Memórias de Jiten

    O sorriso de Wulan era difícil de esquecer.

    Ela tinha um jeito gentil, uma forma contagiante de direcionar o que sentia para os outros. Era como uma impressão, uma marca de felicidade independente do ambiente ao redor. Era quase como olhar para o brilho que provém de uma janela. Não é o suficiente para cegar, mas o leva em direção ao sol.

    Jiten não havia acumulado ou tentando sustentar memórias de sua infância. Não aquelas que se seguiram a dor de sua perda. Ele as havia enterrado e as deixado em algum lugar distante de sua consciência. Não era como se ainda pudesse mante-las longe de seus sonhos. Motivo pelo qual, elas nunca eram apagadas completamente. Demorou anos para parar de reviver em pesadelo aquilo que perdera acordado.

    Havia uma memória, no entanto, profundamente especial, apesar da dor que provocou. Era especial porque diferente das muitas outras memórias, não haviam sido marcadas à ferro em sua mente sob o calor do sofrimento. Nela se segurava uma espécie de moldura, como em uma pintura preciosa, servia para contar uma história e não para oprimir a mente do jovem.

    O sorriso de Wulan era âncora que Jiten usava para acessar esta memória. Semicerrou os olhos e se deixou lembrar.

    Depois que sua mãe e seu irmão morreram, Jiten vagou pela floresta até ser encontrado por alguém. Nunca pensou naquilo como sorte, mas olhava para aquele momento com alguma gratidão. Quem o encontrou foi o pai de Wulan, um homem chamado Khanh que era conhecido no vilarejo como o Homem Verde. 

    O Homem Verde era confundido com um espírito da floresta. Isto o fazia viver relativamente tranquilo e isolado do restante das pessoas. Jiten ouvira algumas histórias dele, muitas o retratando como um homem perigoso e fora da lei, que se alojara na floresta porque se recusava a aceitar o domínio do imperador.

    Até onde Jiten sabia, nenhuma pessoa boa podia se recusar a aceitar o domínio do imperador.

    Mesmo assim, quando seu pai partiu para a guerra e sua mãe partiu daquele mundo, quando ele o encontrou na floresta, Khanh não o raptou como diziam nas histórias. Na verdade, o homem o levou para o seio de sua família. 

    Khanh era por si só uma figura magra, a barba com uma marca grisalha como uma mancha cinzenta. Seus olhos eram castanhos escuros como madeira de carvalho e sempre pareciam atentos. Jiten se lembrava daquele olhar, a forma como inspecionava profundamente, mas se lembrava principalmente da piedade desenhada neles.

    Vestia linho cru e áspero, mas sobre o tecido rústico um manto de pele de animais que Jiten se lembrava de ser macio ao toque. Foi carregado nas costas, enquanto olhava para as árvores que passavam.

    Tudo era mais sonho que lembrança. Algumas das vezes, podia jurar que sua mãe surgia entre os troncos para lhe acudir. Algumas vezes, seu irmão aparecia a beira da trilha brincando com bonecos de palha trançada. 

    Quase sempre a lembrança era turva e a visão capturada por olhos cansados, vermelhos e inundados de lágrimas. 

    Jiten se lembrava do cheiro de ervas que eram esfregadas em seu corpo enquanto era banhado. À beira do riacho, uma mão de mulher lhe acariciava os cabelos como um filho. Ele sabia que não era sua mãe e por isso a água se misturava com suas lágrimas. 

    Ao seu redor, a fuligem foi aos poucos se dissolvendo e foi levada pelo rio para margens distantes. Sentia o ardor nos arranhões que haviam em sua perna, braços e palmas das mãos. A pasta de sabão que a mulher usava ela tratava de esfregar com mais intensidade nas zonas feridas.

    Aquela era a esposa de Khanh, uma mulher de longos cabelos loiros e encaracolados. Os habitantes do vilarejo chamavam-na Bjarka, mas Jiten demorou um tanto mais até que descobrisse este nome. Ela era uma figura ainda mais enigmática do que o próprio Khanh. Na casa dela, chamavam-na apenas de mãe, mas ele se recusou a entregar a qualquer outra mulher este título. 

