Capítulo 15 — Corpo Oculto
Memórias de Jiten
Sentimentos ruins, não tornam uma memória ruim.
Nessa altura, as lembranças já saíam um tanto do controle de Jiten. Enquanto seu corpo começava a pesar mais, rumo as poucas horas de sono que lhe restava, tudo parecia mais vívido, mais cheio de energia e menos submetido ao que sua mente queria ou não revisitar.
Tudo estava escuro naquele dia. Muito mais escuro do que poderia dizer que realmente estava. Uma coloração alaranjada, quase dourada, predominava no céu e a luz do sol nas costas deles envolvia os troncos, os galhos e os arbustos, apagando o verde e deixando apenas o ouro.
Ao redor do menino havia Wulan, que andava tão grudada nele que por mais de uma vez ele esbarrava nela enquanto tentava se esquivar da folhagem espinhosa de alguns arbustos. Ela parecia tão mais velha, tão mais centrada que ele, que em nenhuma vez ele cogitou se afastar. Parecia ser mais seguro ali.
A sua frente andavam Bjarka e Renji. A mulher, mais alta que o idoso, tinha seus cabelos amarrados sob uma touca e seu ritmo era acelerado. Havia alguma coisa de urgência naqueles passos e o homem idoso mancava profusamente, mesmo apoiado por sua muleta. A perna falsa que ele tinha não parecia deter da mobilidade necessária para lidar com um trajeto tão difícil.
Jiten e Wulan iam ao meio, ambos sem dificuldade, visto que na juventude, atravessar uma floresta parecia do tipo de atividade mais simples. Atrás deles, seguia Khanh, caminhando pela floresta como se já a conhecesse profundamente Ele vigiava Jiten e Wulan, estalando a língua se eles se desviassem demais do caminho.
Ainda, atrás de Khanh, os ajudantes de Renji transportavam os cadáveres. Essa era uma visão que Jiten não queria ter. Então, continuamente olhava para frente, sem medo de andar rápido, como se fugisse da sombria contemplação que enfrentaria atrás dele. Sempre que se sentia tentado a olhar para trás, seus olhos cruzavam com os olhos de Wulan e logo desistiam do movimento.
De alguma forma, ao longo de todo aquele trajeto, era como se ele nem estivesse lá. Não chorava, não falava, não refletia em nada. Servia-lhe apenas a visão das árvores, os pequenos animais que corriam para seus esconderijos ante o grupo de pessoas e os ruídos estranhos que a floresta emitia.
— Falta muito? — o idoso questionou e esfregou a perna manca intensamente.
— Eu não sei. — A resposta de Bjarka foi áspera.
— Não?
— Não, eu não sei. O Cedro não é exatamente um lugar que fica à disposição para que nós o visitemos quando quisermos. É ele quem se revela.
Jiten pôde ouvir aquelas palavras e se perguntou se havia algum sentido naquilo. Não entendia bem o porquê deveriam andar a esmo, procurando por algo que apenas aprecia quando queria.
Cada vez mais a floresta se fechava ao redor dele, envolvendo-o como em um abraço matador. Letal como o enrolar de uma serpente, a madeira e as folhagens iam dificultando mais e mais a visão do que havia no horizonte.
Seu sentimento era de nervosismo. Mesmo uma criança sabia que as florestas não eram lugares amistosos após o anoitecer. Principalmente uma criança sabia disso. Ainda assim, os adultos pareciam ansiar pela noite e isso não fazia sentido para ele.
— Então, o Cedro é mesmo um Reikakushi.
— Ele é, mas não de um tipo que você já deve ter visto. — Bjarka respondeu, seus olhos capturados pelo caminho que seguiam, olhava às vezes desconfiada para os lados, como se não confiasse tanto assim onde estava entrando. — Muitas pessoas têm contato com eles. Não é como se eles estivessem escondidos por medo, apenas que suas vidas são incompatíveis com as nossas.
