Capítulo 50 - Antes do pesadelo.
O sol se pôs, deixando um rastro de luz dourada sobre a rocha escarpada que limitava a visão do horizonte. Ela projetava uma agradável sombra sobre eles, que tornava o clima um pouco mais agradável. Um vento forte soprava entre os corredores rochosos. Parecia cada vez mais forte a cada dia. A sua volta, Ítalo via uma confusão de pessoas e vozes se espalhar, enquanto o acampamento era montado.
Comerciantes, famílias em busca de um outro lugar para viver, viajantes, e exploradores, vindos de lugares que diziam ser longínquos. Ítalo sorriu ao pensar em tantas histórias poderiam ser ouvidas ali. A maioria se mostrava receosa em falar, e a insegurança de Ítalo ao perguntar não o ajudava. Alguns mercadores, no entanto, se mostraram dispostos a conversar, ao menos enquanto tinham esperança em fazer alguma venda. Entre as várias curiosidades que Ítalo nutria, ele perguntava em especial sobre a maior delas, aquela grande estrutura geológica que se estendia por quilômetros, por onde haviam viajado desde então. Os viajantes da caravana a chamavam de “Passagem de pedra”. Ítalo lembrava de ter ouvido o ladrão usar o mesmo nome. Aparentemente ela conectava dois lugares distantes, separados pelo grande deserto, sendo usada nas viagens realizadas. O que resultava em muitas caravanas, tais como aquela, a percorrendo.
Era tão grande. Toda a vez que pensava sobre ela, ítalo se perguntava acerca dos detalhes de sua formação.
— Tá parado porque, moleque? Ajuda aqui — Marcelo resmungou enquanto armava a tenda que tinham comprado. Seu braço parecia ter melhorado.
Tyler tinha ainda algumas moedas sobrando após pagar o líder da caravana, o suficiente para Marcelo pechinchar com um mercador pela tenda. Era uma barraca em formato de cone. Simples como a maioria das que estavam armadas ali. Possuía, de acordo com as suposições de Ítalo, mais de um metro e meio de altura, e três de diâmetro. Grande o bastante para quatro pessoas dormirem lado a lado. Pamela, Daisy e mais duas pessoas, em específico.
Ítalo o ajudou, escutando suas instruções e reprimendas.Ao terminarem, Marcelo entrou na tenda e mandou que Ítalo vigiasse o derredor.
Ítalo suspirou e sentou-se na entrada da tenda.
Pamela havia saído junto de Tyler para conseguirem a refeição noturna. Daisy estava sentada no chão, a alguns metros de distância, com o homem gordo bem ao seu lado. Ela falava coisas banais com ele, que respondia com acenos de cabeça. ìtalo não entendia o por que ela estava tão interessada em se aproximar do homem. Talvez fosse influência de Pamela. A mulher parecia ter algo que cativava os outros. A garota, no entanto, tinha algo que trazia calafrios a sua espinha desde aquela primeira noite na caravana.
“Patético”, era do que ela o havia chamado. Ítalo queria poder discordar, mas sua boca não pode. Ele pegou uma de suas trouxas e retirou algo que tinha se familiarizado nas últimas semanas, segurando de forma firme.
Frio. Ítalo sentia-o se espalhar por sua mão direita enquanto segurava a pequena adaga branca por baixo da trouxa. Ainda era doloroso, mas dias repetindo o mesmo processo o acostumaram a dor, de alguma forma.
“…quarenta e um, quarenta e dois, quarenta e três…”, ele sempre contava o tempo em que permanecia segurando a adaga, sempre aumentando. Fazer isso o ajudava a se distrair, buscando entender aquilo que tinha nas mãos.
Ítalo quis perguntar a outros membros da caravana sobre aquela adaga, porém Tyler achou ser uma péssima ideia deixá-los saber que tinham uma arma. Mesmo uma praticamente inútil. Talvez ele achasse que era algo mais do que uma simples adaga, e Ítalo concordava com esse pensamento.
Ele abriu a mão, soltando a adaga.
“Três minutos e cinquenta e cinco segundos”, contou. Era doze segundos a mais do que no dia anterior.
Ítalo flexionou a mão, sentindo ela rígida e fraca. Algumas pontadas de dor o faziam piscar os olhos. Parecia que tinha deixado a mão dentro do congelador por horas e pequenas agulhas de gelo haviam se formado em sua pele.
