Índice de Capítulo

    A trilha havia acabado e Jonas contemplou admirado o campo aberto à sua frente. Após semanas caminhando sufocado debaixo do claustrofóbico abraço de mil árvores à sua volta, ver um lugar tão vasto era algo quase inacreditável. Jonas engoliu em seco. Prados cortados por rios cobriam a terra à sua frente. Podia ver animais quadrúpedes correndo a distância e as margens dos rastros reluzentes de água. E acima de tudo isso, viu o céu cinzento que cobria tudo. Enfim tinham saído do pântano.  

    — Caralho — disse Túlio, com surpresa estampada na face.  

    — Olha só esse lugar. Parece o interior do meu avô — Leandro tinha uma expressão admirada no rosto.  

    — Não há lugar semelhante a esse nessa parte do continente. Estamos no ventre de Vaenein, onde nascem os rios que cortam o Palatinado — disse Sir Orland.  

    — Apenas sairmos desse lugar já é motivo pra comemorar — comentou Jonas, olhando para as árvores nas suas costas. Desejava nunca mais vê-las novamente.  

    Mais de uma vez eles foram atacados por sapos goliath, tartarugas do tamanho de um bote com bicos e garras, e monstros reptilianos parecidos com crocodilos. Com a pequena diferença de serem menores e suas mandíbulas se abrirem em quatro partes quando abertas. Sentia-se grato por não terem visto mais nenhum dente de adaga.  

    “Os monstros ficaram para trás”, pensou com alívio.  

    Havia também as coisas que espreitavam em meio aos galhos. Aves carniceiras à espera de alguma pobre vítima caída. Segundo o cavaleiro, elas chegavam a ter um metro e meio de envergadura. E quando atacavam, miravam suas garras nos olhos dos infelizes escolhidos como alvos. Jonas nunca tinha visto uma. Ouvira apenas um chiado entre os galhos, que segundo Sir Orland, era o seu “canto”. O cavaleiro os aconselhara a queimar uma erva encontrada entre os charcos para espantá-los. Ela produzia um cheiro nauseante, que fizera Graça vomitar algumas vezes.  

    Já não ouviam os chiados a alguns dias. O que deixava Jonas esperançoso de não precisarem mais queimá-la.  

    Uma brisa soprou, fazendo os ossos de Jonas gelarem.  

    — Que merda, parece que aqui tá mais frio do que antes — Túlio resmungou.  

    — Porque está — Sir Orland falou e voltou a andar. Todos o seguiram.  

    Os campos a sua frente eram levemente ondulados, com aclives, e declives cobertos por um tapete verde escuro e úmido. A vegetação era pequena e rasteira. Poucas árvores solitárias podiam ser vistas ao redor deles. Orvalho pingava de cada folha e grama ali presente dando uma sensação refrescante ao toque.  

    Jonas, no entanto, estava encharcado e cansado de tanta umidade. Queria apenas um abrigo seco e quente, que não podia ser visto em lugar algum, não importa o quanto andassem. Os rios que cortavam os campos, como riscos ondulados, seguiam para uma infinidade de direções. O som de suas águas trazia desconforto para Jonas. Fazia-lhe se lembrar de outro rio.  

    Mesmo não estando mais nos charcos de lama e presos no labirinto de árvores que cercavam as trilhas. O grupo ainda avançava em um ritmo lento. Resultado dos dias sem quase nenhum descanso decente.  

    Atrás dele, Túlio reclamava:  

    — Caralho, quanto mais a gente vai ter que andar?  

    Aquilo era quase parte do som ambiente àquela altura.  

    — Ah mano, já andamos tanto que já não importa mais — disse Leandro. Que mesmo com olheiras profundas, roupas desgrenhadas e sujas, e manquejando de uma perna, ainda mantinha uma face animada e digna.  

    — Também espero chegarmos a algum lugar logo — Graça deu razão a Túlio. — Sinto que meus tornozelos estão prestes a estourar.  

    — Não parem de andar. Podemos ter saído dos pântanos, mas não estamos seguros — disse o cavaleiro com seu tom severa de sempre.  

    — Para onde exatamente estamos indo mesmo? Alguma cidade ou coisa assim? — A pergunta veio de Erick, que caminhava com mais cuidado que o habitual, uma vez que tinha perdido seus óculos. Quebrados pelos monstros sapos.  

    Ele parecia melhor do que antes. Teve de ser carregado por Túlio por três dias após o primeiro ataque dos sapos. Aparentemente ele foi cercado por sapos, sem receber nenhum auxílio, e conseguiu lutar contra eles de algum jeito e acabara naquela situação. Jonas ainda não entendera o que tinha acontecido, mas sentia-se feliz pelo amigo estar melhor.  

