Capítulo 52 - Palavras.
“Estrela”.
Tyler o mandou correr até suas pernas não aguentarem mais.
“Deserto”.
Tyler o mandou fazer cinquenta flexões, mesmo com Ítalo afirmando não conseguir fazer mais de trinta.
“Atravessar”.
Tyler o mandou socar uma rocha quente até suas mãos sangrarem.
— “Cê” tá brincando com a minha cara?
Tyler deu de ombros.
— Você me pediu para ensiná-lo a lutar, e agora tá reclamando?
— Que tipo de treinamento maluco é esse? — perguntou, se recusando.
— Ah, sei lá, nunca treinei ninguém antes — respondeu ele , coçando o queixo, onde alguns fiapos de barba cresciam.
— Me ensina do jeito que tu aprendeu então — Ítalo berrou.
— Não vai funcionar, você ainda é muito fraco, por isso estamos fortalecendo o seu corpo — retrucou Tyler, tediosamente. — Por isso para de reclamar e faz o que eu mando,
— Beleza, mas bater em pedra já é demais.
— Nah, isso foi só porque eu queria ver se tu ia fazer mesmo — disse ele com um sorriso zombeteiro. — Agora, faz uns agachamentos aí.
— Quantos?
Tyler olhou para cima,de forma pensativa.
— cinquenta.
Ítalo protestou e Tyler aumentou para sessenta.
Já era noite, “estrela”, o acampamento acabara de ser levantado após um dia de marcha nas encostas escarpadas das rochas, “Deserto”. Ítalo podia ver as cortinas de areia sendo erguidas pelos fortes ventos no horizonte, os quais vez ou outra sopravam contra eles, através das rochas. “Atravessar”.
Depois do treino físico, Tyler mandou que Ítalo o observasse.
— Veja, a base de qualquer coisa que você queira aprender é a repetição. Seja tocar violão, cozinhar ou se chupar um pau, quanto mais tempo você praticar, melhor ficará naquilo, por isso vou mostrá-lo como socar.
Ítalo endireitou o corpo, prestando atenção.
Tyler se colocou em uma posição de guarda, a perna esquerda na frente, a direita atrás, o braço esquerdo próximo ao rosto, e o direito recolhido um pouco abaixo do queixo. Uma pose de um autêntico boxeador. Muito parecida com a que usou quando lutava com o homem gordo.
Em um instante, ele girou seu corpo, seu braço direito se projetou para frente, com um som cortante, e retornou quase no mesmo momento, para a mesma posição, como se todo o movimento fosse apenas uma ilusão de ótica.
— Agora, me imite — Tyler disse, desfazendo a pose.
Ítalo, o fez da melhor forma que pode, tentando não deixar o tremular, devido ao cansaço de seus músculos, o atrapalharem.
“Estrela”, “Deserto”, “Atravessar”.
Tyler se aproximou e ajustou sua pose, mandando-o permanecer assim por tempo indeterminado.
— Bata — Bradou ele de repente.
Ítalo o fez. Seu braço se moveu para frente em movimento errante e fraco, permanecendo estendido por meio segundo antes de retornar.
— De novo — mandou.
Ítalo o fez.
— O braço não se move sozinho, gire o quadril na direção em que ele se estende para dar força ao golpe, faça o ombro acompanhá-lo — Tyler dava-lhe dicas, exemplificando como deveria ser feito.
Ítalo já havia perdido as contas de quantas vezes havia repetido aquele mesmo movimento quando Tyler o mandou parar. Ele o mandou fazer alguns alongamentos, e decidiu retornar para onde a tenda havia sido armada.
A minguante lua azulada estava alta no céu, acompanhada de uma multidão de estrelas. Ítalo se pegou pensando a respeito daquilo. Se havia lua, estrelas, e sol, então aquele mundo era um planeta, e flutuava no espaço, assim como a terra. Ítalo não podia deixar de se perguntar em que lugar do universo aquele planeta estava, ou se ele ficava na mesma galáxia da terra. De repente se sentiu assustado, se perguntando se algum dia voltaria. Estava tão longe.
“Estrela”, “deserto”, “atravessar”.
Passaram por entre as fogueiras, onde dúzias de refugiados se aglomeravam em grupos. Cada grupo se vestia e agia de uma forma diferente, transparecendo ser de uma forma diferente. Ítalo perguntou a alguns acerca do lugar de onde haviam vindo, ouvindo muitas respostas diferentes de lugares da qual nunca havia ouvido falar, o que não era surpresa, uma vez que não sabia quase nada sobre geografia naquele mundo. Sabia apenas que aquela grande estrutura geológica, chamada de “Passagem de pedra”, ligava dois lugares diferentes, os quais eram separados por dois grandes desertos, cada um de um lado da passagem. Um era chamado de “mar vermelho”, o outro, o que eles comumente viam no horizonte, era semelhantemente chamado de “mar dourado”. Um nome familiar a Ítalo.
“Estrela”, “deserto”, “atravessar”.
Eles chegaram até o lugar em que a tenda havia sido armada.
A fogueira queimava na frente, com a carne de algum animal espetada em cima. Marcelo havia caçado algo. Pamela e Daisy estavam perto do homem gordo, tentando “adestra-lo” novamente, como gostava de brincar Tyler.
— Olha só parece que o velhote fez algo que preste — Tyler falou, se aproximando da carne.
— Por falar nisso, cadê ele? — Ítalo perguntou, sentindo a falta do homem calvo.
— Ele disse que ia atrás de alguma bebida — Pamela respondeu, se aproximando deles.
— Onde ele arranjou dinheiro?
— Deve ter achado algumas moedas que eu deixei na tenda — Tyler respondeu a Ítalo. — Lá se vai qualquer outra coisa que elas poderiam comprar.
— Ah, culpa sua por deixá-las tão fácil assim — Pamela disse olhando para Tyler, com um jocoso sorriso no rosto.
ítalo sentiu uma pontada em seu estômago ao ver a cena.
— Precisamos de água — Ela falou, ainda olhando para Tyler.
— Ei, Ítalo, vai lá pegar, antes que fique muito tarde — disse Tyler, estendendo um jarro tampado.
— Por que eu tenho que ir? — O estranho incômodo que sentia em seu estômago respondeu por ele.
— Por que seu professor mandou — Tyler retrucou, lhe jogando o jarro. Ítalo o pegou para que não caísse no chão.
— Ei, pirralha, vai com ele também — Tyler gritou na direção de Daisy, que os encarou.
— Melhor não, ela pode estar fraca devido a perda de sangue — comentou Pamela.
Desde que Ítalo a havia contado a respeito do sangramento, ela ficou preocupada com a garota.
Tyler revirou os olhos.
— Não sei pra que essa preocupação, vocês sangram o tempo todo.
Pamela respondeu de forma agitada e os dois começaram uma pequena discussão.
Nisso, Ítalo se afastou, percebendo que Daisy não iria mais com ele. A garota sequer tinha se movido, e já tinha voltado a sua atenção para o homem gordo, falando baixo demais para que outras pessoas pudessem escutar.
“Estrela”.
Era fácil dizer onde estava a fonte, bastava seguir a fila de pessoas que iam e vinham com jarros, vazios e cheios. A caravana sempre acampava próxima de algum lugar com fonte de água. Algo neles intrigava Ítalo. Muitos estavam em ruínas de construções humanas, dando indícios de uma civilização existente naquele lugar, mas quando perguntava a respeito para as pessoas que viajavam com a caravana, eles negavam saber a respeito de qualquer povo que vivera ali além das tribos escondidas em cavernas. O que indicava que talvez essas tribos fossem os moradores originais desses lugares, e por algum motivo tiveram de se retirar para dentro do solo. Qual seria o motivo ainda intrigava Ítalo. A resposta talvez estivesse no que todos na caravana temiam ao olhar para o mar dourado.
“Deserto”.
O vento levantava pequenas cortinas de areia por cima das dunas. Segundo alguns mercadores que já haviam feito aquele caminho dezenas de vezes, isso era o indício de que a época das tempestades estava próxima. Ventos fortes atingiram a areia e uma cortina subiria até os céus, soterrando a tudo.
“Atravessar”.
Isso duraria meses, o suficiente para enterrar qualquer vida que não estivesse escondida debaixo de alguma rocha.
Ítalo chegou até uma fila, que levava até a fonte mais próxima, formada por dezenas de crianças e mulheres que esperavam por sua vez.
Ele olhou para o horizonte, na direção que os ventos sopravam, as estrelas brilhavam por cima do deserto, que era atravessado pelas pequenas cortinas de areia. Ele então se perguntou no que haveria além daquela visão.
“Estrela, deserto, atravessar”… por que ele estava pensando nisso?
Essas palavras estavam presas em sua mente desde quando acordara, após sonhar com aquilo. Seus pés se tornaram instáveis ao pensar no pesadelo que o acometera. Garras, asas e dentes. Criaturas disformes o esmagando sobre pés, cascos e patas, de todos os tamanhos. Os sons, os horríveis e inaudíveis sons.
Os outros não falavam daquilo, eles não viram. Ítalo desejava não ter visto. Queria esquecer. mas os sonhos lhe levavam sempre aquele momento em que o deus os abandonara. O que aconteceria a ele se houvesse ficado naquele lugar? Não queria pensar naquilo.
Ele fechou os olhos, sacudindo a cabeça. Seu cabelo coçava, estava molhado de suor.
— A fila andou — ouviu uma voz dizer ao seu lado.
Ítalo abriu os olhos e reparou o guarda jovem que o abordara no outro dia. Ele carregava uma lança, e vestia seu usual manto, a qual todos os soldados da caravana trajavam.
— Sarosh — disse, relembrando o nome.
— Melhor andar logo — alertou ele, apontando para a fila.
Ítalo o fez, e então percebeu uma oportunidade.
— Sobre a última vez que nos vimos — falou abruptamente, chamando a atenção de Sarosh, que já se virava para ir embora. — O que quis dizer com o lance da adaga?
