Índice de Capítulo

    1

    Ayasaka chegava à cozinha com seu novo manto azul que Tuphi havia lhe dado. Beatrice estava diante de uma pia grande, acompanhada de Tuphi, de costas para Ayasaka, cortando algum tipo de legume que Ayasaka não conseguia distinguir.

    Beatrice se virava com um sorriso em um movimento calmo, segurando uma bandeja de alimentos de diversas cores em suas mãos. Aparentemente, todos eram algum tipo de vegetal ou legume. Ayasaka não conseguia avistar nenhum tipo de carne animal, o que era bom, pois Ayasaka sempre foi vegetariana.

    Tuphi, que vestia um belo vestido preto e branco, trazia em suas mãos uma jarra de madeira de algum tipo de suco vermelho. As duas botaram os alimentos sobre a mesa.

    — Bom apetite — disse Beatrice.

    Ayasaka se acomodou em um canto da mesa, à frente de Tuphi e Beatrice, admirando o vestido de Tuphi.

    — Você está muito fofinha assim. Parece que veio de algum anime genérico.

    — Ani-me… genérico? Você acha? Só uso essa roupa porque não quero sujar minha bata usual, e ela é bem confortável — explicou Tuphi, esticando-se sorridente e feliz pelo elogio.

    — Sim, faz eu me sentir em um isekai.

    Tuphi virou a cabeça levemente, sem entender o que Ayasaka quis dizer.

    Ayasaka olhou para a mesa repleta de alimentos coloridos e, empolgada, encheu um copo com o misterioso suco que Tuphi havia preparado.

    — Que delícia — comentou Ayasaka após o primeiro gole, surpresa ao descobrir que o sabor lembrava o melão, algo que sua mãe costumava servir no café da manhã todos os dias em Tóquio.

    — Não é mesmo? —respondeu Tuphi com um sorriso em resposta à reação positiva de Ayasaka ao suco, enquanto mordiscava algo que se assemelhava a uma fruta, mas estava assado em um espeto, saboreando-o com suas bochechas coradas. — Fiz espefialmente pfa você.

    — Tuphi, já não falei para você não falar de boca cheia? — Beatrice indagou, enquanto Ayasaka riu da situação diante do olhar desesperado de Tuphi que tentava cuspir a fruta.

    Curiosa sobre o sabor da fruta exótica, Ayasaka pegou uma e a abocanhou vorazmente, corando as bochechas ao experimentar o doce que lembrava as sobremesas típicas do Japão.

    — Cara isso é muito bom! — Ayasaka disse enquanto saboreava a fruta misteriosa.

    — Fico feliz que tenha ficado gostoso — disse Beatrice, observando as duas se alimentarem com entusiasmo, parecendo dois animais fofos e selvagens, apreciando uma pequena porção de arroz amarronzado.

    Depois de ajudar Tuphi a lavar os luxuosos pratos de louça em uma pia rústica de onde fluía água gelada de uma espécie de bico de madeira, Ayasaka perguntou a Tuphi quantos anos ela tinha.

    — Hum… depende do ponto de vista. Nós, lobians, temos uma perspectiva diferente de tempo. Um ano para nós equivale a 10 anos para vocês, sens. Então, pode-se dizer que tenho 170 anos para você e 17 anos para o meu povo — respondeu Tuphi, fazendo um gesto de vitória com a mão sobre o olho e mostrando a língua.

    Ayasaka, que havia terminado de secar a louça, olhou para a garota lobo com uma expressão incrédula, rindo diante da situação.

    — Onde você aprendeu a fazer esse símbolo?

    — Ah isso? — Tuphi olhou para a própria mão. — Eu vi você fazer ontem, achei legal.

    Ayasaka caiu em gargalhadas enquanto Tuphi inclinava sua cabeça sem entender.

    — Então você é… uma lobian, certo?