Ele abriu a boca, surpreendendo-se por soprar ar frio.
— Adaga interessante — Ouviu alguém dizer.
Ele olhou para cima e viu um garoto com um cabelo em formato de tigela. Reconheceu-o quase na mesma hora.
— Você é… — Tentou lembrar de seu nome.
— Sarosh, assim fui chamado — Sua voz era calma e monótona, quase sem emoção. — Posso ver? — perguntou ele, estendendo sua mão.
— Ah, mas, talvez não seja uma boa ideia — disse Ítalo, tentando pensar em alguma explicação do “por que”.
— Eu prometo devolver — insistiu o rapaz.
Ítalo, com relutância entregou a adaga, esperando ouvir um grito logo em seguida. Mas, para sua surpresa, a reação de Sarosh foi completamente diferente.
— Parece com a de meu Amo — disse, em seu tom monótono.
— Você, como faz isso? — Ítalo perguntou se pondo em pé, surpreso.
— Da mesma forma que você, não? Aqui — Ele entregou a adaga a Ítalo, que piscou ao sentir a dor repentina percorrer seu braço mais uma vez.
Ítalo olhou para a mão dele e o viu flexionando-a levemente.
— Preciso voltar a minha ronda, se me der licença — Ele disse, antes de começar a andar.
Ítalo passou algum tempo o vendo se afastar, antes de perceber que Daisy também o encarava. Na verdade, seu olhar estava vago, como se encarasse o nada. Ela sacudiu a cabeça de repente, fechando os olhos e pondo a mão na boca. Ítalo pensou em ir conferir se havia acontecido alguma coisa, mas algo o manteve em seu lugar. A lembrança da voz da garota naquela noite.
— Você já tá com essa coisa de novo? — Ouviu a voz de Tyler perguntar. Pamela
vinha logo atrás. Eles traziam algumas vasilhas. — Solta isso aí e me ajuda a acender uma fogueira, depois você brinca com a sua faquinha.
— Mas, a Daisy…
— O que tem ela? — Pamela perguntou.
— Nada — Daisy respondeu em seu tom infantil, que agora causava um certo incômodo em Ítalo. — O que trouxeram?
Ítalo olhou para a garota, notando uma mancha vermelha em sua manga.
— Você vai gostar — Pamela disse, começando a destampar as vasilhas.
— Anda logo, ou vou por areia na sua comida — Tyler disse, pegando os galhos secos que usavam para alimentar a fogueira.
Ítalo revirou os olhos, guardando a adaga e o ajudando.
Eles desfrutaram de uma refeição quente aquela noite. Marcelo contou suas histórias vulgares, o que fez Pamela se retirar mais cedo, sendo seguida por Daisy, que se manteve tão afastada dos outros como sempre durante a refeição.
Marcelo continuou com suas histórias, comentando algo sobre uma traição de sua mulher, e como o tal deus o havia sacaneado, dando-lhe uma bebida com um gosto horrível como dádiva. Tyler não parecia tão interessado na conversa, e nem Ítalo estava também, o que fez o velho homem também se retirar, deitando-se na tenda. Pamela, de forma quase ameaçadora, o instruiu a ficar afastado o máximo possível.
Ítalo permaneceu sentado a fogueira junto a Tyler, que seria o primeiro a ficar de vigia naquela noite.
— Falam por aí que chegaremos naquela cidade na próxima semana — Tyler falou de repente
— Narkul — disse Ítalo, sentindo um certo alívio. pelo que ele ouvira da cidade, sentia-se desejoso de vê-la logo.
— Isso está estranho —.Ele disse.
— O que?
— Tudo. É a primeira vez que fico tranquilo nessa merda de mundo. Isso é estranho.
Ítalo se surpreendeu. Tyler nunca falava dessas coisas.
— Isso é bom, não? Poder relaxar depois de um tempo.
Tyler bufou em desdém.
— Relaxar só te deixa mole — Ele disse, com uma voz sonolenta. — Comece a ficar relaxado, e, quando menos perceber, terá uma faca presa em suas costas — Seu tom de voz se endureceu.
— Como assim?
— Nada, esquece o que eu falei. Vai dormir, sua vez é em algumas horas — Tyler disse abanando uma das mãos.
O gesto foi recebido com desconforto por Ítalo. Ele se levantou, olhou para a fogueira, lembrando-se da forma como Tyler se referira a ele quando seguiu os membros da caravana.