    — Não, não há muitas cidades nas marcas cinzentas. Principalmente tão próximo de Vaenein. Há, no entanto, muitos assentamentos feitos pela guilda de Dargho´dracma. Assim como postos de vigilância.  

    — Dargho´dracma — Erick repetiu o que Sir Orland falou, errando levemente a pronúncia.  

    O cavaleiro deu-lhe um olhar que Jonas não pode entender o significado, e então voltou a olhar para frente.  

    — Muitos deles estão postados nos cursos dos rios — Ele apontou enquanto falava. — Vamos segui-los até encontrarmos um.  

    — Espero que seja logo — Jonas comentou, olhando para o céu cinzento acima.  

    Quanto tempo tinha se passado desde que vira o sol pela última vez? Pelo que se lembrava, não havia sol naquele rio também.  

    — Não fale — repreendeu o cavaleiro —, apenas se cansará mais rapidamente.  

    Assim, eles continuaram seguindo. Jonas escutava os bramidos dos animais que bebiam pastavam próximos ao rio, dos pássaros que voavam por cima de suas cabeças, das reclamações de Túlio, das águas correndo em direção a um destino desconhecido. Eles andaram até que o sol estivesse próximo de concluir seu declínio. Não podia vê-lo, mas Jonas sabia disso pela pouca luz que restara. A essa altura, seu estômago já trovejava e ele se preocupava com a próxima refeição. Estavam em uma região aonde o mato chegava próximo ao peito de Jonas, quando de repente o cavaleiro pediu a espada, que naquele momento estava nas mãos de Erick.  

    Erick olhou para Jonas, que acenou com a cabeça levemente, e a entregou.  

    O cavaleiro a tomou, mandou que se abaixassem, ficassem quietos e esperassem naquele local, até que ele retornasse, desaparecendo entre o matagal. Jonas mal conseguia escutar seus passos enquanto se afastava. Mesmo confusos, eles obedeceram, aguardando agachados em meio a grama alta por um tempo inconvenientemente longo.  

    — O que acham que aconteceu? É algum monstro? — Leandro perguntou apreensivo.  

    — Não, acho que não — Jonas respondeu em um tom mais calmo. Ele não escutara nada estranho ao redor deles.  

    Claro, ele poderia se enganar, mas não acreditava ser o caso.  

    — Talvez ele tenha nos abandonado aqui — Túlio sugeriu.  

    Jonas sentiu uma pontada de pânico.  

    Graça levou uma mão ao pescoço e a outra ao peito.  

    — Oh meu Deus, ele não faria isso, faria?  

    Túlio grunhiu.  

    — Saímos daquela merda cheia de lama e a primeira coisa que ele faz é pegar a espada e se mandar. O que você acha?  

    — Não sabemos ainda — disse Erick.  

    — Claro que você ia defendê-lo né.  

    — Como assim?  

    Túlio fez um gesto de desdém com os braços.  

    — Nada demais, só que amiguinhos se defendem o tempo todo.  

    Erick fechou o cenho.  

    — Que foi? Quer ver quem tem a cara mais feia?  

    Erick fez menção de avançar, mas Leandro, que estava ao seu lado, o segurou. Túlio, porém, continuou a provocá-lo:  

    — Que foi? Vem pra cima?  

    — Tá bom, chega — Jonas disse em tom autoritário, empurrando Túlio, que pôs uma mão no chão para não cair.  

    — Que é? Quer brigar também — Ele rosnou.  

    — Garotos parem com isso! — Graça mandou em um tom maternal.  

    Então Jonas escutou. Sons de algo se aproximando ressoaram em seus ouvidos. Estava perto. Ele se virou bruscamente a tempo de ver a cabeça de um animal aparecendo em meio a grama.  

    Graça soltou um grito de susto e os outros saltaram para trás. Um instante depois o cavaleiro surgiu. Ele carregava o corpo morto do que parecia ser um cervo nos ombros. Um dos braços estava em volta do animal e o outro segurava a espada ensanguentada  

    — Eu disse para que ficassem quietos — repreendeu, depositando o corpo no chão. — Túlio, carregue-o até chegarmos em um local mais apropriado para o tratarmos.  

    — Por que que eu tenho que fazer isso? — Túlio questionou.  

    — Porque é o mais forte — Sir Orland respondeu de forma firme. — Agora vamos rápido, está escurecendo.  

    Mesmo demonstrando má vontade, Túlio fez o que lhe fora pedido.  

    Eles caminharam praticamente sem rumo certo até o cavaleiro avistar algo no alto de um pequeno monte. Rochas enormes em formato circular.  

    — Os deuses foram gentis conosco — Jonas o ouviu dizer antes de andar até a formação.  

