Capítulo 83 — Mortais e Deuses
Ao abrir os olhos, deparei-me com o rosto de Alice, ensombrecido pela dor da perda. Meus joelhos fraquejaram, cedendo ao peso das lágrimas que brotavam dos meus olhos. O corpo diante de mim estava imerso na escuridão, enquanto sua vida se esvaía.
Ao lado de Alice, Zenith chorava em silêncio. Mesmo Naara, normalmente tão estoica, mal conseguia conter as lágrimas, e Nain fitava o céu, respondendo ao olhar de Levi.
Foi então que percebi a chegada súbita de Samael, que parecia gritar algo enquanto erguia um escudo dourado de proteção. No céu, duas entidades colidiram suas espadas, gerando uma onda de choque poderosa que quase fez ruir a barreira de Samael.
A aura desses seres era densa e sombria, como se a própria luz fosse sugada ao entrar em contato com sua escuridão. Ao se afastarem, as duas entidades colidiram suas auras, fazendo com que a mana de cada uma delas crescesse infinitamente.
Gritei para Samael: ‘Samael, você tem que detê-los!’ Mas ela apenas me lançou um olhar triste.Eu sabia que aquela situação não poderia continuar, mas me senti impotente diante de tudo o que se desenrolava.
As lágrimas de todos nós, o luto compartilhado e o confronto dessas forças colossais – não havia espaço para interferir nessa luta. Mesmo que houvesse uma oportunidade, não pensamos aproveitá-la.
Foi então que, finalmente, abri meus olhos. Meu corpo estava coberto de suor, o sonho tão vívido que meu coração continuava a bater descompassado enquanto eu processava tudo o que acontecera.
Olhei para o lado e vi Samael dormindo, com a barriga à mostra, parecendo estar imerso em um sonho tranquilo, até mesmo sorrindo. Leviatã, por outro lado, descansava placidamente no chão.
Levantei-me e me dirigi à janela em busca de um pouco de ar fresco. A sensação de perda ainda me envolvia, mesmo ciente de que tudo não passou de um sonho. Não consegui ver o rosto da figura caída no chão, nem dos combatentes em ação, mas tinha certeza de que, se tal situação se concretizasse, eu não poderia fazer nada para impedi-la.
Foi quando notei que não estava sozinha. Azrael também ficou no quarto ao lado, à janela, contemplando a lua enquanto saboreava um pouco de vinho. Inicialmente, ele não percebeu minha presença.
“Não consegue dormir?”, querendo, rompendo seu estado de introspecção.
Azrael me apresentou um olhar por um breve instante e desenhou um sorriso simpático.
“Digamos que é isso. Estava meditando um pouco sobre a vida e acabei perdendo a noção do tempo.”
Havia algo de estranho na expressão de Azrael, como se ele estivesse remoendo algo perturbador.
“Não tem problema”, continuou. “Afinal, partiremos amanhã.”
Sua voz, de alguma forma, parecia distante naquele momento, como se sua mente estivesse vagando por pensamentos distantes.
***
Naara
Enquanto aguardávamos em frente à imponente escada de mármore, Notei Nain e Zenith trocando sorrisos animados em uma conversa misteriosa. A expectativa pairava no ar, envolvendo-os de uma maneira que parecia tornar-se os mais efervescentes do que o habitual.
“Alguma novidade emocionante?”, perguntei curiosamente, com um toque sarcástico em minha voz. Meu comentário arrancou um leve sorriso de Zenith, que se moveu, inclinando-se suavemente para a frente, suas mãos discretamente postas atrás das costas.
“Você não está empolgado? Já se passaram dois anos desde que vimos Az”, respondeu Zenith, demonstrando uma satisfação que eu relatava nele.
Lembrei-me de que Azrael havia originalmente planejado nosso encontro para um ano após sua partida. No entanto, após os eventos no mundo dos mortos, ele decidiu adiar o encontro em mais um ano. A surpresa que senti ao descobrir que ele havia ocultado sua presença por todos esses anos era palpável. Todas as minhas tentativas de descobrir seu paradeiro resultaram em fracasso, exceto pelas cartas que enviei informando sobre os acontecimentos no Palácio Demoníaco, que sempre encontraram seu destinatário.
“É verdade… esperar por quase trezentos anos faz com que dois anos pareçam insignificantes”, suspirei, pensando em como minha vida imortal poderia se tornar longa e tediosa. Entretanto, havia uma desvantagem em estar longe de Azrael que eu não poderia negar.
“Como será que o mestre está?”, Nain murmurou consigo mesmo, demonstrando preocupação.
Eu não consegui imaginar uma transformação significativa em apenas dois anos. Azrael estava treinando com Samael, mas mesmo para alguém tão extraordinário quanto ela, dois anos compensa um prazo muito curto para grandes mudanças.
