Aos poucos, o velho Renji mudava o vilarejo.

    Era uma das figuras mais antigas presentes ali. Um marinheiro aposentado que havia se instalado na vila mesmo antes da tomada do Clã Sanghun. Era um dos poucos que o respeito que possuía não derivava de sua riqueza e do sangue. Ele havia conquistado aquela posição com a força de suas mãos.

    Anos de viagem pela Bruma Congelada não lhe renderam os espólios que as canções prometiam. Recebeu, no entanto, todas as cicatrizes que se poderia cantar sobre e muitas mais. 

    Jiten chegou no momento em que um casal saía da casa. O marido abraçava a esposa, envolvendo-a com um manto de veludo. A mulher se vestia em pele nobre de zibelina e um véu de seda sobre a cabeça. Ambos nem mesmo repararam no pastor de ovelhas, mas ele viu neles a tristeza que carregavam como uma bola de aço atrelada ao peito.

    — Mais um? — Indagou o rapaz quando entrou na casa. 

    — Estes perderam a filha pequena. Não tinha mais que oito anos, a pobrezinha. — o velho Renji respondeu, cutucando o fogo com uma vara de metal. 

    As chamas se fortaleceram. Seu crepitar deixava a casa mais aconchegante, a madeira em seu interior projetava sombras pelo teto como uma pintura simbólica. As janelas estavam fechadas, mesmo sendo ainda cedo no dia e os feixes de luz que entravam pareciam invasores, dissonante da coloração alaranjada das chamas. 

    — Não pareciam lavradores. Por que deixaram uma criança sozinha na mata? — O rapaz deixou o embrulho com comida na mesa. O tecido que o envolvia parecia bem mais velho do que quando ele havia recebido. — A viúva Chiharu me pediu para entregar isto. 

    O velho apenas deu uma olhada breve para trás. 

    — A menina saiu para buscar flores para a veneração do lorde. 

    — Como sempre. 

    — Como sempre. — repetiu o velho, agora cabisbaixo. 

    Jiten fechou a porta, trancando-a com uma trava de madeira. O barulho foi alto, fez Renji se voltar para ele. 

    Estava com ele desde os seis anos. Ambos aguardaram o retorno de seu pai por muito tempo, até que desistissem. Demorou para que Jiten aceitasse que estava sozinho. Que naquele mundo não lhe restara mais ninguém para proteger. Ninguém para protegê-lo.

    Renji o acolheu em uma casa de boa qualidade. Mesmo que o homem não fosse rico, tinha um lugar decente para viver e alguns animais dos quais ele cuidava nos fundos de sua casa.

    Ainda era um marinheiro quando Jiten foi morar com ele, mas abandonou a vida no mar depois de perder sua perna para um cachorro-tubarão. Suspeitava, mesmo assim, que o velho tinha decidido parar apenas por causa dele. 

    Um marinheiro como Renji teria prazer de morrer no mar. Muito melhor seria para ele do que viver em uma cidade daquela como um inválido. Navegando, poderia colocar um pedaço de metal ou madeira no lugar da perna, permaneceria comandando um navio até que algum acidente ou batalha marítima o levasse para as profundezas. 

    — Você se envolveu em confusão com os guardas novamente? — o velho falou e se recostou em sua cadeira tecida em cânhamo. Ela rangeu sob o peso do corpo dele como um som de insatisfação.  

    Jiten pegou uma bacia de água límpida. Enxergou o reflexo de seu rosto trêmulo na água. Lembrava-se do medo que sentiu e da forma como aceitou o deboche dos guardas. Parecia-lhe que a própria vida era uma desonra. A água se tornou vermelha enquanto limpava o lábio cortado com um pano úmido.

    — Eles iam matar um homem. Desviei a atenção deles para mim. 

    Houve um momento de pesado silêncio. Uma repreensão não dita pairava sobre o jovem. Ao mesmo tempo, havia um feito de altruísmo que não podia se gabar. Não era como se ele tivesse ajudado ou salvado aquele homem.

