Índice de Capítulo

    div

    “Finalmente, terra firme… mais ou menos,” pensou Ana, enquanto ajudava Felipe a recuperar o equilíbrio depois do último e exaustivo esforço. Seu corpo inteiro protestava, e pela primeira vez em anos, ela sentiu vontade de se jogar no chão e nunca mais se levantar — o que seria um plano viável, se não estivesse tremendo de vontade de explorar logo o cetáceo voador.

    A subida pelas cordas fora brutal. Um misto de escalada, tortura e exercício cardiovascular que nenhum ser humano sensato teria inventado de propósito. Mas haviam sobrevivido. A baleia, num gesto que parecia quase misericordioso, havia diminuído o ritmo com o cair da noite, mergulhando num estado de lentidão contemplativa, como se também estivesse cansada de ser ela mesma, e isso bastava. Bastava para que o pequeno Ironia Divina, teimosos por excelência, pouco a pouco fizessem seu caminho para a tão esperada filmagem de pés.

    À distância — ainda tremendo pelas pernas — o grupo avistava os detalhes de Leviathan. Se havia alguma dúvida de que haviam chegado a um lugar único no mundo, ela se desfez sob o brilho inquieto das luzes. 

    Era grande, claro, mas de um jeito esquisito. Compacta no centro das costas do animal, Leviathan não se expandia lateralmente como cidades normais. Crescia para cima, prédios sobre prédios, um empilhamento de eras e ideias arquitetônicas, como se o responsável por projetá-la tivesse recebido referências demais e filtro de bom senso de menos.

    Cúpulas bizantinas dividiam quarteirões com hangares industriais. Torres góticas exibiam letreiros em neon piscantes com frases que pareciam sair de comerciais dos anos 80. Casas de madeira com telhado de sapê — e uma quantidade surpreendente de painéis solares — se empoleiravam sobre pontes largas como avenidas, interligando prédios que imitavam pagodes, castelos e até o que parecia — Ana jurava — um coreto de praça adaptado como observatório astronômico. 

    Também se viam ali grandes áreas dolorosamente verdes brotando onde menos se esperava: nas sacadas, nas muralhas, nos telhados — até nas dobras da própria baleia. Samambaias tropicais, lavandas, orquídeas, ervas medicinais… e algo que claramente era Cannabis, mas ninguém ali tinha moral suficiente para apontar o dedo. Tudo convivendo pacificamente, como se fosse óbvio que deveriam estar juntos. De alguma forma, funcionava.

    Os passos do grupo ecoavam entre as estruturas externas, estreitas e excessivamente ornamentadas, até finalmente alcançarem os portões principais — um arco de pedra largo o suficiente para a passagem de uma procissão de elefantes, e ainda assim, nenhum sinal de recepção.

    Torres de guarda se erguiam nas laterais como sentinelas sonolentas, e mesmo as lamparinas de mana ao redor pareciam pouco vigilantes. Esperaram. Um minuto. Dois. Três. Nenhum guarda. Nenhum som além do leve estalo da energia piscando. Nada. Nem uma alma viva, exceto os cinco forasteiros malcheirosos e a baleia sob seus pés.

    — A gente precisa entrar mesmo assim? — murmurou Felipe, o rosto meio suado, meio paralisado pelo cansaço e pela perplexidade. Estava com os olhos grudados no portão, mas falava com o vazio. — É espetacular, mas… dá uma sensação estranha esse silêncio todo.

    — É só… maior do que o necessário — respondeu Ana, dando o primeiro passo sem deixar de lado certo resquício de pragmatismo. — E mais torta. Mas pelo menos é mais limpo que Barueri.

    Júlia resmungou algo e chutou uma pedra que só existia em sua mente. O rosto mal iluminado parecia menos impressionado e mais entediado.

    — Aposto que nem esgoto tem aqui. Devem usar baldes perfumados e dizer que é tradição local. Bando de presunçosos.

    — Também ouvi dizer que o povo daqui é… peculiar. Tipo, a cidade flutua, beleza. Mas parece que flutua em moral também. E em preços. Principalmente em preços. — Alex, ainda massageando o ombro dolorido da escalada e mantendo o silêncio — um evento raro — balançou a cabeça.

    Brayner, por outro lado, parecia genuinamente fascinado. Seus olhos absorviam tudo: ângulos das fachadas, os vitrais com detalhes impossíveis, os desenhos esculpidos nas colunas de sustentação. Tudo nele dizia que estava fazendo o possível para decorar cada centímetro.

    — Sabe quando você lê sobre um lugar que parece coisa de ficção… e aí você chega lá e ele é pior? Então. Isso aqui não é o caso. Isso aqui é… fora do eixo. Como se alguém tivesse arrancado pedaços do mundo e costurado tudo num lugar só. É horrível e maravilhoso ao mesmo tempo.

    — Bom — Ana cortou, puxando a conversa de volta ao chão. — Seja como for, precisamos descansar. Se estiver realmente vazia, a gente saqueia o que der e desce. Fazer o quê.

    O grupo revirou os olhos em uníssono. Não que discordassem. Mas a leveza com que ela dizia esse tipo de coisa… dava a impressão de que invadir cidades fantasmas era só mais uma quinta-feira.

