Capítulo 34 — Encolhido
Jiten se encolheu pelos dias seguintes.
Os novos ferimentos se empilharam em cima dos anteriores, aumentando ainda mais a dor que sentia. Não era que a dor estivesse localizada do lado de fora de seu corpo. Era sua mente que estava agora mais abalada do que jamais estivera.
Quando toda aquela viagem se iniciou, ele correu. Correu dos campos para salvar a própria vida. Correu do monstro errante que o perseguiu na floresta. Novamente, precisou fugir da cabana de Bjarka e Khanh, seguindo aqueles estranhos para um lugar desconhecido ao norte, apenas porque temia que ficar para trás pudesse gerar mais mortes. Então, em sua última oportunidade demonstrar bravura, ele tentou fugir.
Renji o havia dito que deveria ficar vivo. Que viver era algo importante para um guerreiro tanto quanto era o lutar. O seu velho mestre lhe ensinou que sua vida era algo que ele precisava proteger, mas agora, parecia ainda mais doloroso ser incapaz de proteger ninguém além de si mesmo.
Não era para isso que ele havia herdado o sangue de seu pai e de sua mãe. Não era isso que o tornaria digno dos olhos azuis que recebeu e ao qual atribuíam tantas lendas. Queria dormir e acordar no dia seguinte melhor do que era. Infelizmente, esse sentimento não passava de um ruminar infrutífero de sua culpa.
Uma vida podia ser destruída do dia para a noite, mas não era possível tornar uma vida melhor nesse mesmo intervalo.
Com o avanço dos dias, seguiram por dentro da floresta de maneira a ficar cada vez mais profundo nela. Jiten apenas observava Amara, a rastreadora do grupo, usar suas estranhas técnicas e seguir a direção que o vento apontava. A floresta os cercava densa e a incapacidade de usar as estradas para evitar mais encontros, os fez demorar ainda mais para chegar.
Os dois irmãos cujo os nomes Jiten sequer conhecia foram os responsáveis pela coleta de parte da comida e por inspecionar os arredores em busca de sinais de patrulhas. Voltaram algumas vezes com cogumelos comestíveis e outros vegetais que encontraram. Shio também ajudou na busca por comida, suas flechas abatiam pássaros e coelhos com grande facilidade.
Toshiro e seu mestre encontraram água em pelo menos duas ocasiões e Toshiro parecia não se engajar diretamente em nada físico, já que seu ferimento ainda sarava. Jiten também tinha essa mesma desculpa, mas nenhum de seus ferimentos foram obtidos em combate de fato, não para vencer os inimigos.
Feriu-se fugindo. Agora, não ajudava em nada, além de tentar tolerar a própria dor para não atrasar mais ninguém. Cada vez que as olhava, as feridas pareciam mais enegrecidas. Então, ele as escondia. Fingia que não existiam. Fugia de demonstrar fraqueza.
Em um determinado momento, a vegetação foi se tornando mais escassa. A floresta não era mais tão densa quanto antes. Jiten notou as marcas de trabalho humano, como árvores cortadas e até mesmo detectaram algumas armadilhas espalhadas pelo chão para a captura de algum animal grande. Lobos? Ursos? Talvez, homens? Não tinha certeza.
Quanto mais avançavam, mais evidente se tornava que aquele era um ponto de contato entre os humanos e a floresta. Como uma disputa de forças, a floresta crescia tanto quanto os seres humanos lutavam para contê-la.
Alguns quilômetros a mais de caminhada e estavam fora da floresta. Estavam próximos da metade da tarde, um sol brilhava insistente no céu, resistindo à tendência dos céus nublados, a luz cobria um campo verde e vasto. Uma parte coberta pela relva, mas logo se tornando em plantações longas.
Jiten entendeu que estavam chegando perto de uma vila, mas o que podia ver nas plantações era uma situação bem complicada. A maior parte eram campos arados e plantados, mas com vegetação podre e ervas daninhas ocupando o espaço do plantio.
Havia algumas pequenas casas espalhadas pelo lugar, onde deveria haver famílias menores vivendo, não havia nada além de ruínas. O grupo investigou duas delas, observando o cenário desolado, com as casas esvaziadas de todo sinal de vida humana.
