Capítulo 60 - O Jogo das Aparências
45 minutos depois.
Os minutos se arrastaram de forma visivelmente tensa, com uma dúvida constante marcando cada segundo. Uma única e persistente ideia atormentava os cantos de minha mente durante a extenuante sessão de treinamento corporal com Nicholas:
“É só acertá-lo e fim de jogo.”
Não era um objetivo nobre motivado por uma necessidade de apoio ou vitória. Era um desejo desesperado de alívio do sofrimento constante e da dúvida que surgia a cada segundo. Fui empurrado para além dos meus limites percebidos. Minha mente tentava freneticamente encontrar uma maneira de contornar a provação física e mental.
“Contanto que eu consiga pelo menos tocá-lo com um ataque, vai ser uma avanço.”, A ideia se enroscava em meus pensamentos. “Ele é bom nisso, então não vai ser fácil.”
A tentação era sedutora, como a voz de uma sereia, oferecendo um alívio fugaz da dor. No entanto, havia uma verdade amarga no apelo. Um golpe banal, um momento de vulnerabilidade, não significaria nada diante de Nicholas. Isso só demonstraria meu desespero, não meu talento.
O suor e a preocupação incômoda que corroía minha confiança, sussurrando dúvidas sorrateiras em meu ouvido, eram os passos que levavam à vitória, se é que era possível ter algum resultado positivo. O caminho para o game over continuava sendo meu objetivo final, mas não era mais uma rota de fuga. Tornou-se o cume de uma montanha traiçoeira que eu estava subindo lenta e dolorosamente.
“Vou tentar de novo.”
Meu punho, um borrão de agressividade desesperada, apontou para o ponto vulnerável logo abaixo da mandíbula de Nicholas. Ele antecipou o movimento com seu antebraço, que era uma parede de aço que desviou meu golpe. Antes que eu pudesse reagir, sua mão agarrou meu pulso, um torno que me arrancou a luta.
Mantendo-o preso, girou em seu eixo e me arremessou contra o chão. O meu mundo se transformou em um caleidoscópio de suor, poeira e a ameaça sempre presente do tapete de treinamento correndo ao encontro do meu rosto. Um suspiro sufocado escapou de meus lábios quando o impacto causou um choque de dor em meu corpo.
— Porra…
Fiquei deitado, esparramado de costas, com o gosto da derrota em minha língua. A vergonha ardia em minha garganta, mais quente do que a dor em meu ombro.
— Tá esquecendo o que eu te falei, garoto. — Nicholas apontava para a própria têmpora com o dedo indicador. — Pense com clareza e aprenda a ler seu oponente.
— Hmm…
Quando me levantei, a prática recomeçou.
Talvez o fim de jogo não se tratasse apenas de um único golpe, mas de aprender a suportar mil quedas antes que eu pudesse finalmente me manter firme.
Meus movimentos letárgicos e minhas mãos pesadas eram uma clara indicação do tumulto interno que eu estava vivendo. Cada “bata nele” se transformava em uma angustiante pergunta “como?”.
“Isso era tudo o que eu podia oferecer? Um louco atacando cegamente um alvo que estava fora de alcance? Não… As coisas não podem continuar assim para sempre. Algo aqui tem que funcionar.”
Uma pitada de rebelião, um lampejo de algo mais sutil do que a violência desatenta. Os conselhos de Nicholas começaram a ter um efeito diferente.
“Pense!”, me veio à mente novamente, mais como um desafio do que como uma piada. Talvez o problema não fosse bater nele, mas saber quando e como fazê-lo.
Todavia, algo nele me incomodava. Sim, ele era um lutador muito forte que facilmente me derrubava, mas, por baixo daquela fachada feroz, faltava algo, algo vazio, e isso me perturbava.
Cada um deles – Mikael, Lewis, Mandy, Raven – pulsava com uma energia única. Nicholas, no entanto, era uma tábula rasa. Me sentia deslocado não porque havia uma energia negativa presente, mas porque não havia nenhuma. Nicholas parecia estar em um estado constante de… o quê? Desconexão? Indiferença? Ou talvez algo mais sombrio?
