Capítulo 52 — Serach (1)
O galopar de dois cavalos-brancos interrompeu o climático ambiente do bairro comercial. Na carruagem preta bordada por detalhes carmesim, Theo tremia sua perna em ansiedade, olhando para Amiah e esperando seu mestre terminar de ler um artigo.
Por vezes, Theo olhava pelas janelas para desviar o tédio. Estalando os dedos e pescoço até que seus ossos não dessem mais sinais.
— Para onde estamos indo? — questionou Theo, vendo que estavam passando por qualquer rua.
— A lugar nenhum — respondeu Amiah. — Estamos apenas vagando por aí — suspirando, continuou: — Certo, vamos começar.
— Começar o quê? Exatamente.
— Todos da classe especial já estão indicados para o interescolar. Todos exceto você. O deixei confortável por enquanto, pois eu tinha certeza de que iria atrás dessa indicação sozinho. Porém, faltam menos de dois meses para começarem as preparações das academias. Isso se, as academias ainda pendentes não confirmarem.
— Ainda há academias pendentes?
— Cerca de cinco das vinte. Como 75% aprovaram, as demais ficarão de fora dessa vez caso não confirmem a presença. Wispells foi a primeira. Até agora temos cento e quinze alunos indicados e mais três mil agindo para conseguirem isso. Porém… sabe qual a etapa inicial para participar, certo?
— O festival dos Sete Dias da Criação?
— Exatamente. A única avaliação que Wispells realiza anualmente. Ocorre durante o primeiro mês do ano. As indicações possibilitam passar essa avaliação direto…
— Já que há somente cinco vagas adiante, correto?
Amiah arqueou as sobrancelhas. — Exatamente — concordou. — Há somente cento e vinte vagas por academia; por isso há apenas cinco lugares para Wispells. Mas… se você não pediu indicação da Lady Luanne e nem do Ethan, você pretende…
— Disputar as cinco vagas restantes — retrucou Theo, antes mesmo que seu mentor concluísse. — Meu pai me ensinou que eu devo utilizar meu sobrenome sempre que necessário, porém na hora de provar minha força… Eu tenho que fazer isso por si só, sem depender de terceiros.
— Ele é idiota. Mas é verdade. Se depender da frase: “Sou filho do grandioso herói Fênix; Ethan de Lawrence”, você não se diferencia da maioria dos cento e quinze indicados…
— Eu não me diferenciaria dos demais nobres — concluiu Theo.
— Correto. Mas… E se você não passar na avaliação?
— Reprovarei, então. Não tem nada eu ficar fora desse interescolar, terei outra chance em dois anos.
“Ele é descuidado e complicado…” pensou Amiah. “Porém… É um Ethan com mais brilho nos olhos.”
— Certo. Respeitarei sua decisão. Então, — suspirou. — encerramos um assunto, mas tenho outro para abordar. Ivan comentou comigo sobre o duelo de vocês e me disse sua conclusão… O elemento dele não é gelo?
Theo assentiu que não. Amiah se aconchegou no banco, elevando o pescoço e prestando atenção no aluno.
— Já presenciei elementares de gelo antes e eles sempre conjuraram o elemento no seu estado sólido. Ivan é diferente… Ele conjura no estado gasoso e após isso manipula a temperatura para a criação de granizos, etc. Além disso, o gás que ele invoca é inerte. Tentei usá-lo para criar uma reação de combustão, mas foi inútil. Não houve reação entre os elementos… Além disso — recordou-se. — era tão frio que me causou uma cicatriz de queimadura.
— Hum… — Amiah suspirou, pensativo em meio a tantas análises. — Um gás inerte, frio o suficiente para causar a sensação de queimadura… Você acha que…
— Sim — assentiu Theo. — Talvez ele tenha saído dos dez elementos e lhe foi concedido um dos elementos periódicos…
— Nitrogênio.
Estalando o dedo do meio contra o polegar, Theo apontou para Amiah. Se arrependeu em seguida. Camille — a mãe do garoto — ensinou que apontar o dedo para os mais velhos era falta de educação. Mas isso realmente faria diferença ali? Ele se perguntou sobre isso.
— Exatamente.
— Tem certeza disso?
— Foram análises feitas durante a luta. Mas sim, tenho setenta e cinco por cento de certeza.
— Claro, claro. — Pondo o indicador direito na testa de Theo, Amiah orientou: — Espero que saiba seu limite dentro dos sete dias. Não quero ter que explicar ao teu pai que tu reprovou por que deixei tomar suas próprias decisões.
— Está… bom — gaguejou.
Relaxando os ombros, Amiah escorou no banco da carruagem e retornou a ler o artigo. Nervoso e ansioso, Theo desvia o olhar para fora da carruagem, observando a cidade movimentada. Seus olhos estreitaram-se quando se lembrou do que estaria por vim: em menos de vinte-e-quatro-horas, ele e Selina iriam se confrontar novamente.
☾
Numa das vielas da região inferior de Fulmenbour, passos ecoaram entre as casas humildes e de tijolos. A eletricidade nas simples lâmpadas das paredes falharam, demonstrando uma possível interferência. Selina se apoiou numa parede para descer uma escada estreita, tal que dava acesso até a escadaria maior ligada ao pátio local.
Retirando uma das flechas em sua aljava, Selina armou seu arco, se preparando para qualquer conflito sem aviso. Ao evitar quaisquer movimentos brutos avançou, pois não sabia o que realmente a esperava naquele quase absoluto breu da periferia.
— Seeeelie!~ — exclamou Luanne, diretamente nos tímpanos de Selina.
Selina paralisou de ódio, quebrando totalmente todos os cuidados que tomou até agora. Estava no meio de uma missão desconhecida, então por que Luanne iria interferir usando atributos sonoros?!
— Sacerdotisa… — sussurrou a moça.
— Seelie! Como está indo a missão?
— Estava bem, até a senhora interferir!
— Mas eu não cheguei a interferir… Exceto se sua presa for um ser com audição aguçada. Enfim, você cuida disso. Não esqueceu de seu compromisso com Theo, né?
— Não. Ele retorna amanhã, então começaremos os preparos amanhã mesmo… O garoto irá realmente participar dos sete dias? O Sir Amiah pode ter exagerado…
— O Amiah não brinca. E já era de se esperar do Theo. Eu o eduquei para isso!
— A senhora só o viu uma única vez há dez anos… — argumentou.
— Ei! Silêncio.
— Não grita! — exclamou em murmúrios. — Eu queria saber bloquear meus tímpanos para não ser afetada por esse atributo…
— Você teria que ficar surda, nesse caso. Haha. Certo, certo. Deixarei você em paz. Só conclua a missão rapidamente e descanse! Levarei o Theo para o mosteiro em dez horas — ordenou e informou Luanne.
“Certo…” suspirou.
Relatório — 7680, Finimis
Ordem de Fulmenbour, Distrito inferior
Conduzindo sua energia refinada pelas veias de mana, Selina distribui a própria energia pelo local, podendo ver rastros de energia remanescentes de sua presa. Eram rastros neon, vivos como se o dono daquela energia estivesse presente em todos os lugares. Marcas estavam no ar, assim como no chão e paredes.
Uma névoa densa, invisível a olhos nu, preenchia as vielas e até subia as paredes das casas de tijolos. O ar naquela região estava tão pesado que os moradores reclamaram de desconforto, esse foi o principal motivo da missão ter sido dada à Selina.
— Ah… — resmungou, encarando uma árvore no meio de um pátio quase abandonado. Os rastros da névoa saiam de suas raízes. — Você não é arcano registrado, não é? Mas és um arcano bem poderoso… Como isso chegou a tal nível no meio de um distrito?
Ela ignorou essas dúvidas breves e agiu.
Preparando uma flecha, Selina mirou na base da árvore, de onde saia um brilho lilás ofuscado. Suspirou fundo, puxou a corda de seu arco. Fechando os olhos e refletindo por um instante, disparou a flecha contra a luz, que, no entanto, dizimou a flecha antes mesmo que chegasse na árvore com uma onda de energia.
Tal onda que, em questão de segundos, formou uma cortina energética engolindo todo o pátio. Paredes sólidas e pretas de energia cobriram o cenário, impossibilitando visualizar as casas ou qualquer coisa de fora.
— Merda… um templo — reclamou Selina.
“Então foi só criar uma reação de energia que a despertei? Não posso brincar.”
Dos paralelepípedos do chão, uma mão se ergueu. Pálida, tão branca que chegava a ser transparente e destacava sua própria carne: ainda branca, porém, num tom azulado. Runas luminescentes cobrem-na, com retas seguidas por círculos e setas. A mão, mesmo que imponente, era pequena, do tamanho da de uma criança e tinha somente quatro dedos com garras enormes.
Seu braço logo se mostrou, puxando para fora do piso o corpo comprido e de réptil. Sua cauda era comprida e marcada por uma pelagem azul-celeste, mesclada de um tom violeta e vinho. Dois pares de asas cobriam sua face enquanto outro par de asas sustentava aquela criatura no ar.
Ao ver uma criatura que jamais fora registrada, Selina estreitou os olhos em preocupação. Porém, não perdeu tempo.
Em momentos como este, onde desviantes se encontram com novas criaturas, o objetivo deles seria prolongar a luta para poder catalogá-la. Assim, se outros encontrassem-na, saberiam como derrotar. Entretanto, Selina é conhecida por detestar costumes inexplicáveis como o de segurar a própria força em combate.
O que importava naquele momento, era destruir o cristal arcano abaixo das raízes daquela árvore e preservar a paz para os inocentes ao redor.
