Capítulo 17 — Draugos
— Acha que eles existem mesmo?
A pergunta fez Jiten erguer a cabeça, tirando-o de um transe parcial ao qual havia se deixado conduzir. Percebeu então que a pergunta não foi feita a ele e tornou a abaixar sua cabeça.
Aquele que indagava era um dos pastores mais jovens entre o grupo. Um menino chamado Fukusa de cerca de doze anos, com cabelos curtos raspados, um rosto macio e redondo, com uma túnica boa demais para o trabalho no campo. Sua pergunta era dirigida ao mais velho entre eles.
— Tenha certeza que sim. Os mais velhos sabem das coisas. Não são coisas que se vê todo o dia, então precisa viver muito para estar na presença deles. — O mais velho era um homem já na casa de seus vinte e cinco anos. Tinha seu rosto um pouco desgastado demais pelo sol, um cabelo preso atrás da cabeça em um rabo de cavalo. Suas vestes eram cinzentas, com uma corda azulada cingindo a cintura. Chamavam-no Reinn. — Os Reikakushi são muito reais.
— Dizem que tem poderes mágicos. — outro dos pastores falou, um jovem da idade de Jiten, ao qual ele não conhecia bem o nome. Este tinha cabelos longos em um rabo de cavalo, olhos verdes que interagiam com a luz amarela da fogueira. Seu rosto era redondo, assim como o corpo.
— Claro que têm. Nossos ancestrais aprenderam com eles o Dogma. — disse Reinn, um sorriso no rosto, parecendo apreciar aquela atenção que lhe davam. — Eles podem mudar o tempo, fazer o sol e a lua se demorarem mais no céu. Podem mudar a arquitetura das florestas e das montanhas como se fossem uma centena de construtores em um.
— Meu pai me fala que eles se escondem em celeiros e costumam roubar a dispensa se não deixarmos uma oferenda para eles no inverno. — Fukusa disse, seus olhos expectantes direcionados ao mais velho, esperando que confirmasse o que dissera.
— Não. Não é isso não. — Reinn exclamou, agitando a cabeça negativamente. Fukusa piscou os olhos repetidas vezes. — Os Reikakushi são muitos. Há os grandes, os mais velhos e antigos. Esses são os que tem os poderes que falei. Estes outros são espíritos menores que podem nos ajudar ou atrapalhar, dependendo da nossa conduta. Chamam todos de Reikakushi, mas não é tudo o mesmo.
— Então meu pai falou a verdade. — Fukusa afirmou e as consequências de admitir que seu pai falava a verdade lhe povoou os pensamentos, já que seu olhar ficou subitamente perdido.
— Minha vó diz que eles são maus. — falou o rapaz que era o segundo mais velho. Chamavam-no de Kousou. Este era mais alto que todos eles, pouco menos de vinte anos. Era também o mais forte e tinha uma cicatriz que lhe marcava fortemente a têmpora. Era o único também que usava um manto de peles de um animal selvagem, enquanto todos os outros, incluindo Jiten, se protegiam do frio com a lã de ovelha. Diziam que ele era um pouco mais lento que os outros rapazes.
— Não. São só alguns. Os draugos. — o jovem mais gorducho entre eles retrucou.
O pastor mais velho riu. Jiten notou em seu rosto o vislumbre de pregar alguma peça naqueles meninos.
Jiten não participava daquela discussão. Absorto em seus próprios pensamentos, ele vislumbrava a fogueira e o crepitar das brasas. Sua atenção foi chamada ao grupo pela menção aos Reikakushi, mas apesar de já ter vislumbrado um em sua vida, era difícil para ele descrever o que era sonho e o que era realidade. Nunca mais conversara sobre o enterro de sua mãe e irmão com Renji, Wulan ou qualquer outro.
A menção aos draugos, no entanto, lhe causou um arrepio. Ouvira muitas histórias que os envolvia na infância. A maioria era para assustar crianças e evitar que andassem sozinhas pelas florestas ou próximo ao cair da noite.
— Ah. Os draugos não são apenas maus. Eles são aberrações. Espíritos sombrios que se alimentam da morte e andam quase sempre em grupo. São ainda mais perigosos sozinhos.— Reinn disse, inclinando-se um pouco mais a frente.
Os jovens ficaram nervosos. Um silêncio se instalou brevemente entre eles. Jiten observou as fronteiras escuras da noite que os cercava. A lua cheia iluminava os campos, sendo possível enxergar bem até o ponto em que se iniciava o bosque.
Era ali que tudo ficava mais estranho. O bosque era como uma muralha de escuridão. As árvores se mesclavam, com suas múltiplas formas, montando uma única massa estranha e sombria.
Jiten precisava fugir. Foi o que Renji lhe havia instruído a fazer. Os rapazes ao redor dormiriam em vigílias de turnos separados. Seria em um momento desse que ele teria que entrar na floresta. A lua lhe forneceria a luz até que chegasse ao bosque, mas ainda não sabia como poderia correr na escuridão.
Tinha certeza que os garotos não lhe seguiriam além da primeira linha das árvores. Tudo que precisava era chegar até lá próximo o suficiente do amanhecer, para não ficar tempo demais na escuridão, mas próximo o suficiente da madrugada para que a penumbra lhe servisse de esconderijo.
— Conte, logo. — um dos rapazes exclamou. Jiten perdera alguma coisa na conversa, mas certeza que era uma história assustadora.
— Está bem. Está bem. — Reinn concordou acenando com a cabeça. O rapaz mais velho então se aproximou mais da fogueira. — Diziam que mais ao norte, onde o frio é um castigo bem maior do que aqui, as pessoas fazem sacrifícios a um dos Reikakushi. Este espírito vive no fundo de um grande lago e que após ser ferido com uma espada na barriga em uma batalha, afundou nele e abriu seu estômago. O lago inteiro então se tornou suas entranhas e nelas criaturas aprenderam a viver.
Jiten sentiu o ar um tanto mais seco. Olhou para o céu, procurando sinais de nuvens e não havia muitas. Talvez, fosse este um signo antecipado do inverno. Ele tossiu, sentindo algo preso na garganta e um dos outros jovens se assustou com um sobressalto, o que arrancou alguns sorrisos do grupo.
— Pois bem. — continuou Reinn. — Este espírito começou a se alimentar dos peixes e seres que viviam dentro dele. Começou a transformá-los e então, os lançou em uma vingança contra os homens ao redor do povo ao qual o havia ferido. — Ele começou a gesticular, as sombras projetadas pela fogueira dançavam ao redor do grupo. — Seres deformados emergiram. Os draugos. Eles eram inteligentes, mas não como os homens. Suas mentes apenas operavam o que havia de ruim, caçando e procurando outros homens para ferir.
Fukusa, o mais jovem dos rapazes, olhava ao redor para a escuridão e parecia aquele mais próximo de se assustar. Jiten considerava aquela história algo quase bobo, mas havia um apelo estranho nela. A ideia de que um lago pode ser um espírito. Uma floresta pode ser um espírito. Quem sabe não era a noite também um espírito? E se fosse, o que ela desejaria dos homens?
— Alguns peixes foram para terra como raposas, os corpos cobertos de um fogo sem cor, eles corriam por dentro dos celeiros e os incendiavam. Outros peixes se fundiram um na carne do outro e emergiram como grandes répteis que podiam devorar metade de um cavalo com uma abocanhada. — Reinn mantinha cada vez mais uma expressão séria. As sombras sob os olhos faziam seu rosto se assemelhar a uma caveira.
Jiten sentiu um desconforto. Ajeitou os ombros. Era muito grande para sentir medo de monstros noturnos, mas não parecia capaz de se controlar. Tirou os olhos da fogueira e olhou distante para a noite que os cercava. Teve a impressão de ver sombras se moverem próximo ao bosque, mas apenas afastou o pensamento.
O rapaz mais gordinho do grupo começou com uma tosse seca. Depois, esfregou o nariz com força, o que produziu um som nojento. Reinn esperou que ele se recompusesse antes de continuar.
— Existia só um período do ano em que não se viam esses espíritos malignos. No inverno. Quando ficava tão frio que as árvores ficavam nuas, o chão coberto por um metro de neve e o lago congelava. O gelo escurecia sobre o lago, tomando propriedades mágicas. Eles não conseguiam sair de dentro do lago.
Jiten não tinha certeza se já havia escutado aquela história. Monstros aprisionados pelo inverno em um gelo eterno. Deveria ter algo com a Bruma Congelada. Deveria ser uma das histórias de Renji. Involuntariamente, sua mente se apegou ao vilarejo.
O desconforto aumentou. Como ele poderia fugir e deixar tudo para trás? Renji sempre tinha histórias diversas sobre a Bruma, sobre os kumokais, sobre guerreiros antigos e novos. O velho saberia contar muito melhor uma história sobre um Reikakushi.
Agora, Jiten pensava em como o velho lhe contou poucas histórias sobre aqueles velhos espíritos ancestrais. Jiten só podia lembrar de uma. Sobre a montanha no qual finda o Rio Arqueado. Era uma de suas histórias preferidas. Envolvia monstros e um herói antigo, que foi até ela para aprender sobre o futuro e o destino.
Pegou um cantil de água ao lado de onde estava sentado e bebeu um gole generoso de água. Parecia que havia um gosto férreo nela. Ele fez uma careta. Sentia muita sede, além daquele desconforto que lhe atingia as entranhas.
— Então! — Reinn chamou atenção para si com uma súbita exclamação. — O filho do curtumeiro resolveu buscar lenha na floresta próxima ao lago. Ele era um menino jovem, não mais que doze anos, tinha o rosto redondinho e as bochechas rosadas de tanto comer beterrabas. Ele havia sido avisado a não andar por perto do lago, mas estava seguro que no inverno ninguém sairia para pegá-lo.
Jiten tossiu. Não se lembrava do tempo ter estado tão seco em muito tempo.