O mestre de Toshiro passou perto de uma das plantações, suas mãos arrancaram algumas porções de trigo que haviam sido plantadas. Um material farelento e branco saiu em suas mãos. Ele esmagou e os deixou cair como poeira no chão.
Jiten nunca havia presenciado aquele tipo de destruição. Quando era criança, viu os homens queimando e destruindo seu vilarejo, presenciou execuções sanguinárias e todo o tipo de imposição forçada que o lorde podia fazer. Nunca havia visto de fato a destruição ocasionada por um evento aparentemente natural. Apenas a doença, se espalhando e contaminando tudo.
Naquele ponto, estavam próximos o suficiente da estrada, para que pudessem ver um homem viajando com uma carroça cheia de pertences enrolados em tecido. Era claramente um camponês, atarracado, sua pele queimada e a barba crescida. Seus olhos pareciam cansados, grandes bolsas de pele sob eles, dando-lhe um aspecto ainda mais exausto.
Na parte de trás da carroça, ajudando a segurar as coisas, estavam duas figuras. Um era um garoto, por volta de dez anos de idade, com cabelos castanhos caídos sobre o rosto. Algumas cicatrizes em seus braços, mas nada que apontasse uma vida além do trabalho. A outra era uma garotinha, por volta de seis anos, essa tinha os cabelos muito longos e embaraçados, seus olhos eram mais tristes, sua pele mais pálida, quase doentia.
Nenhum deles usava roupas muito espessas. Apenas linho cru e simplório. Poucas cores, como se a vida dura tivesse os feito desbotar até mesmo na alma.
Toshiro quis se aproximar deles e fez sinal para o grupo. Eles caminharam até lá, passando por entre as plantações mirradas. O homem que conduzia a carroça pareceu surpreso, mas ergueu os braços e soltou as rédeas de seu boi de trabalho que puxava a carroça.
— Ah, por favor! Não temos nada. — Sua voz era rouca e fraca. Um sinal da idade ou apenas má nutrição.
— Não somos ladrões. Somos soldados. — Toshiro afirmou, mas foi possível notar no rosto do homem que ele não via muita diferença entre essas duas coisas. — Não iremos te roubar. Quero apenas pedir uma informação. Pagarei em troca.
A possibilidade de um pagamento fez o homem se inquietar onde estava sentado. Ele apenas assentiu com a cabeça. Uma concordância silenciosa de quem não quer gastar palavras demais antes de ter certeza.
— Estamos perto de Soramaru, não? O que é que aconteceu por aqui?
Diante da pergunta, o homem hesitou uns momentos. Ele olhava nervosamente para os outros viajantes. Jiten sentiu o olhar dele passar rapidamente por ele. Era estranho estar do lado a ser temido em uma viagem. Sempre havia sido um pastor de ovelhas e mesmo agora não era de muita ameaça.
Toshiro suspirou, retirou uma moeda de seu alforje e a arremessou até o homem. Ele se abaixou rápido para pegar, como se estivesse morrendo de fome e aquilo fosse o último naco de pão. Ele se recompôs pouco depois.
— Está sim. Fica mais ao noroeste, basta seguir a estradinha.
O homem guardou a moeda nervosamente em algum lugar muito profundo de sua roupa.
— O que aconteceu por aqui? — Toshiro insistiu.
O homem pigarrou, hesitou mais um momento, talvez esperando mais uma moeda, mas não pareceu tão disposto a arriscar.
— Coisas horríveis se abateram sobre o lorde Soramaru e sobre todos do vilarejo. Já há tempos, que estamos sendo punidos pelos nossos ancestrais. O sofrimento só cresce e cresce.
— Que tipo de sofrimento? Explique. — Toshiro indagou, mas dessa vez teve a iniciativa de jogar mais uma moeda.
O homem a agarrou e olhou ansiosamente para ela. Mais um pigarro. Voltou a falar.