    Eles o seguiram até o aclive, entrando na formação circular. As rochas tinham o dobro do tamanho de Jonas. Ele contou nove delas, todas em formatos cônicos retorcidos. Não havia grama em meio a formação, apenas um chão de terra batida. O que só causava uma sensação de discrepância com a paisagem em volta. Uma pedra menor estava posicionada no centro.  

    Graça, Leandro e Túlio logo se deixaram cair no chão, que estava surpreendentemente seco. Jonas permaneceu em pé, assim como Erick e o cavaleiro, que foi em direção a pedra no centro.  

    — Estranho — Jonas ouviu Erick dizer. Ele encostava em uma com os dedos.  

    — O que?  

    — Tem umas cavas nelas — Ele deslizava um dedo, como se estivesse seguindo algo na superfície da rocha.  

    Jonas imitou o gesto e percebeu que era verdade. Havia uma espécie de linha não natural entalhada na pedra úmida, seguindo um padrão.  

    — Parece uma letra — comentou Erick.  

    — Afastem-se — Ouviu a voz de Orland ressoar atrás de si. Ele estava com a espada em mãos.  

    Em um movimento que surpreendeu a todos, o cavaleiro cortou o próprio braço, deixando o sangue escorrer sobre a pequena pedra. No mesmo instante as rochas em volta do altar começaram a brilhar. Ele sentiu um calor súbito e vapor saírem delas. Formas apareceram. As rochas pareciam estar sendo pintadas por estranhos símbolos vermelhos.  

    Todos que estavam sentados se levantaram em espanto.  

    “São as cavas”, Jonas percebeu enquanto sentia o calor envolvê-lo. Ele olhou para o cavaleiro, que naquele momento remexia a sua bolsa, parecia procurar por algo.  

    — O que você fez? — Jonas perguntou.  

    — Um sacrifício aos deuses. Eles nos manterão seguros essa noite — Ele retirou um pequeno frasco e derramou seu conteúdo sobre o braço. Parecia arder pela expressão de dor que ele fez. O sangramento parou. 

    — Deuses? — Graça murmurou.  

    — Pode nos avisar da próxima vez que fizer algo assim, por favor — Leandro disse com um acenar de mãos.  

    O cavaleiro respondeu com um aceno de cabeça.  

    — Leandro, Erick, acendam a fogueira. Túlio, Jonas, venham me ajudar. Iremos tratar esse antílope, enquanto temos um pouco de luz — Ele ordenou.  

    O trabalho começou a ser feito. Orland abriu a criatura, retirou a sua pele, e jogou suas vísceras de lado, reclamando sobre não poder retirar o sangue como deveria. Jonas e Túlio o auxiliaram durante a incômoda tarefa. Os meninos conseguiram acender a fogueira a tempo de o sol se pôr, usando lenha que carregavam consigo desde o pântano. O que ofereceu um pouco de luz durante a noite enquanto os outros continuavam o trabalho com os restos mortais do antílope. Mesmo estando escuro e ouvindo o som do vento frio soprando, Jonas sentia um calor reconfortante. Muito provavelmente devido às rochas, que estavam quentes ao toque.  

    Graça ofereceu ajuda para cozinhá-lo após concluírem o serviço.  

    — Não sente nojo disso, senhora? — Leandro perguntou.  

    — Cresci no interior. Meu pai e meus tios matavam um porco, ou um bode todo domingo — A mulher respondeu enquanto colocava a carne para grelhar.  

    O estômago de Jonas tamborilou quando ele sentiu seu cheiro, os outros pareciam ter a mesma expectativa. E seus ouvidos lhe disseram que eles não foram os únicos que sentiam isso.  

    Uivos e risadas reverberaram a volta do aclive enquanto grandes formas escuras espreitavam na escuridão após as rochas.  

    — O que são aquelas coisas? — Túlio perguntou, se levantando bruscamente.  

    Leandro se aproximou de Graça. Jonas e Erick se afastaram da ponta se postando no meio do círculo, próximos a pedra que ainda estava vermelha com o sangue do cavaleiro.  

    — Lobos Hati. Criaturas perigosas essas — disse Orland, que permanecia sentado no chão com as pernas cruzadas, observando atentamente a carne enquanto a fogueira fumegava.  

    — Se é perigosa, por que você está tão calmo? — Jonas questionou.  

    — Eles não farão nada, não podem — afirmou o cavaleiro, alternando seu olhar para Jonas. — Não enquanto estivermos sobre a proteção dos deuses — Ele voltou a olhar para a carne.  

    — Deuses? — Jonas repetiu.  

    — Como assim deuses? — Leandro questionou.  

    — As rochas — Erick disse olhando para elas.  

    Jonas olhou novamente para as criaturas. Elas estavam lá, espreitando por detrás das rochas. Rindo, uivando, mas não avançavam.  

    — Os deuses nos protegerão essa noite — afirmou o cavaleiro mais uma vez. 

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota