Capítulo 50 — Rastejando entre as brechas
O prazo que Theo deu a Selina já estava nas suas últimas vinte e quatro horas. No primeiro dia, Theo frequentou o clube de lutas, onde batalhou contra Ivan e ganhou uma cicatriz no ombro esquerdo. Como instrução de Sigmore, Theo voltou ao apartamento no qual estava hospedado e continuou se concentrando e tentando alinhar os seus chakras.
Theo adotou a prática física apenas por algumas horas, mas parou quando notou a falsa evolução que estava tendo. Afinal, ele apenas parecia evoluir e se curar, mas não estava tendo resultado algum.
Quando decidiu parar de praticar para buscar respostas, alcançou um raciocínio depois de ler um artigo sobre espiritualidade disponível numa biblioteca próxima.
Neste artigo, ele descobriu alguns selos de mãos específicos para cada tipo de meditação. O principal mudra que chamou sua atenção, foi o mudra de Hakini, um gesto usado para uma concentração melhor. Ao entender como funcionava, o garoto sentara no mesmo lugar de sempre: no colchão macio, ajustando a postura e com as costas escoradas na parede.
Quando utilizou o mudra de Hakini para treinar, ele sentiu o fluxo de energia se movimentar com mais liberdade por todo o cérebro e veias de energia. A energia estava tão “liberta”, que o corpo de Theo não se acostumou com aquela sensação tão linda.
Após colocar o mudra em prática, Theo percebeu que sua evolução ainda estava fraca, lenta. Naquele ritmo, ele conseguiria no máximo refinar sua energia somente um pouco, mas não como ele gostaria.
Foi então que ele colocou algo em prática: meditar no próprio plano espiritual. Utilizando um raciocínio bem lógico, porém, tão lógico que as pessoas descartam, achando que não terá nenhum resultado.
Theo pensou no conceito de plano espiritual. Nada mais é que uma forma de acessar a própria mente. Conseguir se materializar na sua própria imaginação, num mundo de sonhos criado por si, onde somente você tem acesso inteiramente. Você cria, você destrói.
Muitos descartam esse conceito pois levaria muito tempo para ajustar a própria mente. Deixar o espírito tão limpo e vazio que poderia apenas imaginar e sentir. Alguém com disciplina conseguiria fazer isso. E Theo fez.
Esvaziando sua mente, criou um cenário confortável para ele, criando apenas uma enorme pradaria sem fim. Algo que não iria o afastar do seu real objetivo. Após isso, ele apagou o conceito do tempo como o senso comum trata naquele mundo: algo absoluto, que não pode ser alterado.
Theo trata o tempo como relativo. Cada um vê esse conceito conforme a própria mente consegue raciocinar. Mentes que pensam demais veem o tempo passar devagar. Mentes normais enxergam o tempo passar normalmente, como a maioria vê. Essa foi a explicação mais rápida que Theo conseguiu encontrar para explicar os momentos de alta adrenalina, onde o tempo parece parar, quando na verdade continua normal.
Ele conseguiu aplicar isso no seu próprio plano espiritual. O tempo deixou de ser absoluto e se tornou relativo — como realmente deve ser. Um minuto no mundo físico se tornaram em cinco horas no plano espiritual dele. Usando o mudra para se concentrar mais ainda, conseguiu refletir durante cinco dias no plano espiritual.
Condensando e refinando a própria energia, compreendendo o universo. Como a ciência, tempo e universo trabalham juntos para entrarem em harmonia. Pensando até sobre Liam Mason.
Com o tempo, Theo veio aprendendo a deixar de odiar o próprio passado. Abandonando a ideia de que Liam era um lixo assassino, e adotando a visão de que, até mesmo em alguma parte daquela existência vazia, haverá algo que enriquecerá o desenvolvimento para a personalidade que ele adotou agora.
Enquanto refletiu sobre tudo, a energia de Theo vagava pelas veias do chakra como o sangue nos vasos sanguíneos. Diferente de alguém no início, cujo possui uma energia mais sólida e difícil de manipular, a cada ciclo que se repetia, a energia de Theo parecia como a própria água: tão maleável que poderia torná-la em tudo que ele quisesse. Levá-la para onde quiser.
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— Sir Amiah! — gritou um soldado, curvando levemente os ombros enquanto uma gota de suor escorreu seu rosto.
— Por que um general está aqui?… — Um murmúrio escapou da multidão que circulava uma loja de luxo.
— É um caso que envolve uma família nobre. Então acho justo que… Se curve! — ordenou, pegando habilmente a cabeça de um soldado e forçando-o a se curvar.
Uma multidão de moradores preencheram as ruas principais de Fulmenbour, impedindo a entrada na maior loja da região. Uma loja conhecida por ser frequentada apenas pela nobreza e realeza, mas que repentinamente foi alvo de uma tragédia.
Às oito da manhã, dois disparos de fogo ecoaram pelas ruas, despertando qualquer um. Os disparos foram efetuados na loja, tendo como alvo o sobrinho do atual mestre de Fulmenbour. Dois seguranças do garoto morreram, enquanto o alvo foi levado ao hospital com um ferimento no ombro.
O caso chocou a cidade, pois tinha vinte anos que nenhum assassinato ou tentativa desse crime ocorrera em Fulmenbour. Ainda mais contra a própria realeza.
Como estava próximo, retornando para onde treinaria Ivan naquele dia, Amiah decidiu ver a situação. Um soldado informou todos os detalhes, e então, o general imperial decidiu checar a situação.
As prateleiras da loja estavam totalmente quebradas, derrubadas no chão, com marcas dos disparos e sinais de batalhas. O sangue dos guardas estava por todos os lados, junto de rastros. Tais rastros que ninguém viu, mas foi o primeiro sinal que Amiah detectou enquanto um capitão debatia
— A família Pasqcuar que lhe enviou? — indagou o capitão.
— Não. Estava por perto quando vi a multidão. Inclusive, dispenso-os — ordenou Amiah, se referindo à multidão lá fora. — Não gosto de tumulto enquanto trabalho.
Desamarrando uma das faixas que seguravam seu hanfu 1, Amiah caminhou por dentro do estabelecimento enrolando a faixa no braço direito. Os olhos do general brilharam em cor âmbar, revelando a ele uma onda de calor deixada por mana.
“Se há sinais de mana, então por que eles usaram armas de fogo?…” ponderou Amiah, estreitando os olhos.
Relaxando o braço direito para baixo, o general dispersou sua faixa, soltando-a do antebraço e a fazendo deslizar pela mão. Enquanto deslizava, a faixa preta de Amiah se transformou numa umbra scalae, uma rara espécie de serpente com a peculiar capacidade de ocultar a própria presença de qualquer detector. Além de, assim como algumas espécies de serpentes, a capacidade de enxergar ondas de calor e mana.
Seu corpo é longo e sinuoso, coberto por escamas negras que reluzem com um brilho opalescente quando expostas à luz. Por fim, o seu maior charme: suas íris são envoltas por anéis cintilantes que aparentam absorver a luz. Esses anéis são os responsáveis pela visão absurda do animal.
De repente, os olhos carmesim de Amiah adotaram a mesma aparência: anéis cintilantes surgiram e partilharam com o general a mesma visão da serpente. No olho esquerdo, Amiah enxergava com a própria visão enquanto no olho direito, ele via o ponto de vista de sua invocação.
A serpente rastejou pelo andar, passando entre os escombros e analisando os rastros de mana deixados para trás. Amiah, por outro lado, seguiu os rastros de sangue que o levou até uma janela quebrada.
Se apoiando na parede, Amiah olhou para o lado de fora da janela, onde era ligada com uma das ruas perpendiculares — uma série de ruas que ligam a zona inferior de Fulmenbour com a zona superior.
Algumas marcas de sangue continuaram pelas paredes que acompanham a rua. Amiah projetou como se um dos culpados tivesse pulado pela janela e ficado desnorteado, batendo nas paredes para se equilibrar até finalmente se encontrar com o veículo de fuga, provavelmente uma carruagem.
— Ying — chamou Amiah. A serpente negra rapidamente obedeceu ao chamado de seu mestre. — Já consegue seguir o rastro da mana do autor do crime?
A serpente negra, Ying, rastejou por todo o corpo de Amiah, parando no ombro do general e emitindo um som, similar ao chocalho de uma cascavel.
— Ótimo. Vá pelas sombras e tome cuidado. Quando achar o culpado, me alerte.
Amiah repousou a mão direita no suporte da janela. Deslizando pelo braço de seu mestre, Ying desceu pela parede lateral da loja e desapareceu nas sombras em direção ao rastro de mana largado para trás.
“Os autores desse crime com certeza querem chamar atenção. Deixar tantos rastros assim para trás, principalmente de mana? É um recado para o patriarca Pasqcuar? Eles não são iniciantes, nem idiotas…” analisou Amiah, retornando para fora da loja. “Lorde Apófis, por que estás tão agitado?”
‘Consegue me sentir, meu intermediário?’ indagou uma voz na cabeça de Amiah.
“Sua alegria está quase palpável em minha frente.”
‘Me perdoe.’ gargalhou, sarcasticamente. ‘O senhor do caos realmente segue sua essência. Não à toa que você foi guiado até aqui.’
“O que quer dizer com isso?”
‘Enxergo um enorme e podre fio de caos no futuro… Dias piores estão por vir, Amiah. Mas parece tão incerto que nem eu mesmo consigo ter certeza.’
— General Amiah — chamou o capitão. — Meus soldados estão recuando a multidão. Descobriu algo?
Massageando a nuca, com seus dedos entre os fios de cabelo lisos e negros, Amiah retrucou:
— Só que eles fugiram para a zona inferior. Provavelmente para os subúrbios fora das muralhas. Como sei que vocês não teriam coragem de invadir lá, enviei um dos meus agentes. Informarei diretamente à corte de Fulmenbour caso ache algo.
— O senhor acha que…
— Foi tudo orquestrado? Com certeza. Eles deixaram pistas demais. Querem ser seguidos. Enfim, vou retornar ao meu trabalho — disse saindo da loja. — Agora sou mentor de Wispells, então tenho que cuidar de um bando de adolescentes.
— Até outra hora, general! — despediu-se, entendendo as necessidades de Amiah.
Quando se retirava do lugar, três soldados passaram ao lado de Amiah. Dois soaram frio enquanto um permaneceu cabisbaixo. Os três saudaram o capitão e entraram na loja, com um deles — aquele que ficou cabisbaixo — indo para o fundo da loja, subindo a escada para o andar superior.
Ele subiu o andar um pouco tenso, tendo cuidado para não chamar atenção até chegar em uma porta. Ao passar pela porta, todas as fontes de luz do armazém foram tomadas por uma sombra única e poderosa que circulou somente naquele andar.
— Tudo foi feito? — Uma voz madura e sem direção tomou os ouvidos do soldado.
— Sim — respondeu. — Amiah Neidr notou todas as pistas que deixamos. Planejamos outros ataques pela zona superior de Fulmenbour, então os irmãos Windsor também devem ficar distraídos. Assim como os aspirantes a sub-tenentes.
— Entendido…
— É realmente isso que querem? Concentrar os ataques num só lugar? Podemos levar essas distrações para o império inteiro…
— Não — interrompeu a voz. A silhueta de um homem apareceu em frente a janela. Para aqueles fora do prédio, ele era invisível.
O homem estava bem-vestido, com um sobretudo preto cobrindo todo seu corpo e um chapéu black hat. A silhueta de seus olhos amarelos brilharam, seguindo Amiah indo em direção a uma carruagem no início da rua.
— Devemos concentrar nossos ataques apenas nas cinco cidades das ordens. Distrair os mais fortes daqui enquanto Shadra move as peças em Loureto.
— Quando será o grande dia? — ousou perguntar, mesmo sabendo que poderia sofrer retaliação com aquelas palavras descuidadas.
— Quando o senhor da escuridão desejar retornar. Estivemos nas sombras durante décadas, apenas esperando o momento perfeito para pegar de volta o que Erling De Lawrence roubou de nós outrora. Então criança, não seja ansiosa.
— C-claro… — gaguejou ao ser reprimido por uma aura densa de escuridão.
— Volte a sua rotina, criança moribunda.
O soldado curvou gentilmente a cabeça antes de descer as escadas. Junto dele, as sombras desapareceram daquele continente, deixando apenas um odor de prata.
- Hanfu são as roupas tradicionais chinesas, trajes que representam a verdadeira origem do general[↩]
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