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    Zaya olhava para o teto de pedra lisa. Seu pescoço e costas doíam, seu estômago roncava devido ao longo tempo desde a última refeição. Passara a noite em claro encarando a escuridão silenciosa acima. Sabia o motivo de porque estava acordada, e o detestava. 

    Aalyiah se remexeu ao seu lado, murmurando qualquer coisa em um grunhido sonolento. A garota dormira como uma pedra a noite inteira, abraçando Zaya com força. Não o fazia quando acordada e negava que o fizesse quando adormecida. Zaya apenas sorriu olhando a irmã, sem entender bem o porquê. 

    Ela se levantou, sentindo músculos e ossos rangerem e estalarem em protesto. Embora o sol não as alcançasse, ainda era noite, ou madrugada para ser mais preciso. Podia dizer isso pela quietude da aldeia a sua volta. Os cultivadores ainda não tinham ido até o campo e as patrulhas dos guardas não eram tão frequentes. 

    Zaya caminhou pela casa, sem um objetivo específico. Estava escuro demais para enxergar qualquer coisa, então seus passos eram comedidos para que não tropeçasse em nada. Chegou até a mesa em que ela e Aaliyah faziam as refeições e passou uma mão sobre ela. Não tinha nada de muito especial nela. Era feita de pedra – como quase tudo dentro da aldeia – e mesmo assim parecia especial de alguma forma. Por alguma razão sempre fazia isso antes de sair para o exterior. 

    Seu pai dizia que a mesa é o lugar mais importante de uma casa. Ela não sabia, ou pelo menos não se lembrava do porquê, mas quando se levantava pela manhã dessa forma e andava até ela, Zaya podia perceber que era verdade. 

    Foi até a cozinha procurando a dispensa com a intenção de revistar quanto de mantimento ainda havia em seu pequeno estoque, sorrindo ao ver a quantidade de pão e cactos guardados. 

    “Com sorte dará até a próxima lua, e ainda poderei arranjar alguma presa no caminho de volta”, pensou. 

    Toda presa trazida de volta em expedições de coleta era dada ao anfitrião, é claro, mas era concedido uma recompensa a quem a tivesse pegado, e Zaya queria aproveitar essa em especial para provar novamente o gosto de carne. 

    Ela suspirou e voltou para o quarto. Tirou a fina camisola que usava para dormir, vestiu sua túnica, amarrou uma bolsa junto a cintura, amarrou o cabelo e pôs sua capa. Suas mãos mais lentas do que de costume, percebeu. Não parecia com vontade de se vestir, ou de sair. Talvez porque sabia que demoraria mais do que das outras vezes, ou por as tempestades de areia estarem próximas. Talvez porque Saadi iria também. A lembrança do homem alto e magro fez um calafrio percorrer seu corpo. 

    Zaya suspirou novamente, olhou para Aaliyah que ainda dormia pesadamente na cama e retornou aos preparativos para sair. Foi até a dispensa e tirou o mínimo da quantidade de pão e cacto que acreditava ser necessário para a viagem. “Uma volta de lua”, pensou, “Aaliyah ficará bem”. 

    Zaya voltou para o quarto ao ouvir o som dos cultivadores lá fora arrastando os pés de forma desanimada. 

    Ela estava quase completamente pronta, mas faltava uma coisa. Foi até um baú próximo a cama e tateou por cima até encontrar uma escova. Era feita de madeira e, embora fosse tão antiga quanto a própria Zaya, ainda se mostrava em bom estado. 

    Zaya passou seus dedos sobre a escova, sentindo sua textura, lembrando dos dias em que via sua mãe pentear os cabelos com ela. Era seu pequeno tesouro, o único que não lhe havia sido retirado. 

    Ouviu um som vindo da cama, e se virou para ver Aaliyah sentada sobre as cobertas, esfregando seus olhos enquanto despertava. 

    “Ótimo, me poupa o trabalho de acordá-la”, pensou. 

    — Lya — Zaya chamou com a voz mais doce podia fazer. 

    Aaliyah olhou para ela. Era difícil dizer que expressão estava fazendo devido a completa falta de luz, mas Zaya podia ter uma ideia dada a sua reação. 

    — Não, hoje não, por favor! — A garota implorou, chorou, lutou, mas por fim se rendeu, deixando-se ser penteada. 

    — Aí! Não puxa assim, machuca — Aaliyah protestou pondo a mão na cabeça. 

    — Se não se mexer, não vai doer — Zaya respondeu. Suas mãos em constante movimento. 

    — Não me mexi, Aí! 

    — Agora se mexeu. 

    Zaya sempre passava a escova nos longos cabelos de Aaliyah, antes de partir. Também não sabia o porquê disso, mas sempre sentia uma paz dentro de si quando o fazia. Aaliyah não parecia nutrir o mesmo sentimento. 

    Zaya lembrava de ter os cabelos escovados por sua mãe quando criança. Os movimentos fluidos que ela fazia com a escova, suas mãos delicadas e cuidadosas, seu toque quente. Aaliyah não teve a oportunidade de sentir isso. Teria de se contentar com as mãos pesadas de Zaya ao invés. 

    Após longos e relaxantes minutos, ao menos para Zaya, ambas se levantaram e fizeram o desjejum na mesa de pedra. Quando terminaram, Zaya se despediu de Aaliyah com um abraço, que retribuiu. Não costumavam fazer isso, mas por algum motivo sentiu vontade.  

    — Não se esqueça de pegar água todo dia, e cuidado — disse e então partiu rumo à praça principal. 

    Podia ver mais pessoas vagando pelas ruas agora que as cabeças haviam sido retiradas e mandadas para os campos de cultivo para serviram de fertilizante, ou ao menos o velho Zyan afirmava isso. Ela podia ver as pessoas conversando com vozes baixas próximas às portas, e embora não escutasse seus sussurros, sabia do que falavam. A expedição era naquele dia. 

    A muito tempo não realizavam tal coisa, desde os dias em que as aldeias viviam em guerra na verdade, então não era surpresa que tantos olhos curiosos viessem ver os guardas partindo rumo ao mundo lá fora. E Zaya estava entre eles, havia ficado viva apenas para isso. 

    Quando chegou à praça não pôde deixar de se engasgar um pouco com o que viu. 

    Centenas de homens, estavam em pé em fileiras ordenadas, esperando o momento da partida. A aldeia tinha cerca de quinze mil pessoas. Mais da metade delas eram mulheres, crianças e idosos. Zaya não sabia ao certo, mas já havia escutado de Luqa sobre seu pai reclamando do baixo contingente de guardas da aldeia. Segundo ele, não havia mais de mil e quinhentos homens pegando em armas. Zaya se perguntava quantos deles estavam ali naquele momento, e qual a necessidade de tal força para ir atrás de apenas algumas pessoas. 

    “Pobre Luqa”, ela pensou ao lembrar do quão animado ele ficava ao falar em expedições, desejando fazer parte de uma mais do que tudo. Enfim foi feita uma, mas Luqa não estava mais vivo para vê-la. Seus ossos teriam de se contentar em permanecer na terra enquanto os homens marchavam rumo ao sol. 

    Os guardas estavam de frente para um estrado onde Zaya pôde ver o anfitrião em pé de forma imponente. Saadi estava ao seu lado, assim como Burak. 

    Um tremor leve atingiu o corpo de Zaya ao vê-los. 

    “Está tudo bem. Eles estão longe”, disse para si mesma. 

    Zaya se esgueirou até o lugar que lhe cabia, junto a outros como ela. Quando se aproximou, a reação dos outros buscadores foi tão indiferente como poderia ser. De repente Zaya se viu sentindo falta das saudações formais de Luqa, das frívolas piadas de Batna e até das mentiras de Touma. Se sentia solitária em meio a tantos. 

    — Meus leais e valentes homens — O anfitrião começou a falar sem muitas cerimônias —, reuni-vos aqui hoje pois mais uma vez preciso de seus braços fortes. 

    Sua voz era poderosa e alta o bastante para alcançar a todos. 

    — Preciso que recuperem algo que pertence a essa aldeia, a mim, a nós — disse erguendo os braços. — A viagem será longa e perigosa, por isso enviarei convosco meu mais valoroso soldado. 

    Ele estendeu uma mão em direção a Burak, que se mantinha em pé, batendo com um punho na couraça de bronze de forma orgulhosa. Um grito de aclamação seguiu entre os guardas. 

    Tudo o que Zaya lembrava ao olhar para o homem era a cabeça de Luqa rolando pelo chão após Burak separá-la do corpo. 

    — E também meu mais leal conselheiro, Saadi — Baaz fez o mesmo gesto ao homem magro e alto a sua direita. 

    Não houve clamor, brado, ou qualquer reação além do mais incômodo silêncio que Zaya jamais ouvira antes. 

    Se Saadi se incomodou com isso, ela não poderia dizer. Baaz no entanto, não pareceu se importar, continuando seu com discurso: 

    — Muitos de vós morrerão, mas garanto que a recompensa alcançada trará glória para essa aldeia e esse povo. Vão e cumpram seu dever homes de Baaz — O anfitrião bradou, e foi respondido por um brado de afirmação. 

    Zaya se perguntava sobre a necessidade de tantos homens para ir atrás de um grupo com não mais de dez pessoas. Aqueles pergaminhos eram tão importantes assim? 

    Burak desceu do estrado e subiu em cima de um grande camelo dourado, dando ordem para a partida. Saadi entrou em uma espécie de tenda puxada por camelos que Zaya nunca vira antes, que começou a se mover. Logo todo o contingente os seguia. Zaya entre eles. 

    “Ficará tudo bem, será como das outras vezes, não há motivos para se preocupar. Você logo, logo, estará de volta junto a Lya”, disse a si mesma, sentindo o vento quente soprar em seu rosto e seus olhos doerem quando os portões de ferro se abriram, iluminando a todos com a luz do sol. 

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