“Não crie muitas expectativas em relação ao crescimento de Azrael. Afinal, dois anos são um tempo curto”, comentei, certo de que minha avaliação estava correta. No entanto, fui surpreendida quando um portal misterioso surgiu diante de nós. Antes mesmo que alguém atravessasse, a aura que emana do outro lado era imbuída de uma escuridão avassaladora.
Fiquei momentaneamente atônita, até que uma segunda aura começou a tomar forma no portal. Era uma aura de luz que parecia iluminar tudo ao seu redor, dispersando a escuridão que a cercava. Uma batalha silenciosa entre escuridão e luz se revelou através do portal misterioso.
A primeira pessoa a emergir do portal trouxe um colapso instantâneo quando percebi que era alguém conhecido. Seus longos cabelos castanho-avermelhados fluíam como chamas dançantes até a altura da cintura, capturando os raios de luz e refletindo tons quentes e dourados. Era como se seu cabelo fosse um espetáculo natural em si.
Seus olhos azuis profundos continham segredos dos mares mais enigmáticos, brilhando com uma inteligência afiada e uma curiosidade inextinguível. Seu rosto irradiava beleza e graça, com traços suaves que emanavam calor e gentileza.
Quanto às vestes, usava um traje que mesclava com praticidade. Detalhes intrincados contavam histórias de aventuras passadas, com símbolos e padrões que sugeriam conhecimento profundo do desconhecido.
Entretanto, a segunda pessoa a atravessar o portal chamou a atenção de todos devido à aura sombria que a acompanhava. Seus olhos vermelhos como o sangue eram gélidos e vazios, lembrando a versão anterior de si, há muito esquecido. Seus cabelos brancos como a neve estavam presos, e seu rosto parecia impassível.
Vestia um sobretudo negro que parecia ter sido concebido por Samael, com o símbolo de um dragão protegendo um planeta estampado no peito.
“Vocês parecem estar bem”, comentou Azrael com um leve sorriso, aliviando as preocupações que tiveram afligido a todos. Apenas sua aparência permaneceu inalterada ao longo dos trezentos anos, mas sua personalidade não havia regressado.
“Esperamos um bom tempo”, comentou Nain antes de lançar um olhar significativo em direção à majestosa escadaria que se erguia diante de nós. Nesse momento, pude perceber que o poder de Azrael havia alcançado um patamar superior ao que era no passado, e uma sensação de alegria me envolvia por tê-lo novamente à vista. Parecia que apenas dois anos foram suficientes para ele recuperar sua força.
“Az, o que estamos esperando?”, questionou Zenith, pronto para subir os degraus da escadaria que nos levariam ao destino.
” Eriel?”, disse Azrael, estendendo sua mão em direção a uma jovem de presença notável. Nain e Zenith trocaram olhares, como se houvesse captado algum significado oculto naquele gesto.
“Eh? Mestre, vocês…”, começou Nain, mas foi interrompido por Azrael, que esclareceu:” Não é o que parece… Vocês esqueceram a quem vamos encontrar? Só estou aqui para proteger Eriel.”
No entanto, as palavras de Azrael perdoam desculpas vazias. Eriel tinha crescido tanto que sua aura agora se comparava a um demônio de alta classe. Não havia necessidade de que Azrael a protegesse neste ponto de sua jornada.
“Então é assim…”, disse Eriel, pegando a mão de Azrael sem hesitar. Juntos, iniciamos a subida da grandiosa escadaria. Não demorou muito até avistarmos o palácio nas nuvens. Eu não prestei muita atenção nos detalhes externos, mas mesmo à distância, sua grandiosidade era evidente, digna dos próprios deuses, parecendo projetada para impressionar, assim como o tão comentado Palácio Celestial.
Foi quando percebemos a presença de alguém na porta do palácio, uma presença opressiva destinada a nos guiar. Nossos olhos se voltaram para a entrada, onde uma figura jovem e carismática se destacou. Era Dionísio, o deus do vinho e das celebrações, em todo o seu esplendor. Vestia sua jaqueta de veludo vermelho, ricamente adornada com detalhes dourados que cintilavam à luz das velas. Em uma das mãos, segurava uma taça dourada, e seu sorriso contagiante instigava uma necessidade irresistível de se juntar à festa.
Dionísio avançou graciosamente pelo salão, sua presença exalando um magnetismo inescapável. Seus cabelos castanhos ondulados balançavam com seus movimentos, enquanto seus olhos profundos, púrpura, pareciam absorver a essência de todos ao seu redor. Cumprimentou todos com gestos calorosos, espalhando alegria e energia em seu caminho.
Com um movimento de sua mão, fez com que as vinhas decorativas que adornavam o palácio florescessem, enchendo o ambiente com um aroma doce frutado. Transformou água em vinho com um toque de sua taça dourada, enchendo os copos de todos com a bebida celestial. A música ficou ainda mais animada, e todos começaram a dançar ao som de uma melodia envolvente.