    Felizmente, diferente de suas preocupações iniciais, a solidão não durou muito. Ao virar de uma esquina estreita que parecia prometer apenas mais abandono… encontraram vida.

    Muita vida.

    O mercado central que se abriu era como um soco no estômago da monotonia. Um burburinho de cores, sons, cheiros e vozes. A cidade não estava morta — só escondia bem.

    Não era muita gente, havia ali apenas umas duzentas pessoas em movimento. Isso, sem contar os sons e sombras que vinham de dentro das construções: risos, passos, música — todos sinalizando que Leviathan era mais habitada do que aparentava.

    E que povo era aquele.

    Altos, baixos, largos, miúdos. Gente de toda cor, porte e feição. Tatuagens tribais ao lado de implantes cibernéticos improvisados. Tecidos africanos ao lado de saris indianos, sandálias de couro cru, botas militares, e até mesmo alguns padrões que Ana, mesmo em suas inúmeras viagens em meio ao Grande Vazio, nunca havia visto. Um caldeirão cultural fervilhante.

    Idiomas pipocavam no ar com uma sinfonia desconexa. Francês, hindi, árabe, uma língua que parecia klingon, e um português que dava saudade de casa. Mas curiosamente, ninguém parecia se incomodar com as barreiras. As conversas fluíam. As trocas funcionavam. Ninguém precisava repetir.

    Ana notou isso com surpresa genuína. Seus olhos pousaram em Júlia, não muito longe, recusando educadamente — algo que por si só já era raro — um ramalhete de flores que uma criança lhe oferecia, sorridente. O que chamou a atenção não foi o gesto, mas a fala: romeno, fluente, sem titubear.

    “Romeno? De onde essa garota sabe romeno?”

    E então a ficha caiu.

    Um dos textos que lera — um artigo quase esotérico demais até para ela — sugeria que a exposição prolongada à mana reconfigurava mais do que só músculos e reflexos. Falava de cognição. De neuroplasticidade. De aprendizado acelerado. Teorias exageradas que beiravam a pseudociência, mas, pelo jeito, não tão exageradas assim. O cérebro mutado, de forma inimaginável, simplesmente absorvia informações. Algo invejável que, se não estivesse errada, poderia muito bem ser aplicado a esta situação para ligar o significado da linguagem à intenção.

    Parecia ridículo. E ainda soava ridículo. Especialmente quando lembrava da média intelectual do Ironia Divina, onde “estratégia” era uma palavra dita com um leve tremor de desprezo. 

    Mas agora… fazia sentido.

    Eles ainda eram burros. Mas eram burros poliglotas. Burros que aprendiam truques muito bem.

    — Pelo menos uma coisa positiva nessa bagunça — murmurou, meio para si, meio para ninguém, antes de acrescentar em voz mais alta, torcendo a boca com um quase-sorriso. — É quase o bairro da liberdade. Talvez até um pouco menos estranho.

    Os outros se entreolharam com expressões que variavam entre dúvida e… bem, mais dúvida.

    — Liberdade? — perguntou Júlia, arqueando uma sobrancelha, curiosa. — Isso não é do mundo original? Acho que meus pais já contaram algumas histórias… era tão incrível quanto aqui?

    “Droga, esqueci que eles eram apenas crianças antes de tudo acontecer.”

    — Foi só um pensamento aleatório — respondeu Ana, encolhendo os ombros, como se devolvesse a pergunta para um buraco negro. — Talvez as histórias tenham sido exageradas…

    E sem deixar espaço para mais nostalgia mal posicionada, girou nos calcanhares e apontou o queixo para a construção à frente.

    — Vamos fazer o que viemos fazer. Teremos muito tempo pra turismo depois.

    O edifício não se escondia. Ao contrário do discreto Madame Eclipse de Barueri, preferia os cantos sombreados e os becos discretos, este lugar exalava autoconfiança, ficando no ponto mais alto do centro da cidade. O vai e vem de pessoas era constante, como se a porta giratória da taverna existisse apenas para reforçar a ideia de que ali sempre havia algo acontecendo. Ou prestes a acontecer.

    A fachada misturava pedra e concreto como se testasse qual material envelhecia com mais dignidade. Havia um padrão de espadas entrelaçadas com escudos esculpidos nas paredes, um ornamento que flertava com o exagero, mas parava antes de ofender. Lembraram uma estética de guerra que não combinava muito com o resto da estrutura, que tinha um ar levemente moderno, mas o resultado não era exatamente feio.

    E, acima da porta, um nome estava gravado em letras grandes e elegantes.

    O Último Reduto.

    Não era sutil. Não precisava ser. Era o tipo de nome que não pedia interpretação metafórica. Apenas dizia: “se tudo der errado, tente aqui”, algo que, por algum motivo, a rainha mercenária achou estranhamente reconfortante.


    div


    Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟

    Venha fazer parte dessa história! 💖

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p

    Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

    Curtiu a leitura? 📚 Ajude a transformar Eternidade de Ana em um livro físico no APOIA.se! Link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota