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    Ítalo ouviu o som de alguém escorregando. Olhou para trás a tempo de ver Marcelo levantar-se a duras penas, soltando uma enxurrada de pragas de sua boca. Seu braço ainda devia doer. O velho homem continuou reclamando enquanto um soldado segurando uma tocha atrás dele fazia um sinal para que continuasse a andar. Ítalo se virou novamente para frente, ignorando as reclamações de Marcelo e os urros que vinham mais atrás para voltar a se mover por dentro da gruta. Embora não fosse pequena, era apenas larga o suficiente para uma pessoa atravessá-la por vez, além do chão irregular atrapalhar seus passos. Podia ver estalactites enquanto passava, assim como podia escutar o gotejar que provavelmente as formara. 

    Era difícil para Ítalo se mover entre elas enquanto carregava as suas trouxas. Ele se preocupava de a qualquer momento rasgar e perder algo na escuridão. Já perdera aqueles pergaminhos antes, o que era uma pena, mesmo que não soubesse lê-los. Além das suas coisas, Ítalo carregava também parte das de Tyler, que havia ficado no acampamento da caravana. Os outros também levavam cada um uma parte do que Tyler havia coletado. 

    O interior da caverna estava úmido, o que fazia sentido visto que havia uma fonte de água por perto. Todas as vezes que Ítalo pensava sobre aquele lugar, ele se impressionava mais ainda. Era um rochedo que se estendia por quilômetros ininterruptamente repleto de cavernas, muitas delas interligadas, transformando seu interior em um completo labirinto. Além disso, diversas fontes de água corriam por seu interior. Algumas eram naturais, já outras eram frutos da arquitetura dos povos que a habitavam. Era simplesmente fascinante. 

    Uma pena que só ele parecia se importar com isso. 

    Podia ver o vulto mal iluminado do soldado a frente, que vez ou outra parava para esperá-lo. Fora uma visão assustadora quando Pamela apareceu a eles sem Tyler e acompanhada de homens estranhos, mas logo ela os tranquilizou. Aparentemente as pessoas que Ítalo e Tyler haviam visto eram membros de uma caravana de viajantes, e Tyler conseguira de alguma forma barganhar por proteção. Como ele fizera isso Pamela ainda não tinha explicado. No entanto, apenas o fato de não precisarem mais dormir de olhos abertos animava Ítalo. 

    Quando emergiram de volta à superfície, Ítalo se viu de frente para um vale cercado por encostas escarpadas e depressões que levavam até o fundo repleto de pequenas luzes ondulantes que iluminavam o fundo. Ele não pode deixar de se sentir maravilhado novamente pelo tamanho e formato daquela enorme estrutura geológica em que estavam. Além de seu comprimento, o qual o impressionava todas as noites enquanto andava, seu interior era ainda mais fantástico, tendo as mais variadas estruturas geológicas que só vira em livros. 

    — Ei garoto, me ajuda aqui ou pelo menos sai da frente — Marcelo grunhiu saindo da gruta logo atrás de Ítalo. 

    Ítalo ajudou o velho a sair daquela caverna, quase caindo para trás após puxá-lo. Seguindo havia um par de soldados com longas capas cobrindo todo o corpo, à exceção das desagradáveis expressões em seus rostos. Ítalo não se admirava de seu mau humor visto o que vinha atrás deles. Pouco depois dois homens surgiram da gruta arrastando algo, não, alguém, o homem gordo estava sendo puxado pelas amarras. Pelos rostos suados dos soldados, não deviam estar usando pouca força para puxá-lo. A viagem durou mais por conta dele. Ele se contorcia, berrava e grunhiu o tempo todo, tendo que ser amordaçado para que calasse a boca. 

    Pamela vinha junto a ele tentando acalmá-lo, coisa que Ítalo não acreditava ter funcionado. Daisy estava em seu pé, como sempre. Os olhos da garota se cruzaram com os seus e ítalo desviou seu olhar para outra direção. As palavras dela ainda ressoavam em seus ouvidos. 

    — Espero receber mais por isso — Um dos soldados que puxava o homem gordo reclamou. 

    — Cala a boca e se mexe, quero voltar logo lá pra baixo e visitar a saia de alguma mulher — disse o outro. 

    Apesar de banal, Ítalo se viu extremamente interessado na conversa. Talvez porque era, de fato, a primeira vez que via duas pessoas de outro mundo interagindo uma com a outra. Parecia muito com as conversas de seu antigo mundo. 