    — Eu sou linda, e uma Lobian também…, mas brincadeiras de lado, aqui em Ataraxia, temos um total de quatro raças: Os Sens, a raça em que você e Beatrice se encaixam, têm como especialidade a adaptação a estratégias em qualquer tipo de situação. Os Lobians, a minha raça, possuem um aguçado olfato e audição, conseguem escalar paredes facilmente e se especializam na arte do arco e flecha. Os Xodiks, uma raça exótica que vive na floresta e não gosta muito de estrangeiros de outras raças, são especializados em magia e conhecidos por sua extrema inteligência. Foram conhecidos como a raça que ajudou a família celestial em diversas documentações e escritas, mas se afastaram de todos após a queda dos celestes. E, por fim, os Cadis, uma raça de certa forma semelhante aos Lobians, mas possuem caudas finas e orelhas estreitas, e não são muito confiáveis… —comentou Tuphi, tirando o seu avental. — Temos também as sub-raças e desconhecidos, raças que surgiram após o grande reinado de Ataraxia, em meio à era sem deuses… —continuou Tuphi, olhando para baixo.

    — Então provavelmente esses desconhecidos devem ser algo preocupante, certo? — perguntou Ayasaka, levando o garfo à boca enquanto ouvia atentamente a explicação de Tuphi.

    Tuphi fez uma pausa, deixando o garfo que usava para beliscar uma sobra de comida na beirada do prato.

    — Desconhecidos são raças que não estão catalogadas, raças que foram criadas após a alteração que Ataraxia sofreu, raças que têm seu raxy interior composto de escuridão. — disse Tuphi, pendurando seu avental em um porta casaco de madeira ao lado da porta. — E as sub-raças são variantes das raças que conhecemos, nada para se preocupar, boa noite, mestre.

    Tuphi se virou após dar um leve sorriso tenso a Ayasaka e saiu da cozinha em direção ao seu quarto.

    — …mestre? — Ayasaka sussurrou consigo mesma.

    Ayasaka percebeu que algo preocupava Tuphi, mas decidiu não pressionar, finalizando sua refeição e seguindo para seu quarto.

    2

    Ayasaka, sentada em sua cama, olhava para o seu violão, pensando na realidade em que se encontrava. Enquanto acariciava as cordas do instrumento, murmurou baixinho:

    — Primeira noite neste novo mundo. Ataraxia, onde, pelo visto, eu sou uma pessoa pelo menos relevante.

    Nesse momento, ela lembrou de sua vida em Tóquio. Apesar de ser uma aluna exemplar, sentia-se apenas mais uma formiga em meio a um imenso formigueiro.

    — Eu nunca mais vou ver meus pais, nem meus amigos.

    Ayasaka suspirou ao tentar alcançar seu celular, lembrando que o mesmo tinha ficado em Tóquio.

    — Ele eu nunca mais iria ver de qualquer maneira, não é mesmo?… Então que diferença que faz..

    Ela se deitou na cama, olhando para o teto, e se cobriu com um lençol fino. Virando para o lado, olhou para Kazewokiru, que cintilava suas cordas em um azul solidário, fazendo Ayasaka dar um leve sorriso. — Eu sei que não estou sozinha, eu tenho você e agora as meninas…

    Ayasaka focou sua visão em um ponto vazio da parede do quarto atrás de Kazewokiru. Sentindo seu travesseiro molhado ao redor de seu rosto, ela percebeu que estava chorando involuntariamente.

    “Essa foi a minha decisão. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria chorando. Afinal, abri mão de dezesseis anos da minha vida, amizades, metas, família… Abandonei tudo e todos. Pai, mãe, vou amar vocês para sempre, mas nunca consegui corresponder às expectativas de vocês. Nunca fui boa sob pressão, nunca tive uma boa saúde mental. Tóquio me sufocava, e eu nunca encontrava meu propósito no meio dessa cidade. Nunca sabia se minhas metas eram realmente minhas ou apenas reflexo das responsabilidades que vocês projetavam em mim. Depois daqueles dois acontecidos, eu realmente, perdi meu Norte. Mas tomei minha decisão. Escolhi essa nova vida. Abracei este mundo com todo o meu coração e estou em paz com minhas escolhas. É hora de dar atenção aos meus novos amigos e cuidar desse povo que tanto precisa de um milagre. Mesmo com muito a aprender sobre a vida, estou aqui para dar o meu melhor, e bem acompanhada.”