Jiten pisava sobre a vegetação morta da floresta, contornando pedras, arbustos e troncos de árvore. Aquela incursão pela mata não era em nada semelhante ao que ele já tinha feito antes. Não era mais o adentrar na floresta em busca da aventura ou da diversão. Estava sendo conduzido rumo a uma parte sombria da floresta.
A conversa entre o velho e Bjarka outrora teria despertado sua curiosidade. Teria atiçado seus sentidos e erguido seu espírito. Os Reikakushi eram uma crença um tanto que obscura de seu povo. Algo que uma criança ouvia com frequência em forma de histórias antigas.
Ver Bjarka falar deles como seres concretos naquele mundo deveria tornar tudo em uma aventura mais empolgante. Mesmo assim, a materialização daquelas histórias mais parecia algo trágico e na realidade, amedrontador.
— Então, vamos andar em círculos até ele aparecer? — o velho indagou, mas havia algo além de uma importunação. Ele olhava ao redor com maior frequência do que qualquer outro, por vezes, deixando escapar um suspiro discreto.
— Não. Vamos chegar onde temos que chegar em pouco tempo. Então, será a noite e ele decidirá.
— E se ele não quiser… alguma coisa a mais pode querer aparecer? — o velho falou prostrando-se mais na direção de Bjarka.
A mulher reagiu se afastando mais um passo dele. Foi a vez dela olhar ao redor. Seus olhos então pousaram sobre Jiten e Wulan, andando lado-a-lado logo atrás dela. As sobrancelhas da mulher se franziram com algum temor.
— Não.
Os minutos seguintes foram preenchidos por uma sensação de se estar perdido. Pelo menos, foi isso que Jiten sentiu na profundidade de seu ser. Aquela floresta parecia tão diferente, mas ao mesmo tempo era igual ao começo. Como andar em círculos, não tinha certeza mais de por onde já tinha passado.
O outono cobria a cabeça deles com colorações diversas, misturadas de diversas formas com a tela alaranjada do céu na hora do poente. Aos poucos, as colorações foram arrefecendo, perdendo-se na penumbra que se intensificava. Os sons na floresta iam aos poucos diminuindo, como se uma tensão se construísse.
Faltava pouco para a escuridão chegar.
— Viu aquilo? — Wulan chamou a atenção de Jiten e o rapaz direcionou os olhos para onde a menina apontava.
Não havia nada além de uma conjunção entre o amarelo intenso das folhagens de abeto com o verde-escuro de pinheiros ainda em crescimento. Os troncos pareciam formar uma zona difícil de passar, mas além da escuridão sob os galhos, não havia nada ali.
Jiten voltou a olhar nervosamente para frente. Sentindo uma espécie de queimação em sua nuca que o fazia querer olhar para todos os lados. Ainda, toda aquela escuridão que começava a se congregar fazia apenas assustá-lo.
Não notou, portanto, o rapaz, quando o ar ao redor dele se tornava mais denso. Quando a umidade parecia crescer e a visibilidade cair. Era sutil, mas perceptível, tal qual ver a floresta cobrir-se de um novo manto ante o novo momento do dia que se aproximava.
O quanto andava pareceu parar de fazer sentido. Até que a escuridão se tornou tão intensa que se fez necessário acender as tochas.
Os dois na frente carregavam cada um a sua, enquanto os detrás eram guiados apenas pela tocha que Khanh acendeu. Quando a sombra começou a nublar o chão e se impossibilitou caminhar sem tropeçar, Jiten viu Wulan sair de perto dele para ficar mais próxima do pai.
Naquele momento, quis puxar a camisa dela para que ela não saísse de perto dele. Contudo, não teve presença de espírito para fazer isso. Não queria ser visto ou notado pelos adultos ao seu redor. Preferia o silêncio de quem era conduzido, do que o barulho de quem era arrastado.
A floresta se converteu de um palácio idílico a uma prisão monocromática. Já não era possível mais enxergar os distantes arvoredos, apenas uma muralha de sombras que eram vencidas apenas pela luz parca das tochas.
Jiten andava com os olhos abaixados, ignorando como a floresta se tornara perturbadoramente barulhenta e não olhando para frente para não ser ofuscado pela luz da tocha que Bjarka carregava.
