Capítulo 56 — Julgamento entre sigilos
— Aquela bastarda jogou a responsabilidade em ti? — reclamou Juno, batendo a mão em uma mesa de pedra.
Era tarde da noite, a luz da lua iluminava a mais alta das torres do mosteiro de Alunne. As sacerdotisas estavam se reunindo, dando voltas na mesa enquanto procuravam os assentos adequados.
— Não xingue sua superior, anciã — sugeriu Susan, afastando sua cadeira de mármore.
— Pecadora imunda, não me direcione sugestões.
Tyla coçou a testa, impaciente.
— Pode parar de chamá-la assim? A deusa Alunne já a perdoou, nós também deveríamos. — Tyla afirmou enquanto uma veia pulsava de sua testa.
— Ela só está assim porque nunca experimentou. Anciã, a senhorita está muito estressada. Deveria experimentar esse pecado impuro qualquer dia…
— Podem parar?! — exclamou Selina, mesmo que em um tom de ordem na frente de suas superiores. — Já está tarde, vamos concluir logo isto.
— A noite é uma criança, e é a ela que seguimos. Mas, claro. Vamos — disse Susan. — Tem algum ponto a destacar sobre o rapaz?
— O controle de energia dele é quase perfeito, basta apenas se tornar imprevisível — apontou Selina. — E também…
— Ele não aceitou Alunne em sua consciência — completou Tyla. — Isso é um probleminha.
— O problema está em Luanne — disse a anciã.
— Tenho que concordar — retrucou Susan.
A terceira sacerdotisa cruzou os braços e suspirou, um pouco de preocupação afundou sua mente.
— Luanne nunca amou ninguém, jamais considerou. Até conhecer o Sir Ethan e considerá-lo um irmão mais novo… Agora, ela considera o rapaz como um filho.
— Acha que esse amor pode estar prejudicando ela? — Selina questionou.
— Com toda certeza. Ela tem tantas expectativas no rapaz, achando que ele será um novo Lumen, que… Não está dando espaço para ele evoluir sozinho. Esse é um grande erro.
— Ela dá exemplo a ele e espera que o execute tudo em apenas algumas horas. Por certo deve pensar que todos os prodígios são abençoados igual a ela — murmurou Juno.
— Mas, com a Seelie vai dar certo. — Susan afirmou com bastante certeza. — Você ficará com ele, segundo Luanne. Então sabe o que fazer. Me siga, tenho algo a dizer somente para ti.
Susan se levantou da cadeira de pedra e caminhou até a porta principal, Selina a seguiu. Elas caminharam por um corredor unilateral da torre, onde a lua iluminava como o sol matinal. Susan jogou seus cabelos prateados para trás, amarrando-os em um rabo de cavalo, deixando apenas uma única mecha verde escapar pela testa.
Caminharam até o subsolo da torre, onde ficava o tão desejado por todos os seguidores de Alunne; arsenal da lua. Uma enorme câmara guardando as mais diversas armas empunhadas pelas antigas devotas. Em sua maioria, eram arcos e lanças. Algumas facas e pequenas adagas também estavam presentes, mas era minoria.
A terceira sacerdotisa se agachou na frente de um armário, fuçando por debaixo do móvel, onde retirou uma caixa enorme. Era uma caixa de madeira, grande em largura porém fina em espessura. Susan a entregou para Selina.
— Entregue isto ao jovem mestre da casa Lawrence, mas não diga que fui eu quem entreguei. É um segredinho entre nós, tudo bem?
— Claro… — concordou Selina. — O que é isso?
— Uma espada que um druida apaixonado entregou a Lady Luanne há um século. Ela nunca utilizou, então me deu. Acho que é um ótimo presente para ele. Diga-lhe que foi Luanne quem o presenteou com isto.
Selina encarou a caixa admirada, o material era de qualidade. Não apenas isso, mas a espada dentro da caixa, com aquele tamanho todo, ainda era leve.
— Muito bem-querida, agora vá dormir. Deve estar cansada depois daquele espetáculo.
— Boa noite, sacerdotisa — Selina se despediu.
— Boa noite.
☽✪☾
Luanne e Theo estavam deitados na cama, com a madrinha abraçando seu afilhado de uma forma confortável. Luanne já tinha dormido há um bom tempo, porém Theo não teve o mesmo prazer. Talvez pela ansiedade e adrenalina após o combate contra Selina, sequer conseguia grudar os olhos.
Em algum momento da noite, ele desistiu de tentar dormir e se levantou da cama, fugindo do abração de Luanne o mais discreto possível, evitando acordá-la. O rapaz caminhou desnorteado pela casa, onde as luzes estavam apagadas.
Uma coruja cantou em um pinheiro no jardim.
Andando pela sala, ele ligou apenas uma vela para andar pela casa, tentando não acordar Luanne. Não muito tempo depois, achou uma estante na frente do sofá, recheada por livros acabados — pareciam ter décadas, a maioria já tinha folhas amarelas.
Theo puxou o primeiro que mais chamou atenção; na lombada do livro estava destacado o nome de Nalleth Zala. Era maior que qualquer outro, cerca de cinco vezes maior que os demais livros.
Theo colocou o livro por debaixo do braço e caminhou até o sofá, onde se sentou. Deixou a vela em uma mesa em sua frente e tomou ar antes de abrir o livro. Quanto mais coragem criava para abrir o livro, menos vontade ele tinha.
Depois que Alexander mencionou tanto Nalleth, Theo decidiu pesquisar sobre. Diga-mos que o achado sobre o antigo feiticeiro foi… Indesejado. Nalleth era um cultista ao demônio, onde não se importava em sacrificar até crianças para experimentar algo.
Algumas fontes pareciam modificadas, onde diziam que Nalleth nunca chegou a cometer tal atrocidade. Não diretamente, já que o feiticeiro chegou a sacrificar cidades inteiras para seus objetivos.
— Se não tem coragem para abrir, então por que pegou? — Luanne perguntou coçando o olho, em seguida, cobriu seu corpo com um lençol.
— Eu te acordei?
— Você estava inquieto demais. Não podia deixá-lo sozinho até dormir. Nalleth Zala? Esta interessado no pupilo de Baalzeth?
Theo assentiu, e uma dúvida saiu de sua boca.
— Quem é Baalzeth?
Apenas Satã era um demônio conhecido. Baalzeth era mais um conto apagado, algo sem fontes.
— A pergunta certa seria, o quê?
Ela deu a volta no sofá e se sentou ao lado de Theo, o cobrindo com o lençol e puxando para perto de si.
— Há um mito, assim como muitos outros, mas, este sempre foi contado por seres espirituais… Sabe de Lúcifer?
— Sim.
Luanne suspirou.
— Antes da nossa criação, havia o mais absoluto nada. O vazio, um universo caótico liderado pelo deus Chaos, um ser onipotente, onisciente e onipresente. Porém, em algum momento do antigo universo, outro ser perfeito se autocriou a partir do nada. Eles travaram uma guerra, os titãs ao lado do Chaos, e deuses como Zeus, Poseidon e Hades ao lado do “novo Deus do universo”. Uma guerra que perdurou por toda a idade das trevas, onde a luz não existia mais. Os titãs perderam logo, mas a guerra contra o Chaos durou por mais de trezentos milhões de anos.
Ela puxou o livro para si, folheando algumas páginas.
— Depois de tudo, o universo repudiou seu antigo rei e escolheu seu novo. Aquele que chamariam de Yahweh. O universo foi separado em períodos longos de tempo, onde Yahweh criou tudo, e hoje descansa. Apenas seu Espirito Santo comando o céu. Porém, no “haja luz”, os anjos foram criados.
A suprema sacerdotisa de Alunne parou em uma página ilustrada, aparentemente de carvão, porém bem conservada. Uma mancha na folha amarela curiava uma caixa.
— Acima dos Querubins e Serafins, há os Dynamis e uma espécie de anjos com um único representante; Ouranis, o protetor do céu. O dever e obrigação do Ouranis é proteger a caixa de amartíes, onde o deus Chaos foi selado por Yahweh. O primeiro Ouranis foi Baalzeth, um anjo superior a todos os outros, mesmo sendo um mero guarda. Porém, por ser um guarda ele necessitava de força, já que falsas promessas vazavam como névoa para atormentar o anjo.
