Capítulo 35 – “Ceifadora”
1
As estrelas sombreavam a noite no céu azul escuro clareando todos os pontos de escuridão de maneira delicada com sua luz distante que passava uma calmaria para as duas garotas que estavam sentadas no telhado do casarão ao lado de uma pequena janela.
— Agnus… impossível aquele homem ser uma divindade. Deve ser só uma coincidência.
Ayasaka, que estava deitada no telhado com as mãos atrás da cabeça ao lado de Tuphi deu risada da situação.
— Realmente. Mas já pensou Tuphi… que legal seria dar de cara com uma Divindade assim? Eu acho que tornaria a viagem mais especial de certa forma.
Ayasaka se sentou e continuou com uma leve inclinação de cabeça na direção de Tuphi junto de um sorriso de canto que fez ela ficar constrangida.
— Tem razão.
— O que importa é que estamos bem…
Tuphi suspirou enquanto encostava a cabeça no ombro de Ayasaka que mantinha o olhar na estrela mais distante no céu noturno.
— É bom te ter por aqui, Garota da Profecia
Ayasaka olhou para baixo na direção de Tuphi e colocou a mão sobre seu ombro, puxando-a para próximo ao mesmo tempo que enchia os pulmões de satisfação.
— É bom estar por aqui… com você, com todos, espero conseguir mudar o rumo da coisas. Sei que tem gente tão importante quanto eu do outro lado da moeda também, isso que me preocupa… enfim.
Ayasaka deu um beijo no topo da cabeça de Tuphi e abraçou ela logo em seguida.
— Você mudou minha vida, pelo menos no sentido de enxergar as situações do cotidiano. Foi a melhor recepção que uma pessoa que veio de outro mundo poderia ter. Sou sortuda por encontrar vocês e o Fos de cara.
— O Fos, eu fico triste de ele ter que ficar longe de você
— Eu também, não queria ter que me esconder dessa maneira.
Ayasaka se levantou e caminhou em direção a borda do telhado onde permaneceu de costas para Tuphi em uma distância relativamente segura. A luz da lua iluminava seus cabelos pretos enquanto eles esvoaçavam com o vento morno da noite.
— Imagina Tuphi, todas as crianças que ficariam felizes nesse reino inteiro, ao saberem que a Garota da Profecia está em Ataraxia…? Não que eu me garanta com muita coisa…, mas sei que somente esse título já seria o suficiente para deixar muita gente esperançosa e feliz… é um grande fardo, mas é o meu fardo.
— Isso tudo é como se eu estivesse vendo um belo livro de fantasia e aventura se folhear diante de meus olhos — Tuphi respondeu com uma risada meiga, que Ayasaka retribuiu.
— Sim, o livro da Garota da Profecia!
A conversa entre Ayasaka e Tuphi fluía suavemente, abrangendo uma variedade de tópicos, até que a fadiga finalmente as alcançou. Isso anunciou a necessidade de recolherem-se para seus quartos e desfrutarem da primeira noite de descanso em Uevyat.
2
Antes que seu corpo pudesse compreender plenamente sua própria visão, Ayasaka sentiu suas botas afundarem suavemente em uma substância fofa enquanto caminhava em linha reta. Uma sensação gélida de baixas temperaturas a fazia ranger os dentes, enquanto seus braços se esforçavam para mantê-la aquecida, abraçando-se desesperadamente.
— Um sonho… de novo, esses sonhos? — Ayasaka murmurou, piscando os olhos de forma irregular para se adaptar à súbita luminosidade do ambiente desconhecido.
Tudo à sua frente era branco, uma vastidão indistinguível. Ao olhar para baixo, na direção de seus pés, Ayasaka notou que segurava algo em sua mão esquerda. O objeto estava obscurecido pelo sangue que manchava o chão branco com trilhas vermelhas.
Os olhos de Ayasaka se arregalaram quando percebeu que segurava uma grande espada japonesa, coberta por um sangue que, mesmo na frieza ao redor, parecia quente e fresco.
— S-sangue…?! Por que minhas mãos estão sujas de sangue? — Ayasaka largou imediatamente a espada, caindo de joelhos em um estado de choque repentino. Embora o sangue raramente incomodasse Ayasaka, ela nunca havia experimentado uma situação em que o sangue fresco de alguém pingasse diretamente de suas mãos.