— Lance? — perguntou Sarosh, com um quase imperceptível franzir de sobrancelha.
Ítalo hesitou, percebendo seu erro.
— O que você disse sobre a adaga, que, é… você a segurava da mesma forma que eu — coçou a nuca, tentando achar as palavras certas.
Sarosh alternou seu olhar entre os lados, acima e abaixo, como se estivesse pensando.
— Sim, o que você quer saber? — disse por fim.
— Você disse que… — Ítalo buscou as palavras certas para dizer, antes de continuar. — Aquela adaga, você disse que era igual a do seu senhor, o seu senhor também tem uma parecida com aquela?
— Não, a dele não é uma adaga, e sim uma espada.
Ítalo franziu as sobrancelhas.
— Então como pode dizer que é igual?
O soldado inclinou o rosto.
— Ambas são o que chamam de “armas arcanas”.
— “Arcanas”, o que isso quer dizer?
O soldado olhou para cima antes de responder.
— Sobre isso, não tenho certeza, afinal meu senhor conseguiu essa espada de um soldado das terras dos Elldayrtas.
Ítalo arregalou os olhos.
— Terras dos Elldayrtas, onde fica isso?
O soldado apontou para uma direção, e Ítalo a seguiu com o olhar.
— A fila andou — disse ele. — Não sei ao certo onde é, mas dizem ser depois do grande mar azul, no fim da passagem de pedra, é depois de Narkul, talvez estávamos lá antes do fim da próxima volta de lua — concluiu, antes de se afastar.
Ítalo seguiu a fila, e retornou com a água, atravessando o acampamento até o lugar onde a tenda estava armada.
Descobriu que Marcelo tinha retornado com uma grande botija, o que devia significar seu êxito em conseguir alguma bebida. Curiosamente, a expressão dele indicava o contrário. Uma carranca de desgosto marcava o rosto do homem, do queixo até o final de sua testa, onde o vale calvo começava.
Logo Ítalo descobriu que ele estava assim porque, segundo ele, a bebida era muito fraca, e não lhe fazia qualquer efeito.
Mas Tyler bebia alegremente, visivelmente alterado. Assim como, para a surpresa de Ítalo, Pamela, que também tomava alguns goles. Até Ítalo provou da bebida, por insistência de Tyler, sufocando no processo por conta de seu sabor forte, que não lhe descia a garganta.
Ele se perguntava o quão forte uma bebida tinha de ser para ter efeito em Marcelo.
O cheiro de álcool permeava o ar envolta deles. O que incomodava um pouco Ítalo. Mas, uma vez que Daisy não parecia incomodada com isso, ele se esforçou em aguentar. Todos comeram do animal caçado por Marcelo e se recolheram. Normalmente, fariam turnos de vigília, mas como a maioria deles estava bêbada, todos dormiram.
Devia estar próximo do final da madrugada quando ítalo acordou. Para sua felicidade, ele não sonhou aquela noite.
O vento soprava forte. Ele tinha de se cobrir com um manto para se proteger do frio. seu corpo doía devido ao cansaço do dia e da noite. Notou o homem gordo deitado, coberto por um casulo feito de dezenas de panos e mantas para protegê-lo do vento. Amarrado feito um crocodilo capturado.
A maior parte das luzes tinha se apagado, à exceção de alguns guardas nas extremidades do acampamento, que caminhavam com fogueiras, e das estrelas, que brilhavam solitárias no céu. ítalo não podia mais ver a lua. O deserto se estendia para além da vista no horizonte enquanto um vento sussurrante atravessava a noite.
“Estrela, deserto, atravessar”, Ítalo percebeu essas palavras em seu pensamento mais uma vez. Era difícil não pensar nelas,
— Está cansado? — Uma voz cortou o silêncio da noite, o fazendo se sobressaltar.
Era Daisy, enrolada em meia dúzia de mantos.
— Não — respondeu.
— Posso ver nos seus olhos que é mentira — retrucou ela.
— Como se pudesse enxergá-los nesse escuro.
— “Touchê” — ela respondeu, se aproximando. — Melhor ir dormir, sei que tá cansado de ficar treinando com o Tyler daquela forma.
Ítalo levantou uma sobrancelha.
— Por que essa preocupação de repente?
— Ou se quiser, fique acordado, mas acho que o dia de amanhã será mais cansativo que o de hoje. Principalmente para um rato de biblioteca como você.
Ítalo bufou, se levantando.
— E você parece mais uma cadela pincher.
— Olha, alguém tá aprendendo a xingar. Passar algum tempo com o Tyler talvez te ajude em alguma coisa mesmo.
Ítalo se cansou daquela conversa e entrou na tenda, se afastando daquela garota. Não lhe traria nada de bom continuar falando com ela. Ele voltou a dormir, sonhando mais uma vez com as coisas.
Quando a manhã finalmente o libertou do pesadelo, ele percebera algo alarmante.
Daisy e o homem gordo haviam sumido.
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