Repousando a mão no próprio rosto, Selina alongou as pernas enquanto fechava os olhos. Uma substância aquosa cobriu seu rosto, que logo passou para uma forma sólida e deu forma semelhante a uma máscara branca. Por um momento, os orifícios que contornam seus olhos ficaram vazios, pretos como o breu absoluto.
— Me empreste tua força, Alunne. E me banhe com o brilho azul das duas luas! — conjurou Selina.
Algumas runas na máscara tomaram forma, representando alguns ciclos da lua, com uma flecha atravessando as marcações dos olhos. Seus olhos e as runas foram banhados por um esbelto brilho azul. Da máscara em seu rosto nasceu um véu das sombras, cobrindo o corpo de Selina como um manto negro.
Ao abrir os olhos, Selina foi surpreendida pela criatura que, agilmente, avançou contra atacando-a com sua cauda. Sem saber que efeito poderia ter em si caso fosse acertada fisicamente, a seguidora de Alunne recuou um passo.
Preparando novamente uma flecha, Selina rapidamente atirou contra a criatura, acertando no meio de seu corpo e atravessando as cortinas do templo. O corpo da criatura caiu no chão sem fazer barulho algum. Com um passo largo, Selina avançou contra o cristal, que respondeu à ameaça com uma liberação de energia.
No segundo que ela atacaria novamente, uma presença banhou todo o templo. O sangue viscoso e colorido daquela criatura havia se espalhado pelo chão, e logo dava vida a mais seres. Dessa vez, menores e sem o par de asas no rosto, revelando um único olho azul. Ao todo, foram cinco bestas
“O sangue gera vida? Então não posso deixar nem suas moléculas no ar.” ponderou Selina, posteriormente esticando seu arco e deixando-o numa aparência de bastão com fio.
A corda do arco foi esticada num nível que sequer mexia com o movimento repentino. Selina utilizou a corda como o fio de uma espada, resistente o suficiente para cortar as criaturas ao meio com um simples deslize.
Ela deu passos no chão como se estivesse a deslizar pelo gelo, com movimentos tão suaves que pareciam passos de dança. A corda do arco atravessou o núcleo das criaturas igual a mais afiada das espadas cortando uma simples e frágil folha. Assim que a mana no fio entrou em contato com a mana no núcleo das criaturas arcanas, as bestas explodiram num feixe de luz.
Sem permitir que o cristal criasse uma nova criatura, impedindo completamente o ciclo e ignorando o padrão que os cristais geralmente possuem, ela retornou seu arco ao normal e preparou outra flecha, porém, esta banhada com sua própria aura. Alterando a tonalidade prateada para uma ponta vermelha.
Atirando contra o cristal, a flecha de Selina atravessou uma projeção que estava sendo formada, deixando um buraco no ar. Brutalmente, mas, gentilmente, a flecha atingiu o cristal arcano — era deformado como uma rocha natural, contudo, belo e de cor púrpura — e o fragmentou em duas partes.
Uma parte menor ficou presa nas raízes, sendo agarrada pela árvore como uma mãe abraçando seu filho. Já a parte maior, caiu para o lado, numa região onde era de fácil acesso.
Segurando o arco na mão esquerda, Selina se agachou na frente da árvore e esticou o braço direito, tentando alcançar o cristal. Somente ao encostar o dedo no cristal, o templo se desfez. A cortina de sombras que envolveu o local foi puxada pela gravidade e se chocou com o chão, entrando nas brechas dos paralelepípedos que formam o pátio.
Com um pouco de dificuldade, Selina finalmente conseguiu puxar o cristal para si. Ela notou que, mesmo partido em duas partes, o cristal ainda emanava energia, uma mana pura e muito refinada. O que levou a crer que o cristal nasceu pela morte de um ser superior. Talvez um dos mitológicos dragões? Ou alguma lenda local? Selina não sabe responder.
Tendo cuidado, soltou o cristal numa bolsa amarrada na cintura, tal que isolou a energia. Logo, poderia esconder que o cristal arcano estava ali. Quanto à outra metade, Selina pensou que as raízes da árvore a protegem por um simples motivo: o cristal estava mantendo a ambientação local. Ou seja, retirar o outro fragmento seria igual a condenar o ecossistema daquela região. Mais tarde ela apenas avisou aos supervisores que deveriam ficar de olho naquele cristal e evitarem que algo pior aconteça.
— Ha… — resmungou, olhando para a lua.
“Ainda terei de revisar o material do loirinho…”
Ela se levantou apenas com a coragem de ainda viver, pois a vontade de agir já havia morrido. Eram além da meia-noite.
“Ser estagiária é uma chatice.”
Selina voltou a subir os degraus dos quais chegou ali, bocejando e de olhos pesados ardentes. A única coisa que ela notou naquele momento, foi que as lâmpadas estavam normais agora. Sem oscilar ou apresentar falha. Era um motivo para dormir bem agora.
Após subir alguns degraus, ela desapareceu completamente no breu das vielas.
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