— De quem é esse sangue? De quem? — Ayasaka olhou para todos os cantos, mas não viu nada além do branco infinito, compreendendo que estava em meio a uma nevasca.
A expressão de perplexidade persistia em seu rosto enquanto tentava decifrar a origem do sangue em suas mãos. A neve continuava a cair suavemente ao redor, criando um contraste marcante com o cenário manchado pela tragédia que ela parecia habitar.
O branco imperturbável do ambiente a envolvia, mas a sensação de inquietação crescia dentro dela. Era como se estivesse presa em um labirinto de memórias distorcidas, incapaz de escapar das sombras que a assombravam.
No reflexo da lâmina ensanguentada, Ayasaka pôde observar sua própria silhueta. Um olhar sem vida estava esboçado em seu rosto, a expressão de uma garota cansada e machucada. Ferimentos graves percorriam seu rosto, e uma faixa amarrada de orelha a orelha estampava o sangue para que não houvesse mais perdas.
Uma pequena flor com um caule alongado repousava sobre a cabeça de Ayasaka, aparentemente feita de energia. Era translúcida e tinha cinco pétalas, emitindo uma cor esbranquiçada enquanto flutuava como se fosse a auréola de um anjo.
— O que é isso? — Ayasaka tentou agarrar a flor intrigada, mas sua mão passou direto por ela, como se não fosse feita de matéria alguma, como se não tivesse massa.
Ayasaka suspirou, tentando manter-se calma, sua respiração se normalizando aos poucos enquanto ela se concentrava.
— Onde é que eu estou…? — Ayasaka olhou em volta à medida que caminhava pela neve espessa. — Não reconheço este lugar. Não é Uevyat, muito menos Kratkar.
Ao pegar a espada do chão, uma energia anormal percorreu sua extensão. Era uma energia visível, como se uma chama rosada envolvesse sua mão enquanto empunhava aquela estranha espada.
Fazendo o caminho contrário para onde se dirigia e seguindo a trilha de sangue que pingava de sua espada, Ayasaka finalmente chegou à origem de todo aquele sangue derramado.
— Não… é brincadeira, né? Não pode ser. Isso é um sonho. Isso não é real. Isso é um sonho, eu preciso acordar, isso não é verdade, Ayasaka.
Entretanto, não importava quanto ela tentasse negar, a realidade cruel persistia diante de seus olhos. O local para onde a trilha de sangue a levou revelou uma cena aterradora. Corpos estavam espalhados pelo chão, todos exibindo ferimentos semelhantes aos que marcavam o próprio corpo de Ayasaka. A visão era como um espelho distorcido de sua própria agonia.
Cada corpo parecia congelado no momento de sua morte, olhares vazios e expressões de dor eternizadas. Ayasaka sentiu uma onda de náusea e horror, enquanto as vozes ecoavam em sua mente, sussurrando palavras indistintas que se misturavam com o som inquietante da nevasca ao redor.
— Você não pode fugir da verdade, Ayasaka. Este é o preço que você paga pelo poder que você almejará em seu futuro. — Uma voz ecoou, parecendo surgir de todos os lados, sem uma fonte física aparente.
A neve continuava a cair, pintando de branco aquela cena macabra. Ayasaka permaneceu ali, entre os cadáveres, com a espada manchada de sangue ainda em suas mãos, enquanto a dor e a perplexidade a consumiam.
Ayasaka, perdida entre os corpos inerte e a paisagem branca como a morte que a cercava, tentava desesperadamente negar a terrível realidade diante dela. Os murmúrios da voz misteriosa ecoavam, como se a própria nevasca sussurrasse segredos sombrios.
— Isso não é real, isso não pode ser real! — Ayasaka murmurou para si mesma, em uma tentativa desesperada de se convencer de que tudo era um pesadelo passageiro.
Entretanto, a voz respondeu, mais próxima agora, sussurrando em seu ouvido como um vento gélido:
— Este é o resultado de suas escolhas, Ayasaka. O poder tem um preço, e este é o tributo que você paga. O caminho que você trilhou é marcado pelo sangue que escorre de sua própria espada.