    — Por que ficou tão animado assim? — Ouviu Pamela perguntar, uma expressão de nojo se formara em seu rosto. Ela provavelmente ouvira a mesma conversa. 

    — E que homem não ficaria animado com a ideia de explorar o que tem embaixo de uma saia — Marcelo comentou com um sorriso obsceno, dando tapas nas costas de Ítalo com o braço bom. 

    Pamela revirou os olhos e se afastou. Daisy também. Um resquício de desprezo flutuava em seus olhos. 

    — Que? Não, pera — Ítalo disse em desespero ao finalmente perceber a armadilha em que tinha se enfiado.

    Ele passou a maior parte da caminhada até o fundo do vale tentando se explicar, não tendo muito êxito. De fato, as garotas nem ao menos pareciam se importar. Isso de alguma forma apenas lhe pareceu pior. Ítalo então suspirou, sentindo a frustração e a vergonha o corroer enquanto andava. Felizmente esses sentimentos negativos quase cessaram assim que o grupo adentrou o acampamento, e sua curiosidade mordaz tomou conta de seu corpo. 

    Viu dezenas de pessoas trajando roupas típicas. Túnicas, capas e véus parecidos com hijabs cobrindo o cabelo de boa parte das mulheres. Dúzias de crianças corriam por todos os lados, sendo repreendidas hora ou outra pelo que Ítalo julgou serem seus pais ou outros familiares. 

    As pessoas se amontoavam nas fogueiras, observando-os passar com olhos desconfiados. Alguns trocavam sussurros, obviamente comentando e especulando sobre a natureza dos recém-chegados. Ainda que soubesse que o que mais chamava a atenção era o homem gordo sendo puxado pelos soldados, Ítalo não pôde deixar de se sentir desconfortável com tanta atenção. Detestava ter tantas pessoas olhando-o daquela forma. 

    Ainda se perguntava como Jonas e Leandro suportavam o olhar de toda a escola enquanto jogavam. Eles não tinham medo de fazer besteira e virarem piada? Essa seria a primeira coisa que Ítalo pensaria acontecer se ele estivesse no lugar dos dois na quadra, talvez por ele ter duas pernas esquerdas. Tudo o que ele podia fazer era rezar para que não tropeçasse enquanto o olhavam. Se fosse a quadra isso seria certeza de acontecer. 

    Ítalo queria observar mais, porém não teve tempo. Eles precisavam continuar seu caminho. 

    Pararam em frente a uma tenda maior que as demais no centro do acampamento. Era guardada por dois guardas, o que indicava que alguém importante devia estar ali, e Ítalo e os outros logo iriam encontrá-lo. 

    Ítalo sentiu suas mãos suarem um pouco. 

    Pamela tomou a frente do grupo, se apresentando a um dos guardas que pareceu reconhecê-la, dado que logo abriu a tenda para que passassem. Decidiram deixar o homem gordo do lado de fora, e Daisy permanecera com ele, entrando assim apenas Ítalo, Marcelo e Pamela na tenda. 

    Lá dentro viram um homem de cabelos grisalhos trajando uma roupa feita de tecidos de aparência fina em tons de cores vivas e lustrosas a luz das velas que iluminavam o local, sentado em um assento de madeira vistosamente bem esculpido. O líder, Ítalo percebeu. 

    Assim que ítalo e os outros entraram em sua linha de visão, o homem os atravessou com o olhar. Seus olhos duros e negros pareciam armas apontadas para o grupo, o que só serviu para aumentar o nervosismo de Ítalo. 

    — Vejo que realmente retornou mulher — O homem disse —, então não será necessário matar seu amigo. 

    Ele falou de forma tão desinteressada quanto se estivesse comentando sobre o tempo. 

    — Sim, é realmente um alívio — comentou uma voz familiar. 

    Ítalo se virou para ver um sorriso também familiar e só então notou Tyler, amarrado em um canto da tenda. 

    — Você… isso não estava no trato — Pamela protestou. 

    O homem deu de ombros. 

    — Preciso de precauções — disse o homem sacudindo a mão com um movimento fraco. 

    Dois soldados que estavam ao redor do homem se dirigiram a Tyler, o que preocupou Ítalo até o momento em que percebeu as cordas sendo desatadas. 

