Índice de Capítulo

    O inverno estava cada vez mais próximo e, ao que tudo indicava, seria a estação mais calma na vida da maioria dos civis e portadores — mas isso poderia acabar cedo ou tarde. 

    Afinal de contas, não era só a Strike Down e a Black Room que estavam realizando seus preparativos. A situação caótica daquele dia chegou também aos ouvidos de Yang, que se mostrou indiferente quanto à maior parte das informações. 

    “Entendo. Então Ryuu perdeu.” 

    Ele recebeu a notícia pouco tempo depois do ocorrido. No entanto, ao invés de se sentir triste, irritado e com desejo de vingança, ele apenas deu de ombros. 

    “Alguém foi capaz de derrotá-lo. Esse é apenas o curso natural das coisas. Só preciso encontrar um substituto depois.”

    E essa foi sua maneira fria de se despedir da pessoa que o seguia e admirava desde pequeno. Ele não era tão significante em sua vida. 

    Yang deixou o edifício em que estava localizado, no centro da cidade, e seguiu a pé pela multidão naquele fim de tarde. Ele fora convocado pelos superiores da Ascension para discutirem os últimos ocorridos e saber quais os próximos passos. 

    Ele foi, mas com outra coisa em mente. 

    Sendo chefe do Departamento de Operações, ele não tinha muito poder na organização à vista dos demais membros, então precisava mudar isso uma hora ou outra de qualquer jeito, até porque isso era algo que ele, sendo quem era, poderia fazer a qualquer instante. 

    Está na hora de assumir o controle das coisas um pouco. 

    A reunião estava sendo realizada na principal base subterrânea, escondida na floresta próxima do monte Fuji. Era uma grande construção abaixo do solo, feita centenas de anos atrás e mantida em bom estado por séculos, apenas para servir de sede para uma organização tão vil. 

    Os portões de pedra eram grossos como muralhas, as quais nem centenas de homens comuns poderiam abrir. E o caminho até eles era um corredor amplo, com estranhos cubos transparentes e esferas brilhantes iluminando a passagem. 

    O silêncio era inquietante, sendo quebrado apenas pelos passos lentos de Yang. 

    Os guardas que estavam nos cantos do caminho até os portões observaram-no em silêncio. 

    Depois de um tempo, ele chegou ao portão. O mero toque de sua mão foi o suficiente para abri-lo com um som pesado. Imediatamente, os olhos daquelas dezenas de pessoas se voltaram a ele. Sérios e silenciosos, eles observaram Yang atravessar os portões com seu sorriso inabalável no rosto. Os enormes portões fecharam-se atrás dele. 

    A imensa sala também era iluminada pelos mesmos objetos ao redor. Os líderes da Ascension cobriam seus corpos com mantos negros, os quais possuíam decorações e cores diferentes, que eram suas marcas únicas. Eles estavam assentados em volta de uma grande mesa de mármore com entalhes vermelhos e dourados em sua superfície. 

    No primeiro momento, ninguém se atreveu a abrir a boca, o que deixou um clima pesado e sombrio na sala. Até que Yang decidiu falar. 

    “Que silêncio doloroso. Por que me chamaram aqui se não vão dizer nada? Estavam com saudades, é?”

    “Yang. Você demorou mais que o esperado”, disse um deles, com sua voz firme. 

    “Ah… peço desculpas por isso. Acabei ajudando uma senhora na rua, então me perdi no caminho.” Yang sorria tranquilamente, mesmo que estivesse dizendo uma das maiores mentiras já proferidas por ele. 

    Afinal de contas, nem mesmo em um mundo paralelo Yang ajudaria alguém por bondade. 

    “Esqueça isso. Você está aqui para responder pelas suas ações recentes. Recebemos um relatório de que um de seus subordinados foi morto, e ao pesquisarmos, descobrimos que ele estava envolvido em uma operação que nós não conhecíamos.”

    “Hum? O que isso quer dizer?”, cantarolou Yang, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Seu nível de sarcasmo era elevado demais e rapidamente aqueles ditos superiores se irritaram. 

    “Yang! Nós sabemos que você é forte e tem uma grande influência na organização, já que é um dos filhos de Yin. No entanto, isso não quer dizer que você, sendo Chefe do Departamento de Operações, possa fazer o que bem entender sem nos consultar, os doze monarcas.”