    Enquanto pensava, Ayasaka limpou as lágrimas do rosto e controlou o resto do choro que ainda guardava. Ela acariciou Kazewokiru, que continuava a brilhar em um belo tom de azul marinho, e assim, adormeceu aos poucos, encerrando sua primeira noite em Ataraxia.

    Em um piscar de olhos, Ayasaka se encontrou de pé em um lugar que não possuía nada à sua volta – chão, paredes, tetos, árvores. Era um vazio de um cinza tempestuoso. Ela olhou ao seu redor, tentando encontrar alguma referência, mas qualquer esforço era em vão.

    — Tem alguém aí? — Ayasaka gritou na esperança de escutar uma resposta, mas tudo o que ouviu foi o eco de sua própria voz.

    Ayasaka tentou pegar Kazewokiru de suas costas, mas percebeu que o violão não estava com ela. Isso a fez sentir-se ainda mais insegura, mas ela decidiu continuar andando. Estava descalça e usava o manto azul dado por Tuphi.

    Depois de andar por minutos sem parar, Ayasaka avistou no horizonte uma estrutura grande que cintilava no meio do nada.

    — Isso é um sonho… apesar de já ter me enganado com essa frase antes, preciso verificar o que é isso — disse, franzindo os olhos na tentativa de enxergar a estrutura abstrata que brilhava em um tom de esmeralda.

    “O pior que pode acontecer é eu acordar”, pensou Ayasaka enquanto corria na direção da estrutura. À medida que se aproximava, o ambiente ao seu redor se transformava, ficando cada vez mais sombrio e gelado, e vultos negros apareciam ao seu redor, como se estivesse sendo perseguida.

    — Essa é nova — murmurou Ayasaka com as mãos nos joelhos, ela estava ficando sem fôlego de tanto correr e aumentou o ritmo com seus últimos esforços.

    Quando parecia que Ayasaka estava prestes a alcançar a estrutura, o cenário ao seu redor desapareceu instantaneamente, deixando um silêncio tão pleno que parecia um perturbador zunido, o que deixou ela desnorteada.

    Olhava para os lados, tentando encontrar a estrutura, quando sentiu uma mão agarrar seu ombro, fazendo-a gritar em desespero. Ayasaka, ao virar na direção da mão, viu-se em queda livre, seus cabelos absolutamente bagunçados pelo vento, gritando e esperneando.

    No controle de seu corpo novamente, Ayasaka virou-se para baixo e observou uma imensa cidade tenebrosa, aparentemente abandonada, sem uma alma viva nas ruas. A cidade era iluminada pela peculiar luz do luar daquele mundo. Ela rapidamente percebeu que continuava em queda livre.

    — Eu preciso acordar, caramba! — Ayasaka gritou o mais alto que pôde, ela estava prestes a acertar a ponta afiada de uma cruz em uma gigante igreja, fazendo sua garganta raspar de dor ao gritar com tanta violência. Depois que seus gritos cessaram, partículas de água que caíam sobre o sereno noturno que envolvia a sombria cidade começarem a retroceder em seu trajeto, subindo aos céus em vez de cair na cidade.

    Flutuando entre as gotículas de água que ascenderam à exótica lua de Ataraxia, Ayasaka ouviu um estrondo, semelhante ao barulho de uma implosão, fazendo seus ouvidos zunirem. O tempo ao seu redor havia parado, e as gotículas estavam imóveis no ar. Impressionada, Ayasaka foi surpreendida novamente quando, em um movimento brusco, voltou a cair em direção à cruz. Ela fechou os olhos momentos antes do impacto.

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