    — Bem melhor — Tyler falou com um suspiro de alívio. 

    — Agora dê-me o que prometeu — Exigiu o homem. 

    Tyler olhou para Pamela. 

    — Trouxe aquilo? — perguntou alongando os braços casualmente. 

    Pamela remexeu em uma de suas trouxas e retirou uma pequena bolsa de dentro, parecia pesado. Ela ergueu a bolsa e um soldado a tomou, levando-a até o seu líder. 

    O homem abriu o saco, analisando seu conteúdo com uma expressão apática e indecifrável. Então suspirou. 

    Ítalo não entendia o porquê, mas sentiu os cabelos de sua nuca se eriçarem. 

    — “Elefantes e reis são todos iguais quando feitos de prata” — murmurou o homem. 

    Ítalo franziu as sobrancelhas. 

    “Isso foi… uma citação? Talvez um ditado?”, pensou intrigado. 

    O homem se levantou. 

    — Meus caros viajantes, desejo-lhes boas-vindas e anunciar que agora de fato estão sobre a proteção da companhia do Elefante branco. Meu nome é Kabir, o Eleito de Karapruta e comandante desta companhia. 

    Ele fez uma reverência. Embora sua voz parecesse um tanto monótona e desinteressada, seus movimentos eram bem refinados. 

    A tenda ficou em silêncio por um momento. Ítalo não tinha ideia do que, ou se, devia falar. Pamela e Marcelo pareciam na mesma situação. Marcelo inclusive olhava o homem idoso com um olhar pasmo, como se ainda estivesse tentando entender o que seus olhos viam. 

    Ítalo olhou para Tyler, que olhou para Pamela, que então limpou a garganta. 

    — Hum, é um prazer é… senhor Kabir, me chamo Pamela, e esses são — Ela olhou para Ítalo e Marcelo —, os meus companheiros, Marcelo, Tyler e Ítalo. Eu agradeço por sua gentileza e hospitalidade. 

    O líder da caravana levantou uma sobrancelha, olhou para Tyler, que não mostrou qualquer reação, então suspirou, bocejou e se virou para um de seus soldados. 

    — Cuide para que sejam bem alimentados e os acomode junto aos outros — ordenou. 

    O soldado assentiu e fez um gesto para que o seguissem. Antes de sair, Ítalo fez um aceno de cabeça para o homem grisalho, torcendo para que ele reconhecesse isso como um cumprimento, e foi respondido pelos olhos desinteressados do comandante. 

    Lá fora, o grupo se juntou novamente a Daisy e o homem gordo e seguiram até outra tenda que emanava um cheiro que Ítalo não sentia a um tempo. 

    — Aqui está um belo ensopado — Marcelo disse quando a tigela de barro foi posta em suas mãos. 

    — Não sei se belo é a palavra certa pra isso — comentou Pamela remexendo o conteúdo à sua frente com a colher rústica que os cozinheiros a tinham entregado. 

    — Não pra ser bonito, é comida — Tyler respondeu de forma ríspida, arrancando uma cara fechada de Pamela em resposta. 

    Ítalo podia entender o que ela queria dizer. O ensopado em si era apenas um cozido de legumes e pedaços de carne de algum animal. Mesmo assim, o sabor era muito melhor do que qualquer coisa que Ítalo comera desde que tinha chegado aquele mundo. Apenas poder sentir o cheiro de algo temperado era o suficiente para fazer sua boca salivar.  

    Fora a refeição mais fastidiosa que já comera há muito tempo. 

    Quando terminaram o soldado se despediu, mandando-os se acomodarem onde quisessem.  

    — Esse vagabundo de merda, ele não devia nos guiar? — resmungou Marcelo. 

    — Acho que vamos ter de fazer isso nós mesmos — disse Tyler. 

    — Ei, mas me diz uma coisa, como você conseguiu convencer o líder a nos deixar ficar — Ítalo perguntou. 

    — Da mesma forma que se convence qualquer provedor de serviço, com dinheiro — Ele mostrou as costas de sua mão aberta, havia uma moeda entre cada dedo — Agora vamos, quero descansar. 