Gradualmente, fui me dando conta e comecei a sentir um frio na barriga.
“Esse cara não tem energia negativa alguma!”
A minha suposição era pavorosa. Um homem aparentemente imune às complexidades que moldavam a alma humana, imaculado pela força energética onipresente que se agarrava à terra. Será que Nicholas era uma anomalia, um ser à parte do mundo material? A sua aparente falta de energia negativa poderia ser uma fachada bem cuidada que esconde um nível de força que faria até mesmo a alma mais resistente hesitar?
“Não tenho certeza, mas se isso for verdade…”
A sua própria existência era um paradoxo, um desafio à minha compreensão da condição humana.
“Ele é o verdadeiro resultado do esforço físico.”
Girei meu corpo, ao mesmo tempo que minha perna se lançava em um arco que visava atingi-lo pelo queixo. Ele recuou, e o golpe passou inofensivamente por sua orelha.
Eu estava me sentindo frustrado. Dei mais uma rodada de chutes, mirando nos membros inferiores. No entanto, Nicholas tinha reações impressionantes. Apenas o bloqueio firme de seu joelho, alinhado com precisão para coincidir com a trajetória do meu pé, era o alvo de cada golpe.
A vergonha ardeu em minhas bochechas. Ele estava sempre um passo à minha frente quando eu lançava um ataque; era como tentar acertar um fio de fumaça.
Desanimado, recuei, com a respiração presa no peito.
“Nada adianta, que merda!”
Por trás da minha raiva, havia um indício de outra coisa, uma admiração relutante. Nicholas não estava tirando sarro de mim; em vez disso, havia um brilho de algo como… pena? Não, com certeza. Isso era mais um desafio subjacente para que eu me empenhasse mais e fosse além do novato que eu sou.
Talvez usar a força não fosse a melhor solução. Talvez eu devesse ter me inspirado nele – flexível, astuto e sempre um passo à frente do conflito. Minha mandíbula se contraiu e me endireitei.
Em um passo para trás com o pé direito, elevando os braços até cerca de nivel do meu queixo, acompanhado pelos punhos, paralelos uns aos outros, e os cotovelos levados para dentro, mantendo sempre as minhas costas eretas e olhos fixados sobre meu alvo, coloquei-me na posição certa.
— Assim mesmo. — Ele abriu um sorriso confiante. — Aprendeu, finalmente.
— Posso?
— Faça o que puder, mas faça certo.
Balancei a cabeça positivamente.
“É só acertá-lo e fim de jogo.”
Retomando o sistema de ataque e defesa, precisei ser extremamente cuidadoso e exato em meus movimentos.
Mesmo depois de perder, e apesar de estar exausto, continuei agindo.
Se o soco for irreparável, como meus dedos indicador e médio são maiores e mais fortes que os outros, tentei atingi-lo com eles simultaneamente. Dessa forma, o dano era imediato.
Se o meu alvo estiver se movendo rapidamente, sigo esses movimentos das mãos com precisão, alternando entre movimento, desempenho, ataque e efeito.
Cada jab e gancho era um ato deliberado de ataque que fluía em uma sucessão rítmica. Era uma performance eficiente, uma avaliação contínua do desempenho, do ataque e do resultado pretendido. Não havia gestos inúteis ou exibições ostensivas, simplesmente uma concentração incansável para atingir meu objetivo.
Quando meu punho se estendia à frente ou aos lados, ele sempre se esquivava ou bloqueava com os antebraços, mesmo que eu estivesse atacando sua parte superior do corpo.
O meu último ataque foi um jab, um golpe rápido e preciso. A contramedida dele foi prender meu pulso, girando sob meu braço, numa tentativa de me prender pelas costas. Antecipando seu movimento, mantive minha posição, sem recuar um centímetro. Em vez disso, virei seu ímpeto contra ele. Com uma rápida torção do braço e uma rotação sobre o calcanhar no sentido oposto, usei o peso do meu próprio corpo para quebrar a imobilização.