    “Já faz várias semanas que Kanemi, Ryuu ou Shiro não se apresentam na organização. Com exceção de Ryuu, onde eles estão agora e o que estão fazendo? Responda!”

    Eles levantaram suas vozes em autoridade, exigindo explicações. Porém, Yang suspirou, sem tirar seu sorriso. 

    “Olha… se me permite, senhor ‘Tanto faz’, o que eu faço não diz respeito ao senhor. Onde os meus subordinados estão não é da sua conta”, ele disse de forma debochada. 

    “Ora, seu…!”

    “Já basta disso!” Um deles bateu fortemente contra a mesa e se levantou, seu dedo indicador apontado para Yang, tremendo de raiva. “Você perdeu cinco subordinadas de uma vez só. Perdeu a parceria que tínhamos com os institutos. Tudo o que você fez até agora só serviu para nos atrapalhar.”

    “Você planeja nos derrubar, por acaso? Ou então desviou-se dos caminhos da organização?”

    Enquanto todos levantaram sua voz em protesto, Yang manteve sua boca fechada e baixou a cabeça, mas não por obediência. 

    Alguém como ele, que fazia o que bem entendia — porque podia — não se curvaria tão facilmente para ninguém. Aqueles sentados ao redor da mesa portavam o título e tinham o poder de controlar toda a Ascension, mas Yang não se importava nenhum pouco. 

    “Hahahaha! Isso é engraçado. E se eu tiver mesmo atrapalhado as missões? Ou melhor… talvez eu tenha interferido propositalmente para que eles dessem errado… o que vocês poderiam fazer? São apenas hienas se aproveitando da carniça deixada pelos outros. Buscam um poder que não podem adquirir… conseguem perceber o tamanho da arrogância que carregam?”

    Àquela altura, ele não estava se importando nenhum pouco com quem quer que estivesse à sua frente. As tochas da sala iluminavam o rosto sorridente e inabalável daquele homem. 

    “Yang…! Está nos desafiando? Você sabe o que pode te acontecer, não sabe?!”

    “Kukuku… o que vocês poderiam fazer? Acham que podem ter alguma chance?” Ele caminhou até a mesa e a tocou levemente. 

    A mesa foi destruída com um estrondo, como se fosse vidro, levantando poeira e jogando estilhaços para todos os lados. Os monarcas saltaram naquele momento e se distanciaram. 

    “Seu verme imundo…! Está indo contra a organização?!”

    “Você não vai escapar com apenas uma punição, maldito!”

    Os gritos de ameaças cheios de rancor deles entravam em um ouvido e saiam pelo outro. Yang não via nada mais que palavras vazias vindo dos desesperados por poder. 

    É tão hilário. Eles fazem de tudo, mesmo que não vão alcançar nada. Coisa ridícula e patética.

    “Se forem me matar tentem logo. Ficar perto de vocês me dá… como se diz? Mal-estar.”

    Esse foi o gatilho para a fúria e a repugnância tomar conta da sala inteira. 

    “O que é isso?! Perdeu a cabeça de vez?!”

    “Não pense que vamos te deixar ficar assim, Yang!”

    Mesmo que eles gritassem com todas as suas forças, suas palavras não o afetaram de forma alguma. Era como se ele estivesse sendo ameaçado por crianças com complexo de superioridade. 

    A verdade era que não havia nada que eles pudessem fazer. Eles pensavam que o poder estava em suas mãos, por isso nunca enxergaram quem realmente estava no controle desde o início.

    Eles gritaram pelos guardas, mas ninguém apareceu. 

    “Onde eles estão?! Por que não respondem ao chamado?!”

    Yang tinha a resposta para isso. Seu sorriso sarcástico ficou sombrio e seus olhos brilhavam com a aura que se escurecia ao seu redor. 

    “Ah, desculpa interromper, é que eles não virão mesmo que vocês se contorçam ou se debatam. E também não há nada que vocês possam fazer. A era de vocês, os tais monarcas, chegou ao fim. Eu vou fazê-los se lembrar quem sou.”

    Os monarcas arregalaram seus olhos em uma fúria incontrolável.  O que Yang queria dizer? Sua resposta foi dada por meio de ações. 