    Tão cedo o deixaram partir, deveriam ter retornado ao roubar dos bens e da dignidade daquela família. 

    — Não é bom atrair a atenção negativa deles para você. — O velho alisou a barba, mais um conselho de ancião que emitia. — Um dia você terá sua oportunidade de sair desse vilarejo. Vai poder fazer alguma coisa da sua vida além de cuidar de ovelhas. Não sei. É bom evitar morrer antes da hora. 

    Não respondeu. Emitiu uma exclamação de dor ao passar um bálsamo de ervas no lábio. Renji se preocupava com ele, mas Jiten sabia que o velho fazia o mesmo. Ele tinha um acordo com o lorde. Sanghun queria uma frota velozes e fortes para comandar o Rio Arqueado. Queria desafiar a hegemonia da Cidade de Halki e ganhar força sobre seus vizinhos do Clã Kinyuki. 

    O velho marinheiro era valioso para o lorde. Por isso, Renji se valia disso para angariar apoio da população. Ele e os outros trabalhadores do estaleiro conversavam e organizavam as pessoas. Elas lhes contavam suas angústias e Renji as transmitia ao lorde. Mesmo que nem sempre fosse ouvido, vez ou outra, o senhor via a necessidade de acalmar os camponeses. 

    Nos últimos anos, Renji havia conseguido reunir os aldeões na Mansão Comum duas vezes. Um feito impressionante, considerando que o lorde havia proibido essas reuniões. Renji argumentava que era a tradição do vilarejo e de outras tribos nortenhas. 

    Jiten caminhou até um ponto sob a mesa central da casa e removeu algumas tábuas do chão. Ele tirou de debaixo do piso um embrulho grande e em seguida outro menor e mais alongado. 

    — Quer estudar agora? — Renji pareceu surpreso, projetando-se para frente. 

    No embrulho grande o velho guardava alguns manuscritos antigos. Eram livros com ensinamentos dos kumokais, os guerreiros das tribos do norte. A maioria dos manuscritos compunham poses de meditação ou esgrima, poemas e longos textos religiosos. Ensinavam sobre uma prática considerada apenas uma popularização vulgar do Daiken pelos filósofos da capital: o Shanguö. 

    Os textos antigos falavam sobre um estado meditativo tão profundo que permitiam tornar o corpo em uma existência absoluta. O kumokai teria controle sobre sua fisiologia, dominando tudo em uma área ao seu redor. Seus ossos se tornavam mais densos, músculos mais fortes e desenvolviam percepções sensoriais muito acima do comum.

    Aquela prática era tão complexa que poderia levar um homem à loucura. Os filósofos consideravam as promessas excessivas, seus resultados difíceis de se comprovar e todo Shanguo como uma corruptela da Razão Daiken, por desprezar as dimensões ideais do ser.

    — Tenho que progredir na Postura do Urso. — ele disse, desembrulhando um dos manuscritos. Abriu-o sobre a mesa e procurou a sequência de movimentos.

    — Você foca demais na força, Jiten. Queria que aprendesse logo a da Raposa. — protestou o velho, mas o pupilo já parecia ocupado na primeira leitura.

    Um suspiro e se ergueu com dificuldade sobre a poltrona. O velho se projetou para a lareira e tomou a espada embainhada sobre ela. Arremessou-a em seguida para o jovem que a pegou sem desviar seus olhos do texto. Renji notou que ele movia os lábios para ler.

    — Você ainda é ignorante como um urso mesmo. Não aprendeu a ler de boca fechada.

    O jovem tentou esconder o sorriso.

    Pelas duas horas que se seguiram, ambos praticaram a filosofia. Jiten movia-se pelo espaço reduzido do interior da casa, movendo os pés e o torso, projetando a espada para o alto e para frente, em movimentos fortes e controlados. 