“Se não terei de proteger mais uma pessoa”, foi o que ele dissera, se referindo a Ítalo como um mero fardo.
As palavras de Daisy mais uma vez ressoavam em sua cabeça, junto da voz de sua madrasta, que, em momentos como esse, tamborilava em sua mente a mesma sinfonia de insultos frios de sempre.
“Não”, pensou ele, “Ela não está aqui, e nem aquele “eu” deve estar aqui também, não mais”.
Mas como? Ítalo então pensou em algo.
— Tyler — Ele chamou, sua voz tomando um tom inesperado.
Tyler levantou a cabeça de forma quase indiferente, com uma sobrancelha levemente erguida.
— Pode me ensinar a lutar? — disse ele, sua voz suavizando próxima ao fim da frase.
Tyler o encarou. Seus olhos escuros estavam cansados e endurecidos. Não pareciam ser os mesmos olhos espertos e trocistas que Ítalo via naquela face vez ou outra.
— Porque não? Pelo menos vou poder praticar um pouco. Se for mesmo querer isso, veremos isso amanhã, agora vaza — Tyler abanou sua mão novamente.
Ítalo suspirou, irritado com a maneira com que Tyler respondeu, mas satisfeito com a resposta em si. Ele entrou na tenda, ouvindo o ronco de Marcelo em um canto e Pamela no extremo oposto. Parou ao ver a figura de Daisy sentada entre ambos, sozinha, no escuro.
— O que foi? — Ela sussurrou. Os olhos de Ítalo lentamente se acostumaram à completa escuridão e ele viu a mão dela próxima ao rosto.
— Seu nariz, ele sempre sangra? — ele perguntou, lembrando-se da mancha, perguntando-se do porquê ela ter escondido.
— Parece que agora sim, agora me deixe dormir — Ela respondeu de forma estranha, pondo um dedo sobre a boca, em um gesto silêncio, se deitando logo em seguida.
Ítalo inconscientemente engoliu em seco. Aquela garota de alguma forma o deixava inquieto. Por que aquilo acontecia? Ele se deitou, pensando se devia contar a Pamela o que vira. Tinha certeza de que a mulher reagiria de forma nervosa. No outro dia decidiria. Naquele momento, o cansaço era maior do que qualquer senso de urgência..
Demorou para dormir. O calor, o som do vento e da areia batendo contra a tenda, a sensação do corpo de Marcelo tão perto do seu. Tudo impedia o sono de vir. Ele permaneceu de olhos fechados, na escuridão de suas pálpebras, até todas as outras sensações sumirem completamente. Ele abriu os olhos, vendo apenas a mesma penumbra de quando estavam fechados.
Estava em pé, mas não lembrava de ter se levantado. Sentisse nú, mas não lembrava de ter se despido. Não estava mais na tenda, nem via mais a Marcelo, Pamela ou Daisy. Estava sozinho.
Ele tentou virar seu corpo, mas estava rígido, como se suas articulações fossem feitas de gesso.
Sentiu algo parecido com um som, mas ao mesmo tempo diferente. Uma vibração reverberando pelo espaço em volta dele. Era estranhamente familiar. Sentiu-a novamente e então mais uma vez. estava ficando mais perceptível, como se a sua causa se aproximasse de Ítalo.
Ele já tinha sentido aquilo antes, mas aonde?
Sentiu uma tontura quando percebeu o contorno de uma figura humana surgir à sua frente. Não conseguia discernir-la muito bem, mas a escuridão parecia se dobrar ao seu redor.
— Parece que eu consegui ver-te mais uma vez, portador.
Ítalo quis perguntar quem era, mas sua boca não se movia. A figura continuou falando:
— Como também, parece-me que tu conseguiste reunir essência o bastante para se lembrar. Bom, talvez se lembre de duas palavras, ou três.
Os sons continuaram, fazendo a mente de Ítalo tremer.
A figura inclinou a cabeça para o lado.
— É melhor que eu comece a falar — disse —, antes que seu pesadelo comece.
Rachaduras surgiram em volta dos dois, muito parecidas com…
“Não, não, não”.
— Lembre-se disso portador, “Estrela”, “deserto”, “atravesse” — A figura disse e desapareceu.
As rachaduras se abriram, e as coisas passaram.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.