Passando mais uma folha, Luanne apontou para a ilustração de uma enorme árvore com sete galhos.
— Baalzeth abriu a caixa, no fim. Foi consumido pelo desejo do Chaos e banido para além dos domínios de Yahweh, para outra dimensão chamada de “limbo”. Com o poder do Chaos marcado em sua alma, Baalzeth criou o que tanto se teme; o inferno. Não, ele não criou… Ele é o próprio inferno.
Theo arregalou os olhos.
— Ele se tornou uma dimensão?
— Assim como o universo, sim. Ele ganhou o apelido de “Satanás, o único rival”. Com o próprio poder e o poder do Chaos, se tornou a única coisa a rivalizar com o céu. Criou os demônios, forçou a queda dos anjos e aos humanos cometerem o pecado primordial.
— Nalleth seguia a este ser?
— Seguia? Nalleth era o recipiente humano de Baalzeth. A magia passou a ser considerada proibida após o que Nalleth fez… Uma guerra que durou mais de trinta anos. O mundo inteiro contra um único homem, e mesmo assim sequer o ameaçaram de verdade…
— Ninguém era forte o bastante?
— Definitivamente não. Mas claro, não há como negar. Nalleth foi de suma importância para o mundo e também para a humanidade. Graças a ele aprendemos a dominar as sombras e a luz, algo além dos elementos. Aprendemos a viver séculos, nos tornarmos mais poderosos, criar pactos e gerar sigilos…
— Sigilos? Como o de Lúcifer?
Luanne assentiu que sim.
— O ato de transformar a sombra em uma ferramenta. Ou, um simples símbolo em algo espiritual. Este livro conta tudo isso. Aliás, a capa é feita de couro humano e as folhas de pele.
Theo rebateu a parte do livro que permanecia em seu colo.
— Isto é sério?! — Gaguejou gritando.
— Sim. Ele era bem peculiar.
— Como ele morreu?
— Se matou — respondeu sem suspense. — Ninguém pôde matá-lo, e ele não queria matar o mundo inteiro. Precisava das vidas para seus experimentos macabros e satânicos. O mundo não representava nada para ele além de um mero tabuleiro de peças manipuláveis. Por medo de morrer, de ser derrotado pelo tempo e cair na profecia, Nalleth tirou a própria vida. Ato considerado o maior dos pecados, que ao cometer, garante passagem direta para o inferno.
— Para o lado de Baalzeth…
— Exatamente. Ninguém sabe ao certo, pois fazem anos que nenhum reino tentou entrar em contato, mas o reino que Nalleth governava, o Chaos Empire, estava nas mãos dos sigilos de Nalleth. Seis desviantes que foram abraçados por Nalleth, chamados de “o panteão das sombras”. E também, irmãos do mesmo.
— Eles ainda vivem?
— Não sabemos. Mas é improvável estarem mortos. Eram fortes demais para ceder a qualquer coisa do nosso mundo.
Theo ficou pensativo. Logo compartilhou seu pensamento com Luanne.
— Se eles estiverem vivos… Há alguma chance de serem os culpados pelo Cataclismo Negro?
— Sim. São os principais suspeitos.
Luanne se espreguiçou e fez um cafuné em Theo.
— Não pense em algo que não está em suas mãos. Essa guerra não é sua. Por enquanto não, ainda é um estudante. E aproveite essa fase da vida, é o conselho de uma “múmia”.
Theo riu abafado. Ele encostou a cabeça no ombro de Luanne e adormeceu imediatamente. A onda de adrenalina após o combate havia passado, mesmo depois de escutar coisas horríveis sobre um rei não muito agradável.
Uma sensação verdadeiramente pura e confortável apunhalou o peito do garoto, ao mesmo tempo, uma inquietação. Ele já tinha realizado seu objetivo, mesmo que não tivesse acertado um único golpe verdadeiro em Selina.
Pelo menos ele pôde se entender melhor durante a luta e até mesmo evoluiu de certa forma. Ele estava satisfeito naquele momento.
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