    Ela o olhava não com o amor de uma mãe, mas com a piedade de uma e isso era, talvez, mais do que o garoto poderia esperar de qualquer outra pessoa. 

    Khanh e Bjarka o receberam em uma cabana simples em uma clareira. Em suas memórias ela parecia muito grande, uma arquitetura diferente de qualquer outra que ele veria em seu vilarejo. Havia o emprego de um material das paredes que não era uniforme, tal qual como cresceria um tronco de árvore e o teto coberto por uma malha de vegetação fazia a casa parecer mais parte da floresta do que uma obra humana. 

    Lá dentro havia Wulan. Lembrava do sorriso dela quando viu seu pai atravessar a porta. Um sorriso banguela iluminado por um feixe de luz solar, aberto de maneira tão generosa que fazia os olhos da menina se fecharem. Era felicidade pura na forma do rosto de uma criança. 

    O sorriso dela foi seguido por um olhar confuso, quando viu um menino sendo carregado nas costas do pai. Jiten não pudera sorrir para ela de volta, pois se sentia preso em uma espécie de torpor. Apenas seguia o que o casal lhe dizia para fazer. 

    Entre muitos cochichos, perguntas e acordos, Jiten aos poucos começou a entender quem era e o porquê de estar ali. Os dias seguintes se passaram com ele compartilhando da comida e das conversas da família. Abria sua boca apenas para pedir as coisas mais básicas e mesmo assim engasgava nestas poucas palavras.

    Naqueles poucos dias, as horas se arrastavam. O outono soprava ventos fortes e faziam as folhas voarem ao redor da cabana. Jiten parecia muitas vezes hipnotizado pelo movimento delas. Estava tão profundamente presente, mas, ao mesmo tempo, forçadamente distante. O tempo era como um grilhão que no intuito de lhe puxar adiante, rasgava sua pele. 

    Wulan estava lá. Uma figura quase espectral naquela cabana. Sempre que ela o via, apesar de estar cabisbaixo, ela sorria para animá-lo. Por diversas vezes, ela se aproximou e tentou iniciar alguma conversa, poucas vezes o menino correspondeu, mas ele a escutava falar sobre suas pequenices de criança pequena. 

    Jiten tinha se tornado alguma coisa diferente. Era uma criança, mas ao mesmo tempo se sentia completamente desconectado do que era Wulan. Estava desconectado do que ele mesmo foi nos últimos anos.  Entre os dois, havia um abismo escuro que não podia ser traduzido em nenhum sentimento. 

    As feridas estavam abertas e ele sangrava profusamente por dentro. Ainda assim, cada um dos atos de Wulan mais tarde foram interpretados como uma espécie de luminosidade em meio a uma sombra. Olhar para ela era saber aquilo que foi e o que poderia ser, mas não conseguia invejar. 

    Ser arrancado do mundo destruído e transportado para o meio da floresta foi como ver uma ferida cauterizar. A pele derreter em uma nova ferida tão agressiva quanto a primeira, que doeria para sempre, mas que não sangraria. Não iria mais matá-lo. 

    Olhar para Wulan o fazia se sentir seguro. Ali, uma criança podia ser feliz. 

    Apesar disso, não significava que a guerra estivesse longe.

    No final da tarde do terceiro dia, um som de carroça perturbou o silêncio da clareira. Para Jiten aquilo foi como um balde de água jogado sobre sua cabeça. Uma lembrança de como era o mundo além daquele lugar isolado. 

    O menino se precipitou para a janela e ficou olhando a carroça se aproximar por entre um vão de uma das janelas. 

    Cavalos cansados traziam a carroça por uma trilha improvisada. Dois homens na frente abriram o caminho com facões, enquanto um outro, idoso, guiava os cavalos. Os dois homens eram altos, vestindo roupas grossas, um com um manto cinza até a cabeça e outro com um manto de cor de madeira escura. O idoso parecia ser quem dava ordens. 