— Só que o inverno estava acabando. O gelo rachou, apenas um único centímetro. O jovem que andava ali por perto começou a ouvir uma canção. Parecia uma voz. Uma voz de mulher que o chamava e ele achou que era a da sua mãe. Essa música chamava o rapaz, mas tinha intervalos longos, ficando mais alta conforme ele andava pela floresta. Quando ele deu por si, estava à beira do gelo negro do lago. Uma rachadura enorme se formara no centro do lago. Cada vez que a rachadura aumentava, a canção era emitida. Ele percebeu então que era o gelo que cantava conforme se quebrava.
— Gelo canta? — Um dos rapazes gracejou e os outros sorriram timidamente.
Jiten pensou no som do gelo quebrando. Não imaginava como aquilo poderia ser uma canção. Contudo, entendeu que o gelo não emitia som diferente, o que ele podia fazer era mexer com a mente de quem escutasse seu som. Um espírito podia fazer isso? Mexer com as percepções? Será que podia apagar memórias?
— O menino se colocou a correr. Sabendo que era uma ilusão do lago. Na pressa, ele escorregou na neve misturada com lama e caiu de costas no gelo. Apenas na beira do lago. Esse último impacto, foi o suficiente para fazer o gelo quebrar ali. Molhado no estômago do espírito, ele não podia mais sair. E o gelo que era negro ficou vermelho-escuro.
— Pobrezinho — lamentou Kousou com sua voz grossa, amadurecida demais para sua própria inteligência.
Foi então, que Reinn se aproximou ainda mais das chamas.
— Daquele dia em diante, um draugo com a forma de homem surgiu. Marchando pela terra. Agora, os aldeões não perdiam apenas os celeiros e o gado, mas seus meninos jovens. Antes do inverno estar sobre eles, os draugos apareciam, junto do vento frio do fim do outono. Sempre a noite, eles andavam sem medo do escuro. Capturavam os jovens que desafiavam a noite e dormiam perto das janelas ou ao ar livre. Tampavam suas bocas e os arrastavam ao lago, para serem transformados e voltar depois, para chacinar suas próprias famílias. Até que ninguém mais ousou morar perto do lago. Então, por vezes, ele manda seus draugos mais e mais longe. Procurando por jovens que dormem ao relento.
O silêncio e a tensão se instalaram. Um vento gélido soprou com força e derrubou uma panela vazia que estava apoiada sobre um tronco partido.
— Ah! Agora que não durmo mais. — Fukusa afirmou em um tom melancólico.
— Eu também não. — Ouviu-se a voz grossa do mais alto entre eles. Aparentemente, ele era forte e mais velho que a maioria, mas não parecia lidar bem com aquelas histórias. Era notável que estava nervoso. — Eu acho que vi alguma coisa se mexendo na floresta.
Os outros pastores riram. Jiten sorriu para o menino.
— É só uma lenda, Fukusa. — Jiten disse. — Durante a noite, os ladrões de ovelhas e os lobos são preocupações maiores para você.
— Eu tenho uma história de lobos. — Reinn disse rindo. — Mas acho que vocês são medrosos demais para essa.
— Pelo menos os lobos existem. — disse o pastor gordinho.
— Os ladrões também. Eles são cruéis. Os que vêm do norte, sabiam? Também gostam de roubar e sequestrar meninas. Qual deles devemos ter mais medo, Jiten? Me ajude a escolher a próxima história.
— Ladrões. — Kousou disse, seus olhos ainda fitando a escuridão, semicerrados.
Jiten foi acometido de uma tosse estranha. Cobriu a boca e se endireitou. Olhou para Reinn, vendo seu rosto mais velho. Era engraçado porque todos se conheciam desde muito cedo. Sentiu haver algo mais naquela pergunta, mas não soube o quê.
Sua verdadeira resposta era que não temia ladrões ou lobos, mas sim o lorde. Aquele homem sentado sobre um assento luxuoso, com sua esposa sulista e um exército de homens cegos de obediência. Seu medo mesmo era ser despedaçado por Nazher antes de poder aprender o suficiente da espada para ele mesmo castigá-lo por tudo que vira o capitão fazer.
Mais assustador do que lobos ou ladrões era o Dogma. Aquele que Nobu o usou para lhe ferir sem sequer tocá-lo e que até o momento ainda não havia cessado de deixá-lo desconfortável. Seu coração acelerava apenas pela lembrança.
— Vamos, Jiten? Tem medo do quê?
— Ladrões. — Kousou falou mais uma vez.
— Cala boca, burro, não tô falando com você.
Jiten sabia que ainda mais assustador do que qualquer outra coisa era aqueles que ele viu matar sua família. Aquelas coisas que ele nem mesmo podia descrever. A visão que escondeu de todos. Nada que derramava sangue podia assustar mais do que o ser que matava com uma lâmina que não cortava.
— Eu… — Jiten começou.
As pálpebras de Jiten se fecharam involuntariamente. Havia algo em seus olhos. Ele passou a mão no rosto e viu o sangue nos dedos. Olhou para si em uma fração de segundos. Estava intacto.
Foi só quando finalmente viu, que entendeu. Estava seco. Aquela sensação no ar, que irrita o nariz, a garganta e os pulmões. Que faz tossir e que cerca tudo ao redor como uma névoa de partículas sufocantes.
Era a poeira.
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