabelecimento o homem massivo passou pela porta de madeira despreocupado.

    “Toca do Leite”. Olhando para o banner da loja onde aquela pessoa havia entrado, Ezequiel leu o nome peculiar do lugar. Uma loja um tanto simples, muito diferente das outras naquela cidade, mas havia o interessado.

    Segurando a mão da mulher de cabelos prateados ele a levou para dentro do lugar. O som do tilintar de um sino logo soou avisando sua entrada para os outros no lugar.

    O silêncio permaneceu por algum tempo entre as pessoas, todas olhavam para quem entrava. Mas como se nunca tivesse parado a algazarra aos poucos retornou enchendo o ambiente de risadas e conversas fiadas.

    Ezequiel puxou a mão da mulher e, aproximando-se do balcão, o barman o recebeu com um comprimento comum, era o homem de corpo massivo: — Vai querer um leite meu jovem? Temos de todo o tipo.

    — Que tipos? — perguntou Ezequiel percebendo o homem guardando uma garrafa de vidro em baixo do balcão. Agora que parava para reparar esse barman não era alguém comum. Além de ter um corpo descomunalmente forte ele era caolho e careca.

    A cicatriz em seu olho provavelmente havia sido feita por alguma criatura poderosa, quanto a sua cabeça quase completamente lisa… essa devia ser apenas uma das coincidências do destino.

    — Temos de todo o tipo, depende apenas do que você deseja tomar meu jovem. Leite de anjo, monstro ou demônio. Temos de tudo. — Um sorriso incomum se abriu no rosto do barman que imediatamente completou em uma linguagem estrangeira: — Só não temos o da vaca da sua mãe.

    Risadas ecoaram pelo salão de todos os lados. E apesar de não ligar tanto para aquilo, Ezequiel se sentia incomodado com a piada de mal gosto.

    — Então todos seus clientes são tratados assim? — Ezequiel perguntou falando na mesma lingua que o barman. Imediatamente o rosto do homem mudou, porém, antes que pudesse dizer algo mais um pedaço de rosca caramelizada voou em sua direção, o acertando em cheio na cabeça.

    Presa a sua testa, o pedaço minúsculo de rosca caramelizada de repente cai sob uma garrafa que estava em sua mão. Seu rosto se tornou turvo.

    Batendo o fundo da garrafa contra o balcão ele gritou com a mulher que acompanhava Ezequiel: — Acha que vai se safar dessa depois de fazer isso?!

    Os olhos tomados por fúria da mulher enfrentaram os do barman. Teria sido realmente algo interessante de se ver se ela não estivesse escondida nas costas de Ezequiel.

    — Chega, — disse o menino já incomodado com as mãos da mulher — vim pensando que beberia algo, mas parece que não quer me servir.

    — Acha que tem algo para alguém da sua idade aqui? — O barman riu. — Saiam antes que eu vá ai garoto, não gosto da ideia de bater em crianças.

    O lugar que agora a pouco era banhado em vozes se calou. Os presentes observavam a situação fissurados pela novidade.

    Pegando a garrafa que havia colocado no balcão pela boca, o barman rodeou o balcão em busca de Ezequiel. Alguns riram ao ver aquilo, como se estivessem maratonando uma serie de comedia. Mas ao invés de fugir dali Ezequiel permaneceu firme até o ultimo instante. E quando o homem estava a um passo de distancia dele, o menino caminhou para frente o enfrentando.

    A garrafa voou em direção a Ezequiel junto ao vulto de todos os clientes se levantando em temor. Todos tentaram impedir o caolho, ninguém pensava que uma brincadeira chegaria tão longe. Ele estava louco? 

    — Paraí…!! Ué?!… — Um dos gritos de medo de repente se tornou uma pergunta cheia de estranheza.

    A espuma subiu pelo liquido branco no copo de vidro. Entregando o copo quase cheio ao menino, o caolho completou: — Para a moça vou dar algo mais fraco. Sentem-se no balcão.

     — O que está acontecendo? — Alguém de repente pergunta sem entender nada. E apesar de outros tentem a mesma duvida, os mais observadores que nem ao menos se levantaram para impedir o caolho continuaram a observar quietamente.

    — Eu gosto do seu jeito garoto — disse o barman abrindo outra garrafa. Um som de “poc” ecoou pelo estabelecimento ainda silencioso. Colocando o liquido em um copo para a moça de cabelos prateados ele deixou a garrafa de lado por um instante e completou: — eu também era assim a até alguns anos.

    Apontando para o proprio olho cego o barman pegou uma terceira garrafa e jogou para um outro cliente que estava com mão levantada.

    — Arigathanks — O cliente agradeceu, se levantando e saindo logo em seguida.

    — Ele não pagou — afirmou Ezequiel. 

    — Os que estão saindo da cidade não precisam pagar. Vai entender quando chegar na sua época. Você tem quanto anos? Quinze? Dezesseis? — Olhando para a mulher sentada ao lado de Ezequiel o barman a estudou por um instante. Apesar da bebida estar na sua frente ela não bebia, apenas sentia o perfume do conteúdo no copo. — Se tiver dezesseis não vai faltar muito para você descobrir, o recrutamento nessa cidade aumentou muito desde a invasão.

    — Pode tomar — disse Ezequiel para a mulher ainda desconfiada da bebida, ele também tomou um gole para mostrar não ter problema. Confiando em sua palavra ela pegou o copo e tomou, um sorriso se abriu em seu rosto ao sentir o gosto adocicado. — Tenho quatorze, fiz a uns dezenove dias.

    — Quatorze? — Com um semblante de incógnita o barman estudou Ezequiel de cima a baixo. Apesar de seu corpo ser um pouco magro, pela sua aparecia era difícil associa-lo a um jovem de quatorze anos.

    Isso agora depois de todo o processo do batismo. Se ele o encontrasse a algumas horas com certeza se sentiria surpreendido. — E quanto a essa moça? — o barman perguntou — Ela é muito jovem para ser sua mãe e você parece muito jovem para ter uma filha. É sua namorada?

    Olhando para a mulher de cabelos prateados Ezequiel a observou tomar todo o conteúdo do copo em apenas um gole. Mesmo antes de todos os acontecimentos das ultimas semanas essa mulher sempre teve uma aparência jovem, apesar de ser bem mais velha que Ezequiel. Porém, agora era como se ela fosse uma jovem em seus dezenove anos.

    Ignorando a pergunta do barman, Ezequiel bebeu mais uma golada e finalizou seu copo. — O que é isso? — ele perguntou.

    — É vida — o barman respondeu.

    Colocando o copo no balcão, Ezequiel disse: — Não tem gosto.

    — Esse não tem, se tivesse você estaria morto. Cada tipo de “leite” tem seu proprio método de refino e todos possuem características únicas.

    — Características?

    — Você deve estar se sentindo cheio agora. — Percebendo que o barman não estava errado Ezequiel acenou com a cabeça em concordância. — Esse ajuda com o crescimento corporal, é especialmente feito para os jovens.

    — Mas isso é feito de que?

    — Leite é feito de leite garoto, não precisa saber nossos métodos. — O som de “poc” ecoou pelo estabelecimento chamando a atenção de todos. Olhando para o lado o barman viu a mulher de cabelos prateados abrindo uma garrafa que provavelmente deveria estar de baixo do balcão.

    Olhando para a garrafa que ela segurava ele percebeu ser a mesma que tinha deixado de lado a não muito tempo, mas não havia nada em seu interior. Ela bebeu tudo.

    Um semblante de raiva tomou o semblante do homem. Ele não gritou, na verdade parecia realmente se esforçar para não expulsar aquela mulher e Ezequiel de lá na hora: — Cortesia… — disse ele respirando profundamente e pegando a garrafa da mão da mulher que imediatamente fez cara feia ao ter sua bebida roubada — vamos dizer que foi cortesia da casa.

    — Eu posso pagar, dinheiro não é um problema. — Ezequiel afirmou, mas o homem negou com a cabeça ao ouvir essas palavras.

    — Não aceitamos o dinheiro desvalorizado dessa cidade. — O barman suspirou guardando a garrafa. — Essa pode ser a melhor cidade para se viver atualmente. Vocês tem varios tipos de comida e um grande conforto tecnológico, mas isso não é o suficiente nesse mundo. Você conhece os Nodes?

    — Nodes? — Ezequiel repetiu.

    — Sim, Nodes. Muitos chamam de Nós, como se fossem nós em uma corda.

    — Não conheço.

    — Nodes, ou Nós, sãos moedas. A garrafa que ela bebeu custava dois Nós.

    — Só isso? — Ezequiel perguntou achando estranho.

    — Parece pouco mas em conversão é muito. Não se preocupe isso agora, você não precisa. De qualquer forma, você não é mais bem vindo aqui. — Colocando um pouco de leite para si o barman bebeu um gole.

    — Você está me expulsando assim do nada? — Ezequiel perguntou um tanto curioso. Ele não estava com raiva por ter sido expulso, na verdade, parecia bem mais interessado por não existir uma razão aparente.

    — Não gostamos dos cidadãos dessa cidade, não gostamos dessa cidade. E está fora de questão ir para outro continente.

    — Por que?

    — Tem acontecido muita coisa lá fora garoto. Não foi só o Jardim da Deusa Anciã que apareceu por essa área, varias criaturas tem feito o inferno expandindo seus territórios. Parece que algo mudou nesse mundo, algo que as deixou irritadas.

    — Jardim da Deusa Anciã? — Sem saber do que se tratava, Ezequiel repetiu as palavras do barman.

    — Arr… é por isso que odeio as pessoas dessa cidade. Vocês não tem estudo algum sobre o mundo lá fora, não é? Mas deve reconhecer se eu disser Berçário de Equidna.

    Se lembrando da criatura monstruosa que Cláudio havia derrubado com apenas alguns golpes, Ezequiel afirmou e perguntou: — Vocês vieram de fora da cidade? São Vagantes?

    — Esse nome é desconhecido entre nós. — Olhando para os outros presentes no estabelecimento o barman concluiu: — Todos temos ou tivemos um lar, seja em uma casa, tenda ou de baixo de uma ponte. Varios aqui não tem familia, e outros podem não sentir falta do Gorô, o rapaz que a pouco saiu quando lhe joguei uma garrafa. Mas todos sabemos que ele tinha seus motivos para ir lá fora. Não existe isso de Vagantes, somos aventureiros garoto. Mesmo tendo condições de morar aqui, temos nossos objetivos, decidimos por nós mesmos não ficar nesse lugar.

    — E isso aí rapaz — disse alguém que estava sentado não muito longe dali.

    Olhando na direção de onde a voz vinha Ezequiel percebeu um homem de vestes escuras e longas. Não era um velho, parecia estar entre seus trinta anos, mas sua expressão era bem cansada. O mais peculiar daquela pessoa era seu chapel cinza estilo cowboy do velho oeste.

    O homem de chapéu completou: — É por isso que vou querer mais uma garrafa.

    — Vá se ferrar! — gritou o barman com um rosto sombrio. — Só vai ganhar outra garrafa quando sair dessa cidade!

    — Mas eu vou sair. — O homem de chapéu respondeu calmamente. — Algum dia.

    — Seu maltrapilho desgraçado…

    Indo até as prateleiras atrás de si o barman tirou três garrafas de bebidas e as colocou no chão. Enfiando sua mão dentro da abertura ele puxou mais duas garrafas do tamanho das três que a pouco estavam ali, mas ao invés de entregá-las ao homem de chapéu, ele também as colocou no chão.

    Enfiando pela ultima vez sua mão dentro do buraco ele puxou uma garrafa quadrangular completamente diferentes das que estavam a mostra na prateleira. Além de maior ela parecia bem mais antiga. — Se eu te entregar essa garrafa não quero ver sua cara aqui por dois anos. Você vai sair dessa cidade agora.

    Dando de ombros o homem de chapel respondeu: — Tá tá, não sei para que tanta algazarra por uma garrafa. — Se aproximando do balcão ele esticou sua mão na tentativa de pegar o item, mas quando estava prestes a tocar o vidro o barman o puxou para perto de si.

    — Você não vai ganhar mais nenhuma garrafa esse ano — o barman disse cheio de seriedade.

    Colocando a mão no peito o homem de chapéu tossiu em atuação: — Mas estou tão machucado. Meu peito está apodrecendo e essas garrafas são minha única cura.

    Estalando a língua o barman chamado Guru jogou para cima a garrafa descuidadamente. O homem de chapéu pulou, até engoliu em seco ao ver o item voar sem controle em sua direção.

    — C-como pode ser tão descuidado com minha vida?! — ele disse abraçando a garrafa.

    — Se não fosse por sua ajuda eu nunca te entregaria uma garrafa sequer.

    Dando de ombros o homem de chapéu bateu sua mão nas costas de Ezequiel: — Não ligue para o que ele diz, rapaz. Guru é uma boa pessoa, e você é bem vindo aqui quando quiser.

    — O nome dele é Guru? — perguntou Ezequiel.

    — Feio, não é? — ele respondeu sorrindo.

    — Feio é o seu cu! — gritou Guru.

    Ignorando completamente o caolho, o homem de chapéu concluiu dando uma batida nas costas de Ezequiel enquanto sorria: — Não se preocupe quanto aos Nodes rapaz, qualquer dia desses garoto pegue uma bebida em meu nome.

    — Pague-me o que me deve antes de dizer uma merda dessa!! — gritou Guru já completamente vermelho de raiva. O homem de chapéu riu, parecia realmente estar se divertindo daquela situação.

    Ezequiel que observava o desenrolar da conversa também sorria. Ele pensava: aquelas pessoas podiam ser rigidas – considerando que grande parte deles eram cheios de músculos. Porém, também tinham algum senso de companheirismo. Não pareciam estar apenas brigando, era como uma familia. Uma grande familia.

    “Eu gosto disso, essa sensação…”, o menino pensou observando o desenrolar.

    — E você rapaz, nós gostamos de pessoas destemidas. E você conhece nossa lingua, não parece um habitante dessa cidade. Você veio lá de fora? Ou já teve algum contato com o mundo lá? — Ezequiel considerou a pergunta por um instante e negou com a cabeça. — Você quer conhecer? Se quiser pode vir comigo da próxima vez daqui a dois anos, quando completar dezesseis.

    — O que tem de bom lá fora? — Ezequiel perguntou, mas não bastou muito tempo para que todos os presentes levantassem suas vozes e respondessem ao mesmo tempo:

    — Fome e frio.

    — Mijo!

    — Morte!

    — Demônios!

    E logo que a palavra demônios foi citada, varias vozes se seguiram:

    — Gostosas!

    — Demônios gostosas.

    — Parem com isso! — gritou Guru. — Não escute esses tolos garoto, muitos já perderam a vontade de viver mas continuam vivendo pelos prazeres da carne. Diga a ele Kashi.

    Tirando algo de dentro de seu manto o homem de chapéu o colocou sobre o balcão ao lado de Ezequiel. Era uma folha antiga e amarelada, parecia ter sido usada por muitos anos. Estava enrolada em si mesma e em seu centro havia um velho barbante a mantendo enrolada. O homem de chapéu conhecido como Kashi completou em um tom de risada:

    — Dê uma olhada nisso rapaz, talvez fique interessado em sair depois de olhar. Se planejar sair algum dia considere entrar para meu time. Isso é, se eu estiver vivo até lá. — Pondo uma moeda tão grande quanto um olho em cima do balcão, ele finalizou se dirigindo a Guru: — Obrigado pela bebida amigo. Não vou poder pagar por todas, mas isso cobre algumas.

    — Ei ei ei, você vai mesmo sair agora? — Guru perguntou um pouco espantado ao ver Kashi pagando, essa era a primeira vez em anos que ele recebia dinheiro daquela pessoa. Kashi riu alto percebendo a estranheza de seu amigo.

    — Você viu isso Guru, esse rapaz nem se moveu enquanto a garrafa viajava em sua direção — ele disse olhando para Ezequiel. — Não acha ridiculo eu me esconder enquanto uma criança dessas te enfrenta?

    — Estamos falando de coisas diferentes.

    O som de “poc” ecoou interrompendo Guru, era Kashi que abria a garrafa e tomava direto da boca.

    — Ahh, minha garganta queima sempre que tomo um desses. — Virando-se para trás Kashi bateu uma terceira vez nas costas de Ezequiel enquanto sorria. — Espero te ver de novo rapaz, me procure quando tiver dezesseis.

    — Espera aí Kashi! — disse Guru aumentando seu tom. Ezequiel respondeu com um sorriso no rosto:

    — Tente sobreviver até eu ter essa idade.

    Kashi sorriu com as palavras do menino. Virando novamente a garrafa para cima ele deu mais uma golada na bebida e completou: — Hoje é um bom dia, eu estou feliz — disse ele tampando o recipiente enquanto se dirigia a saída.

    — EI KASHI!! — gritou Guru — Saia por essa porta se quiser morrer!