    A Lâmina do Urso era um estilo agressivo, voltado para rasgar de cima a baixo um oponente. Ele exigia que os músculos fossem retesados em momentos precisos para extrair uma força quase sobre-humana com controle preciso. O pastor de ovelhas praticava, atingindo o ar como seu rival, enquanto em sua mente povoava por vezes as imagens de adversários. 

    Quase sempre não focava em alguém específico. Renji o havia ensinado que jamais deveria direcionar sua raiva contra um objeto verdadeiro. O velho sempre falava sobre nunca focar objeto algum. Ele dizia que o movimento era o movimento e nada mais. Naquele dia, no entanto, Jiten imaginava o capitão Nazer no fio de sua espada. Imaginava como seria estraçalhar a máscara do leão da montanha e revelar o rosto do monstro que detrás do poder do senhorio se escondia. 

    Por mais de uma vez perdeu o fôlego. Mais de uma vez errou os movimentos. O ex-marinheiro em sua poltrona emitia apenas um estalar da língua sempre que ele errava. Muitas vezes, emitia o estalo antes mesmo do movimento ter sido completado. Parecia tão perfeitamente atento aos erros que poderia se dizer que a única coisa nele que não envelheceu foi a visão. 

    — Chega por hoje. — o velho exclamou e esticou as costas como se ele mesmo estivesse cansado. 

    Os cabelos de Jiten estavam grudados na testa. As pálpebras coçavam pelo suor e seu rosto ruborizado. Só agora sentia como a espada estava pesada, mesmo que estreita e fina fosse a lâmina. A súbita interrupção lhe tirara de um estado de foco e o jogara novamente para a casa de seu mestre. Apesar disso, fechou os olhos com força e voltou a posição que estava.  

    — Eu posso continuar. — protestou o jovem.

    — Não. Não com a mente desta forma. Está desperdiçando o tempo. Melhor que vá alimentar as galinhas. — O velho voltou sua atenção para o fogo, alisando a própria barba. 

    Jiten apertou com força a empunhadura da espada. 

    — Mais uma sequência. — Apesar de seu corpo expressar raiva contida, suas palavras foram de súplica. 

    O velho voltou seus olhos para ele. Jiten então enxergou o olhar de marinheiro de seu mestre. Um brilho ameaçador, refletindo o fogo de uma chama que se apagava, mas ainda queimava em brasa. Sobre aquele brilho se projetava a penumbra de uma vida regada a sangue e água salgada. 

    — Não irei treinar um assassino.

    As palavras acertaram Jiten como uma flecha gélida. Sua reação foi emitir um riso de espanto e choque. Ele olhou ao redor. Não havia mais ninguém ali a quem ele pudesse atribuir às palavras de seu mestre.

    — Não sou assassino. — exclamou apontando para o próprio peito.

    — É só nisso que você pensa. Sempre quer matar alguém diferente. 

    Sentado em sua poltrona, o velho parecia mais distante do que nunca. Jiten não sentia que falava com seu amigo, mas recebia um julgamento injusto de alguém que o tinha por estranho. Mesmo assim, acabou se defrontando de uma verdade.

    Tudo que pensara na última hora era fatiar e mutilar Nazer e seus homens. Tinha sido pego em seus próprios pensamentos.

    Diante de seu mestre, sabia não poder vencer uma argumentação como aquela. O homem sabia demais, muito mais do que ele. Era exatamente por isso que ele era aquele que ensinava. Além disso, havia o respeito aos mais velhos. Sentiu a raiva daqueles que são flagrados e nada podem fazer para se safar da justiça.

    Embainhou a espada. Seus olhos pousaram sobre o embrulho mais comprido que tirou do esconderijo. Ainda estava envolto no mesmo pano de linho, agora tão envelhecido que começava a esfarelar. Os cordões estavam escuros e sujos de pó. Mesmo assim, ainda sabia o que estava ali dentro, amarrado e envolto em seda.