A cena ao redor de Ayasaka mudou subitamente, como se as sombras da nevasca assumissem formas grotescas. As vozes dos cadáveres ecoavam em uníssono, acusadoras e lamentáveis ao mesmo tempo.
A figura de Tuphi apareceu entre os corpos, olhos vazios encarando Ayasaka. Sua boca se movia como se tentasse pronunciar algo, mas nenhum som escapava, apenas sangue jorrava sem parar, manchando seu queixo e pescoço. Era uma visão dilacerante, um eco de um pesadelo que Ayasaka preferiria esquecer.
O som de uma risada sinistra preencheu o ar, e a paisagem ao redor começou a distorcer. As sombras se retorciam, formando imagens de batalhas e tragédias que Ayasaka nunca havia vivenciado. Ela se viu com uma espada manchada de sangue refletindo seu rosto sem expressão.
— Você é uma ceifadora, Ayasaka, e seu destino está entrelaçado com o daqueles que cruzam seu caminho. Aceite a verdade. — A voz insistiu, ecoando através do vórtice de lembranças distorcidas.
A neve ao redor começou a se tornar mais densa, obscurecendo a visão de Ayasaka. A figura de Tuphi desapareceu nas sombras, e o cenário se desfez como um sonho desvanecendo. Ayasaka sentiu-se envolvida pela escuridão, incapaz de distinguir o real do imaginário, perdendo-se nas memórias corrompidas que a assombravam.
A escuridão que envolvia Ayasaka parecia eterna, uma tapeçaria de sombras entrelaçadas com fragmentos distorcidos de sua própria história. O vórtice de memórias corrompidas sussurrava acusações e revelações, ecoando verdades sombrias que ela tentava desesperadamente ignorar.
Em meio à escuridão, surgiu uma luz fraca e distante. Ayasaka percebeu uma silhueta, uma figura que se movia na penumbra. Era como se um espectro do passado estivesse emergindo da escuridão para confrontá-la.
— Você não pode fugir de quem é, Ayasaka. Suas escolhas moldarão seu destino, e agora você enfrentará as consequências — a voz ecoou novamente, agora incorporada na figura sombria que se aproximava.
A forma nebulosa se materializou lentamente, revelando a imagem de uma Ayasaka mais jovem, com olhos cheios de determinação e, ao mesmo tempo, inocência perdida. Era uma lembrança de tempos mais simples, quando o peso das responsabilidades ainda não havia se instalado em seus ombros.
— Você quer esquecer, mas as sombras persistem. Cada gota de sangue que será derramado formará uma profunda cicatriz em sua alma. Aceite quem você é, aceite a Ceifadora que reside dentro de você — a figura mais jovem falou, a voz ressoando como um eco distante.
— Eu não sou uma assassina… não sou uma ceifadora.
— Assassinar é o seu bem maior, Ayasaka.
A paisagem ao redor começou a se transformar, tornando-se um labirinto de memórias e escolhas, cada corredor levando a momentos de conflito e sacrifício. A figura mais jovem conduziu Ayasaka por entre as sombras do seu próprio futuro, guiando-a através de cenas de batalhas e encontros, revelando a interconexão de todas as suas escolhas.
Diante de um espelho sombrio, a Ayasaka mais jovem encarou a versão atual de si mesma. O reflexo refletia uma mistura de dor e tristeza, uma jovem moldada pelas circunstâncias e pelas duras decisões que tomara.
— Não é tarde demais para mudar, Ayasaka. Encare as sombras e encontre a redenção, ou aceite a escuridão que reside em seu coração. O destino aguarda sua decisão. — Com essas palavras, a figura mais jovem se dissipou na escuridão, deixando Ayasaka sozinha com suas reflexões tumultuadas.
A escuridão persistia, mas agora Ayasaka sentia uma nova compreensão brotando dentro dela. As sombras do passado não poderiam ser apagadas, mas talvez, no presente, ela pudesse moldar um futuro diferente. A Ceifadora dentro dela aguardava para emergir, uma força que poderia ser dominada ou abraçada. O destino permanecia como um livro aberto, e as páginas ainda não escritas aguardavam a caneta de Ayasaka.
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