A situação se inverteu em um piscar de olhos. O agarre rápido de Nicholas saiu pela culatra. Em vez de me controlar, seu pulso agora estava preso sob meu aperto, seu braço dobrado de forma estranha no cotovelo. Com uma volta rápida, ele virou o corpo para o outro lado, minimizando o risco de uma articulação deslocada. Mas essa manobra também o deixou exposto.
Uma onda de adrenalina correu por mim. Aproveitando essa oportunidade fugaz, avancei, me puxando em sua direção. O ar crepitou com um desafio implícito quando meu punho, finalmente encontrando seu alvo, aterrissou com um baque retumbante no centro de seu peito. Foi uma prova de minha persistência, uma vitória conquistada com muito esforço contra um adversário formidável.
— Consegui.
— É, você conseguiu.
Foi um momento incrível de vitória, uma prova da minha vontade incondicional de derrotar um adversário cujo poder e talento haviam me levado ao limite.
Nicholas bufou, uma risada seca escapando de seus lábios.
— Para um garoto magrelo como você, até que se saiu bem. — Ele balançou a cabeça, esboçando um sorriso irônico. — Kal é um doente, isso é certo. Mas seu tipo de esquisitice… bem, digamos que às vezes é útil.
Ele andou até a estante e pegou a garrafa d ‘água que estava pela metade, bebendo-a completamente.
— Quer também? — Virou-se para mim, segurando outra garrafa.
— Uhum.
Logo que Nicholas a jogou para mim e a mesma pousou na minha mão estendida, minha curiosidade explodiu.
— Então, você e Mikael… Vocês são melhores amigos?
— Melhores amigos? — Ele repetiu, levantando uma sobrancelha. — O que te deu essa ideia?
Ele adotou uma atitude falsamente egoísta, estufando o peito e projetando uma expressão de indignação exagerada. Apesar da dramaticidade, em seus olhos, havia uma sugestão que contrariava sua negação leviana.
— É o que dá pra notar.
Nicholas riu novamente, o som mais rico desta vez.
— De forma alguma. Muito longe disso. E não faça mais esse paralelo esquisito.
Um lampejo de algo cruzou o rosto dele quando mencionei a suposta amizade deles. Foi uma expressão fugaz, que desapareceu quase tão logo apareceu, mas ficou registrada em minha mente. Desconforto? Talvez até uma ponta de… ciúme?
— Parceiros de trabalho. — Ele zombou, com o tom carregado de desdém. — Claro, essa é uma maneira de dizer. Faz com que pareça tudo bem arrumado e profissional, não é? A verdade é que tolerar Kal é um pé no saco.
Seria difícil pensar que Mikael pudesse odiar alguém, mas se pensarmos a respeito de Nicholas, acho que é bem provável que ele guarde um certo rancor, do tipo que preservava um ressentimento, que era o equivalente a tomar o veneno e esperar que a outra pessoa morresse.
— Ele é uma lembrança de um passado que eles preferem esquecer. — Seu olhar se desviando de mim por um momento. — O filho de uma bruxa, a mulher que foi condenada ao ostracismo e caçada, assim como você parece destinado a ser.
— Hã? E-espere… Sobre minha parte eu já sei, mas… O que você quer dizer com isso? Sobre Mikael ser filho de uma bruxa.
Era algo que eu precisava desesperadamente entender, uma verdade que poderia mudar tudo.
— Ele provavelmente escondeu isso de você. Essa é uma história antiga. O Tribunal do Santo Ofício…
Antes que ele pudesse explicar, foi interrompido pelo barulho da porta se abrindo. Um soldado, vestido com um uniforme tático, estava parado na porta.
— Com licença. — disse, sua voz entrecortada e formal. — A vice-líder está solicitando sua presença em seu escritório imediatamente.
Nicholas soltou um suspiro frustrado, seus ombros caíram ligeiramente.
— Pelo jeito essa conversa se encerra por aqui. — Lançou um olhar austero em minha direção. — Nesse meio tempo, é bom ter em mente: não confie em tudo o que falam para você. Sempre há um outro lado da história.

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