— Desaparecimentos. As pessoas somem nas redondezas da floresta. A maioria era criança, lá no começo. Pensamos que eram ataques de animais e colocamos muitas armadilhas para eles. Enviamos grupos de caçadas. Então, os adultos começaram a sumir também. — O homem falava aquilo e sua voz ia ficando mais fraca. Sua respiração parecia um tanto mais acelerada ao se lembrar de todos aqueles fatos dolorosos. — Então… então… veio a doença. A fome. Os sinais estranhos que observamos. Os boatos de que havia um demônio escondido em algum lugar da floresta, predando para se alimentar da carne dos nossos.
Jiten estremeceu. Lembrou-se da luta que teve contra os draugos nos campos e em seu encontro mal sucedido com o arukage. Um incômodo surgiu em seu peito. Não apenas por saber das mortes, mas por ver que assim como ele, aqueles camponeses fugiam.
Sentiu-se tal como eles, uma ovelha.
A diferença é que ele estava cercado de pessoas que acreditavam que seus olhos eram um sinal de algo a mais. Escoltavam-no até um lugar misterioso ao norte, imaginando que se ele chegasse lá, poderia ajudar a realizar todas as crenças mais profundas de uma nação.
Até o momento negara a si mesmo como isso o deixava assustado.
— Para onde vão? — Toshiro indagou ao velho.
— Qualquer lugar mais ao sul. Dizem que a última colheita foi boa, talvez recebam viajantes de bom grado.
— Abandonará ao norte desse jeito? — Shio indagou, se intrometendo na conversa sem muitos pudores. Que desprezo era aquele que ela tinha por camponeses?
O homem sobre a carroça dirigiu a ela um olhar desconfiado. As rugas aumentando ao redor dos olhos.
— Aqui já não é mais o norte há muito tempo, garotinha — retrucou o velho. — Não vou matar meus filhos de fome por orgulho.
Existem muitos motivos para fugir, mas raras vezes, fugir é realmente tolice. É apenas a decisão mais segura. Jiten entendia bem disso. O que pode um homem do campo contra forças desconhecidas? Ficar ou partir, tudo é o mesmo.
Toshiro fez um sinal com a mão para que Shio se afastasse. Os dois trocaram olhares hostis, mas ela obedeceu. Tudo que os cercava já estava carregado de uma aura obscura. Mesmo sob a luz do sol, era como se o mundo não se iluminasse por completo. Alguma coisa corroía os humores.
— Entendo, senhor. Não sabia que este lugar estava nessa situação. — Toshiro assentia com a cabeça enquanto falava. — O que tem feito o senhor dessas terras?
O homem pareceu incomodado. Olhou ao redor. Deu de ombros.
— Além de ficar sentado em sua cadeira de madeira e choramingar? Não sei. Todos queriam saber — respondeu quase como se rosnasse. Em seguida, tossiu algumas vezes e voltou a encarar Toshiro. — É tudo culpa dele. Dele e de seu pai. Ambos fizeram isso conosco. Agora que estou indo embora, posso falar sem medo. Eles trouxeram aqueles monges para cá… É isso que temos agora. É isso. Nada. Não vai sobrar nada. O velho lorde morreu. Morreu de um jeito horrível agonizando por dias. O filho dele é nosso problema agora. Quero dizer, problema de quem ficar. Eu estou indo embora.
Para isso não foram necessárias moedas. A indignação foi motivação suficiente.
— Há alguma recomendação de onde possamos ficar? — Toshiro não se apegou tanto ao que era falado. Jiten notou que isso havia sido deliberado.
— Melhor mesmo é que saiam daqui o mais rápido possível, mas não acho que conseguirão se afastar o suficiente antes do anoitecer — respondeu rapidamente — mas…
Toshiro soltou o ar pelo nariz em uma espécie de riso ou em sinal de desprezo. Difícil dizer. Jogou mais uma moeda para o velho e esperou que ele a apreciasse.
— Há uma estalagem bem ao leste da cidade. Não fica tão perto do portão de entrada, mas é provável que consigam alimento e um quarto sem muitos percevejos.
Aquela última dica foi aceita. Toshiro o dispensou. O grupo continuou seu trajeto. Faltava pouco até Soramaru.
Jiten, no entanto, permaneceu encolhido.
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