    Eles rodaram pelo acampamento, entre as dezenas de fogueiras, até encontrarem um lugar propício para se acomodarem. Ítalo não pode deixar de reparar nos outros viajantes. Todos usavam roupas grandes e grosseiras que cobriam completamente o corpo, provavelmente para se proteger do sol e do vento, que estava ficando cada vez mais forte nos últimos dias. A maioria apagava as fogueiras, e entrava em suas tendas, aparentando se preparar para dormir. O que era compreensível dado a altura que a lua no céu, a hora já devia ter avançado bastante. 

    Ítalo no entanto não sentia sono, e os outros aparentemente também não, uma vez que continuaram a conversar, discutir e finalmente brigar um com outro até se acalmarem e recomeçarem o processo novamente. De algum jeito tinham se acostumado uns aos outros. Mas em algum momento da noite, a animação diminuiu e um a um, eles adormeceram, deixando apenas Ítalo em claro. 

    Ele, e os outros dois, que não participaram das conversas. Daisy e o homem gordo estavam sentados juntos, afastados a alguns metros do restante. O homem estava, Daisy só parecia gostar de ficar perto dele. 

    Por algum motivo, que não sabia ao certo, Ítalo se levantou de sua cama feita de panos e tecidos e caminhou até eles. 

    Daisy falava com o homem gordo em seu tom reservado, mas se calou quando o percebeu. Ela o encarou sem dizer uma palavra, mas Ítalo percebeu a pergunta que estava sendo feita apenas com seu olhar. 

    “O que quer?” 

    — Oi! O que você está fazendo? 

    — Nada — A garota respondeu. Seus olhos mostravam o desinteresse dela em responder. 

    — Certo, beleza — Ítalo não sabia direito o que falar, nem sabia ao certo por que estava falando com ela naquele momento, na verdade. 

    — Você não leva muito jeito com mulheres não é? — Ela disse abrindo um sorriso jocoso. Uma mudança súbita se comparada a sua expressão amedrontada de sempre. 

    Ítalo sentiu seus pés perderem equilíbrio por um momento frente ao questionamento. 

    — O… o que você quer dizer com isso? 

    Daisy deu de ombros e voltou a olhar para o homem gordo. Ítalo fez o mesmo. Ele estava amordaçado. Embora continuasse grande, parecia ter emagrecido bastante no tempo em que permaneceu viajando, parecia mais fraco. Porém Ítalo ainda lembrava da força de suas mãos. 

    — Você tem medo dele? — Daisy perguntou. 

    Ítalo franziu as sobrancelhas. 

    — Não… quero dizer, só acho que… 

    Daisy riu. Um som doce, quase infantil, quase malicioso, ecoando através de sua boca. 

    — É claro que tem, tá na sua cara toda vez que olha pra ele. 

    Ítalo engoliu em seco, seu rosto corando de vergonha, suas pernas tremendo. Por que não negava? 

    — Me diz uma coisa, por que lutou contra ele? 

    Ítalo perdeu o ar e sentiu sua boca secar enquanto se lembrava daquela vez. Ele se jogou de forma atrapalhada em cima do homem. Por que fizera aquilo? Tentou o enforcar à sua maneira, mas foi rebolado de cima dele, quando o abismo de força entre os dois ficou claro. Por que fizera aquilo? Foi jogado no chão, esmurrado, chutado, enforcado. Por que fizera aquilo? 

    Por causa de Tyler? Não, as palavras insensíveis do jovem estranho que acabara de conhecer não o motivaram. Foi Pamela? Não, o esforço inútil dela em tirar o homem de cima de Marcelo não o moveram a ajudar. O que foi então? 

    — Você sentiu vergonha em eu te achar um fraco não foi? 

    As palavras entraram nos ouvidos de Ítalo como uma onda de choque. 

    — Ah cara, foi mesmo isso? — Ela riu novamente. 

    Ítalo lembrou de olhar para Daisy naquele dia, o que era aquilo que ele tinha visto em seus olhos? Medo? Confusão? Não, ela o olhou com um sentimento que ele conhecia bem. Era desdém. 

    — Você apanhou de um cara muitas vezes mais forte porque não queria que uma garota que não te conhecia te achasse fraco. Isso é bem patético, não? 

    Ítalo tentou olhá-la nos olhos para responder, mas quando notou novamente o mesmo sentimento daquele dia ele os baixou, olhando o chão. 

    — Sim, é, eu sou patético mesmo — disse com um sorriso triste, lembrando-se de todas as vezes que sua madrasta lhe falara coisas parecidas. 

    Era verdade no final.

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