No entanto, a chegada de Azrael interrompeu o encanto. Visivelmente irritado, ele exclamou: “Que diabos você pensa que está fazendo?”
[Anti-Magia: Cancelar]
Com um gesto, a mana de Azrael envolveu o ambiente, trazendo-nos de volta à realidade. Os sorrisos que antes eram radiantes agora se tornaram amargos, e a música de fundo cessou. Toda a magia de Dionísio se desvaneceu, enquanto ele parecia perplexo diante da situação abrupta.
“Oho? Você não gosta de uma boa festa?”, questionou Dionísio, visivelmente alcoolizado. Azrael se subiu do deus do vinho com um olhar intimidador, encarando de frente aquela sombra poderosa sem se intimidar.
“Tenho assuntos a tratar com o seu rei. Sua magia é irritante, então não a use novamente”, a voz de Azrael ecoou com um ar de soberania, fazendo até mesmo o próprio deus tremer diante de sua presença.
“Vamos, vamos. Não é para tanto. Estávamos apenas nos divertindo. Você é um verdadeiro estraga-prazeres”, disse Dionísio, desviando seu olhar em direção a Eriel. “De qualquer forma, que bela mortal você trouxe, não é? Ela é uma oferta? Se for, deixe-a comigo, estou disposto a receber…”
Azrael interrompeu Dionísio, segurando-o pelo pescoço e intensificando a pressão de seu poder, tornando-se ainda mais intimidador. “Tire os olhos dela. Não pretendo causar a morte de um deus.”
“Estava apenas brincando, brincando”, disse Dionísio em um suspiro, percebendo que suas brincadeiras estavam irritando Azrael. “De qualquer forma, você veio ver Zeus, certo? Ele está esperando.”
Azrael liberou Dionísio, e fomos levados ao local onde o rei dos deuses nos aguardava. Não demorou muito para chegarmos a um majestoso salão digno dos deuses. Doze tronos estavam alinhados, com o trono central se destacando como o mais grandioso.
Os deuses que ocupavam os tronos não estavam presentes, exceto por um, que nos observaram assim que entramos. Era um homem com aparência de quarenta ou cinquenta anos. Seus cabelos e barba branca como a neve contrastavam com seus olhos azuis que emitiam uma presença sinistra.
Paramos diante da apresentação, que imediatamente ficou desagrado por não nos vermos ajoelhados diante de sua majestade.
“Vejo que você ainda não ensinou boas maneiras a seus subordinados”, disse ele, sua voz cheia de soberba.
“O que você esperava?”, perguntou Azrael.
“Quando se encontra com um rei, o correto é mostrar respeito e ajoelhar-se”, comentou o rei, visivelmente irritado.
“Não estou com vontade”, Azrael respondeu sarcasticamente.
“Eu também não me ajoelho perante outros reis além do meu”, enfatizei, mostrando que não faria tal gesto.
“O mesmo vale para mim”, disseram Zenith e Nain em uníssono.
Mas a resposta mais surpreendente veio de Eriel. “Você espera que um sucessor do Deus Supremo se ajoelhe diante de um mero deus? Veja que você não tem respeito”, afirmou ela, sem demonstrar medo.
Não pude deixar de sorrir ao ouvir Eriel perguntar “Fiz certo?” e recebe a resposta de Azrael: “Perfeito”. Ficou claro para mim o que estava acontecendo.
“Uma mortal ousa…”, começou o rei dos deuses.
Foi quando a aura de um dragão se manifestou em Eriel, revelando sua majestade diante do rei dos deuses. A mesma transformação ocorreu com Azrael, quando ele exibiu o poder do dragão do caos.
“Três dragões em minha presença? Vejo que você está reunindo aliados poderosos”, disse Zeus, visivelmente irritado.
“Vamos acabar com isso, estou com pouco tempo”, declarou Azrael, não demonstrando entusiasmo por estar diante de deus que o havia aprisionado por trezentos anos.
“Arrogante como sempre. Você não mudou nada, continua o mesmo mortal inútil.”
“Deixarei uma coisa bem clara, rei dos deuses. Os demônios não se submeteram ao domínio dos deuses, então ouça o meu pedido ou aceite o seu destino”, disse Azrael com uma voz imponente, fazendo até o mesmo Zeus se mostrar cauteloso. “Onde está Nix?”
As palavras de Azrael fizeram Zeus tremer por um breve momento ao ouvir o nome da deusa primordial.
“Você não acha que eu revelaria o paradeiro dela, certo? Você é tolo?”, disse o rei dos deuses, um sorriso sutil aparecendo em seu rosto. “No entanto, se fizer algo por mim, estou disposto a compartilhar a localização de Nix.”
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