    — Mestre… — Jiten se sentou em um dos bancos e finalmente se permitiu ofegar o tanto quanto precisava para conquistar seu fôlego natural. — O que é… — Inspirou fundo. — O que é o unmeiko?

    Um momento de silêncio se projetou sobre ele como um manto frio. Apenas o crepitar das chamas e os sons dos burros sendo arrastados pela rua podiam ser ouvidos. 

    — Me diga, mestre. — insistiu.

    — Uma lenda. O tipo de história que se conta aos jovens para fazê-los navegar para longe, para matar a quem se ordena e para roubar tudo o que puderem. 

    Não era bem a resposta que Jiten esperava. Não sabia se aquela era a opinião verdadeira do velho, mas parecia ser lúcida o suficiente. Era a versão madura de uma história que se conta às crianças. A versão daqueles que esperaram a salvação, mas encontraram o monótono movimento do tempo.

    — Não acha que isso pode existir? Quero dizer… as lendas não têm algum fundo de verdade?

    O velho suspirou cansado. Projetou o corpo para frente e com uma expressão de dor se apoiou em uma muleta para se levantar.

    — O que <i>eu</i> acho é que isso não importa. Ninguém pode fazer nada sozinho. — As palavras do velho saíram entre seus dentes, enquanto ele forçava a muleta para baixo. — Inclusive eu. Me ajude aqui.

    O rapaz se levantou em um sobressalto para sustentar as costas do velho para que ele conseguisse se erguer. Segurando-o pelas axilas, o velho logo conseguiu se colocar em uma posição ereta. A perna saudável tremeu por alguns momentos antes de ele se estabilizar.

    — Vou cobrar a nova prótese do ferreiro. Já faz duas semanas desde que pedi…

    — Garoto. — O tom do velho foi de comando e a atenção do rapaz se voltou diretamente para ele.

    Não tinha mais os olhos sombrios como os viu antes. Estavam mais cansados do que nunca, envoltos em uma moldura de rugas e pálpebras pesadas. Suas sobrancelhas arqueadas para cima. Seu mestre lhe pareceu tão frágil.

    — Você é um bom menino. Sempre foi. — As palavras tremeram nos lábios do velho. — Não foi culpa sua. 

    Então, o mundo virou poeira. Os ossos de Jiten congelaram. Era como se alguém lhe tivesse arrancado o coração com um único golpe. Sentiu-se profundamente indefeso. 

    Ele nunca havia contado a ninguém o que acontecera naquele dia. A morte de sua mãe e de seu irmão nas mãos daquelas criaturas pavorosas. Ninguém nunca acreditaria nele. Nem mesmo ele acreditava. Monstros como aquele não podiam existir. Eram fabricação da mente de uma criança imobilizada pelo medo. Era como a lembrança de um pesadelo antigo. Aquilo nunca tinha acontecido, mas mesmo assim, Renji parecia saber. 

    Não, ele não sabia. 

    Não era possível que soubesse. Era uma dedução. O velho sabia que ele havia perdido a família e sabia que como toda criança, em algum grau ele se culpava pelo que aconteceu. Só que Renji não sabia a extensão daquela culpa.

    Não sabia como Jiten ficou parado e assistiu ao massacre. O velho não o viu correr, com as calças urinadas, em direção à floresta enquanto tampava as orelhas para parar de ouvir o som. Tudo nele havia fugido. Tudo. 

    Corpo e espírito de um covarde.

    — Eu… 

    Ensaiou dizer alguma coisa. Tinha que dizer algo. Não lhe surgiu nada inteligente, nenhuma saída para desviar o assunto para outro lado. Voltara no tempo e se era uma vez mais o menino quieto de seis anos, observando o mundo complexo dos adultos.

    Não tinha as respostas, só motivos para perguntar.

    — A culpa… a culpa é um veneno. Ela…

    Jiten se afastou e deu as costas para o velho. 

    — Estamos quase no crepúsculo. Preciso levar a ovelha ao Lorde Sanghun. 

    E partiu, sem aceitar ser mudado. 

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