    Jiten se lembrou da mãe de todos os monstros. Pensou que ela poderia ter chegado a ele uma vez mais. Sua respiração ficou ofegante. Seus pensamentos começaram a repassar a visão que teve do assassinato de sua família. O homem mascarado e seus lacaios sombrios. A lâmina que rasgava a carne sem despejar sangue. O olhar carmesim brilhante como um incêndio descontrolado. 

    Uma mão pousou sobre a cabeça de Jiten e ele se assustou. Notou então ser Bjarka que o olhava com um rosto consternado, como se pudesse ver alguma coisa muito triste nele. A mulher apenas o envolveu com os braços, cobrindo-lhe com um manto de linho e o apertou.

    Jiten sentiu o calor do corpo dela e o cheiro de ervas que ela emanava. Sua respiração voltou ao normal e ambos começaram a espiar o lado de fora. Foi quando o rapaz reparou que não havia poeira.

    Khanh já estava diante da casa esperando os homens. A carroça avançou, saindo de entre as árvores e se posicionando mais ao centro da clareira. Em pé ali, o Homem Verde parecia muito mais alto e ameaçador do que quando Jiten o vira a primeira vez.

    Nenhum dos visitantes parecia tão preocupado com isso. Os dois mais jovens a frente guardaram os facões que usavam. O idoso se levantou e desceu da carroça com alguma dificuldade. Podia ver o rosto e a barba grisalha do homem, assim como olhos cercados por rugas, como quem havia visto muita coisa na vida. Ele mancava e parecia inseguro em pisar no chão tortuoso ao redor da cabana. 

    As primeiras palavras deles foram inaudíveis ou pelo menos Jiten já não podia mais se recordar delas. O menino reparou na carroça que não parecia carregada, então, não podiam ser mercadores, mas também não pareciam hostis, visto que somente aqueles três homens apareceram e nenhum deles usou um tom ameaçador. 

    O garoto não conseguiu enxergar o que a carroça carregava. 

    As palavras seguintes ficaram também longe da memória dele, mas sentiu o aperto de Bjarka aumentar, como se ela tentasse confortar a ele ou a si mesma. Khanh não deixou o posicionamento sério, mas estava pensativo. Sua cabeça foi abaixada, ele olhou para a clareira, como se pudesse sentir algo que vinha dela. 

    As palavras seguintes, Jiten conseguia se lembrar.

    — Eu sei que sua esposa venceu o Desafio da Floresta. Por isso precisamos dela. Não vamos poder chegar perto sem a ajuda de vocês.

    — Se foi assim a vontade do espírito. Não vou me opor, mas Bjarka de fato não ficará contente. 

    — Mitsuki foi a última. Os ancestrais dela não descansarão se não cumprirmos este desejo.

    Jiten arregalou os olhos ao ouvir o nome de sua mãe. Por que estavam falando dela naquele momento? A confusão inicial do menino o fez se agitar, mas Bjarka o tinha seguro entre os braços. Por não saber o que fazer, ante a resistência inicial da mulher, ele apenas continuou observando o desenrolar da conversa entre os adultos. 

    — Os ancestrais dos mugenjin massacraram nosso povo. Hoje me pedem por descanso para eles. 

    — Eu sei o que as histórias contam e o que elas dizem é que isso faz parte do trato. 

    Khanh respirou fundo por alguns momentos. Seu rosto, então, se voltou para trás, procurando de qual janela sua esposa o observava. Ele pôde ver Jiten o fitar espantado e se dirigiu uma vez mais ao visitante. 

    — Eu vou cumprir o desejo dela. É a vontade do espírito. Mas quanto a ela ser a última, você está enganado. 

    — O que quer dizer? — O idoso se aproximou alguns passos, ele dirigiu sua visão na direção em que o Homem Verde havia olhado e sorriu.

    O idoso assentiu a cabeça. Khanh suspirou.

    — Há mais um. 

    Suas lembranças estremeciam diante daquela frase. Sua mente transpassava um portal, guiava-se rumo as lembranças que se tornaram uma confusão drástica em sua mente. Era o preço que pagava.

    Para lembrar do sorriso, ele precisava também lembrar das coisas que quis esquecer.

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