Ele pôde ouvir mais comentários vindos do velho.
— Aqui é longe o suficiente do vilarejo.
Tornou-se mais difícil ouvir o que conversavam, pois a atenção do rapaz ficava cada vez mais voltada para os arredores e aquilo dialogava um tanto que profundamente com o que havia dentro dele.
O medo que sentia de observar o ambiente ao redor o puxava de volta para o medo que sentiu no dia da morte de sua família. Não conseguia entender direito o que estava passando. Na verdade, nem mesmo entendia o motivo pelo qual estava caminhando ali com eles.
Agora, já não importava mais compreender qualquer coisa. A escuridão não lhe permitia fugir.
Quando começou a perceber que o ar que atravessava estava não só mais gélido, como também muito mais denso, o grupo parou de caminhar.
— Aqui. — Bjarka exclamou.
— Tem certeza? — indagou cético o idoso.
Não estavam diante de qualquer cedro ou árvore. O que havia ali era um monumento de cerca de um metro de altura, esculpido em uma espécie de pedra branca com gravuras marcadas nele.
As gravuras tinham traços circulares e simples, pareciam algum tipo de língua antiga ou uma forma primitiva de desenhar e representar histórias. Uma parte dessas marcas estava oculta pelo crescimento de vinhas, mas estas não passavam da metade da pedra.
Bjarka ficou em silêncio por um longo minuto. Ninguém mais se atreveu a violar este silêncio, nem mesmo o idoso que ao longo de todo o trajeto havia levantado muitas questões. Ao olhar para aquele monumento, dava para entender, logo de cara, que se tratava de algo solene e mais antigo do que qualquer homem.
Nem mesmo a floresta ancestral tinha coragem de cobri-lo.
Bjarka então iniciou o entoar de um canto. Sua voz era grave, ressonante como um instrumento muito alto. As palavras que saíam da boca dela eram completamente incompreensíveis, possuíam um sistema de entonação diferente e algumas palavras eram espantosamente longas, enquanto outras não se passavam além de duas sílabas.
O canto era hipnotizante, a melodia suave e a sensação que criava era de que ele harmonizava com a floresta. Era possível notar o som partindo para muito longe, uma acústica que não correspondia com o cenário florestal, mas com um campo aberto.
Jiten permaneceu completamente silencioso. Por dentro e por fora, seus olhos fitavam as sombras além do monumento e seu corpo era abraçado pelas ondas sonoras. Ele não entendia a música, mas ela parecia familiar, como algo que já tivesse sido cantado para ele muitas e muitas vezes.
Apenas mais tarde, Jiten entenderia aquilo como um verdadeiro ritual. Uma tradição antiga, enterrada sob os cadáveres de uma civilização esquecida e coberta pela poeira que hoje enchia a sola dos pés dos mugenjin.
A sensação era a de ver o passado emergir. Um misto de sensação de profanidade e, ao mesmo tempo, de pertencimento. Violava os valores do presente, chamava à superfície o saber dos antigos. Não era apenas reviver coisas mortas, mas sim lembrar estas coisas de que elas nunca morreram.
Então, Bjarka se calou e seu silêncio deixou um vazio. Vazio completo. Nenhum outro som surgiu da floresta.
— Khanh, apague a tocha. — Bjarka exclamou e ela logo em seguida apagou a tocha com um gesto de sua mão.
Jiten nunca havia visto algo como aquilo. Um único movimento fez o fogo de uma tocha se apagar como se atingido por um sopro invisível. O menino se assustou, ao se ver mergulhado subitamente no escuro e olhou para trás.
Viu que Khanh tinha uma expressão resoluta. Os homens atrás dele, que carregavam os corpos, tinham expressões de medo estampadas em seu rosto. A última coisa que viu antes da escuridão cair sobre eles foi o sorriso de Khanh e um gesto de sua mão.
Então, tudo se tornou apenas escuro. Não havia sons, nem estrelas, nem floresta. Só existia a escuridão.
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