    — …

    — …

    Tampando o recipiente, Kashi disse em um tom soturno — É como você disse Guru, muitos não se importam com nossas vidas mas nós temos nossos motivos. Mesmo todos dizendo que ‘ela’ está morta, Gorô ainda sai para buscar sua irmã. Você acha que ela está viva naquele inferno?

    — Tsc!  — Apesar de querer dizer alguma coisa Guru apenas conseguiu estalar sua língua em descontentamento. Sua expressão demonstrava sua aflição com aquela pergunta. Kashi concluiu:

    — É isso, o trabalho de nós mais velhos é impedir que os mais jovens morram. Além disso, eu não posso morrer. Há um jovem que em dois anos irá me procurar.

    Virando-se para Ezequiel Guru o observou com incerteza. Ezequiel finalizou: — Isso é uma promessa.

    — Isso é uma promessa. — Kashi repetiu em um tom mais baixo, havia um sorriso em seu rosto. — Viu Guru, não precisa se preocupar comigo. Homens sempre cumprem suas palavras, e isso é uma promessa. Agora, apenas aquele que me criou pode me tirar desse mundo.

    — AHH!! FAÇA O QUE QUISER! Você não gosta de despedidas, não é?! Então vá logo!

    Com um ultimo sorriso Kashi caminhou para fora do estabelecimento. O sino tocou avisando sua saída.

    — Tome garoto, beba de uma vez pois esse é amargo. — disse Guru colocando no balcão um copo pela metade com um liquido esverdeado.

    — E quanto ao…

    Como se já soubesse o que Ezequiel estava pensando, Guru logo o interrompeu: — Não precisa pagar, o dinheiro que Kashi meu deu foi mais que o suficiente. Apenas beba e vá embora. 

    — Certo. — Assim que bebeu do copo Ezequiel sentiu uma pontada de amargor em sua garganta, mas nada que incomodasse inteiramente.

    Colocando o copo vazio no balcão ele segurou a mão da mulher de cabelos prateados que a algum tempo o observava. E a chamando, ele desceu do banco em que estava sentado.

    — Você pode voltar aqui quando quiser — disse Guru de costas para Ezequiel, ele guardava as garrafas que havia tirado do lugar. — O leite é feitos de essências, é bom para jovens em desenvolvimento. Pode trazer sua namorada também, não ha problema. Você deve crescer forte para que possa encontrá-lo.

    — Certo, eu vou voltar. — Puxando a mulher em direção a saída do estabelecimento Ezequiel observou uma folha fixa próxima a porta. Apesar de estar andando relativamente rápido ele conseguiu ler o conteúdo em sua mente: “Torneio estudantil para avaliação e recrutamento. Três prêmios misteriosos para os três primeiros lugares.”

    E embora não possuísse nenhuma intenção de participar daquilo ele realmente desejava descobrir quais eram os prêmios para os primeiros lugares. Será que era algo que ele precisava? Não não não, ele nem ao menos tinha um cadastro no colegio, como iria participar?

    — Ele estava tremendo quando saiu, não estava? — Ezequiel perguntou a mulher de cabelos prateados, lembrando-se de quando Kashi saia. Ela não respondeu, mas prestou atenção em suas palavras. Ele continuou: — Não era só ele, todos estavam com medo de sair. Aquele que saiu primeiro, Gorô. Gorô, Kashi e Guru, eles parecem se conhecer bastante.

    — Feliz — disse a mulher de cabelos prateados se aproximando de Ezequiel com um sorriso. Ela tocou seu rosto, mas especificamente seus lábios e bochechas que se moldavam pela felicidade.

    — Sim — Ezequiel respondeu rindo meio incrédulo — eu estou mesmo feliz. Quero que ele sobreviva.

    Junto a mulher de cabelos prateados Ezequiel continuou sua caminhada pelo centro da cidade. Eles não estavam andando aleatoriamente, pela direção que iam estavam caminhando para os grandes portões centrais.

    Mas uma coisa Ezequiel não percebeu. Seu corpo estava quase completamente coberto pelas roupas que Artéraphos havia lhe dado, e por baixo dela, a faixa que ele ganhou como presente. Esse foi o motivo de nenhum dos toques de Kashi o afetar, porém, seu rosto não estava coberto.

    Sem perceber ele permitiu que aquela mulher, que já o afetava emocionalmente, o tocasse em sua face. Mas ele não se importava, afinal, a felicidade que ele sentia por ter alguém ao seu lado era maior que seu medo tocá-la.

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