    “O poder que aquele homem descobriu e pesquisou, vai ficar nas minhas mãos — Não se preocupem, eu farei bom uso dele. Nível 2: Materialização.”

    Assim, sem que pudessem sequer resistir, um a um, o dragão brilhante atravessou a sala de um lado para o outro, devorando e trucidando os monarcas, enchendo aquele lugar de pavor, berros de agonia e dor e sangue. Enquanto isso, Yang apenas observava o espetáculo com um sorriso.

    O que ele estava sentindo ao fazer aquilo era difícil de dizer. Talvez ele não estivesse sentindo nada na realidade, e seu sorriso era tão vazio quanto seu coração. 

    Ao fim da chacina, restos de corpos multilados espalhados por toda a parte, sangue colorindo o chão, as paredes e a mesa, foram tudo o que restaram, junto ao silêncio absoluto que ficou naquele lugar. 

    Todos os trinta guardas que estavam no corredor também foram mortos de forma brutal, e Yang passou por eles sem remorso, caminhando até a saída, triunfante. 

    Os monarcas, os únicos que podiam dar ordens a ele, estavam mortos. O controle da Ascension poderia ser reivindicado por suas mãos naquele momento, e não teria ninguém para puní-lo. 

    “Aqueles bastardos idiotas… sempre faziam as coisas da forma mais indireta e silenciosa possível. Não passavam de um bando de moleques que nem sabiam o que estavam buscando de verdade”, disse a si mesmo. 

    Seus passos serenos ecoavam pelo cemitério que aquele corredor mal iluminado tinha se tornado. A sombra atrás dele parecia ficar maior à medida que suas palavras saíam de sua boca e o silêncio perturbador deixava tudo mais sombrio. 

    “Se querem poder, usem qualquer meio que tiverem. Eu estou em uma constante busca pelo poder infinito. Não tem ninguém capaz de me parar. Nem mesmo aquele moleque, que está começando a me entender, vai ser capaz disso. Bem… parece que é hora de iniciar um novo show.”

    Quando aquele incidente com os portadores chegou aos seus ouvidos, Yang percebeu que Mayck estava lutando contra ele, mesmo estando longe. Ele conseguiu ver que o garoto tinha capacidade de bater de frente com ele, mas, ao invés de ficar alarmado, ele se animou muito mais; sua jornada eterna em busca de seus objetivos não seria tão entediante. 

    “Esse mundo… ele é realmente interessante.” Ele riu sutilmente e pegou seu smartphone, completando uma ligação em seguida. “Katagiri, vamos começar.”

    O que ele estava prestes a começar, iria abalar o mundo muito em breve. Ele não conseguia dizer ao certo o que Mayck planejava, mas percebeu uma falha em seu plano: com a queda no número de portadores na região de Tóquio, o número de Ninkais ali iria aumentar e eles se multiplicariam cada vez mais.

    Tóquio se transformaria num ninho para os monstros, que, em breve, estariam passando por uma mutação devido aos eventos que Yang daria início. 

    Não pensem que acabou. Vocês não vão ficar em paz tão cedo. 

    “Haha… hahaha… hahahahah!”

    Sua gargalhada ecoou pelo corredor de pedras e cadáveres. Yang tinha planos assustadores para aquele lugar. Ele não pararia tão cedo e estaria sempre criando algo novo para despertar aquilo por completo e tomar o poder para si. 

    “Quando isso acontecer, aí sim vocês poderão ter paz… isso é, se esse mundo ainda existir lá na frente.” Seus olhos violetas brilhavam de forma bizarra e assustadora, dando indícios dos planos perturbadores que ele tinha em sua mente e que realizaria sem erro.

    <—Da·Si—>

    Mayck apoiou suas mãos em seus joelhos, arfando. O suor escorrendo por seu rosto desceu para o pescoço como uma cachoeira. 

    “Ei… não vamos realmente dar uma pausa? Já faz mais de três horas que estamos nisso…”

    “Fique quieto”, Nikkie falou com autoridade. “Essa é sua punição por realizar ações sem nosso consentimento.” Apesar da voz neutra, ela parecia realmente zangada — Mayck podia afirmar com certeza. 

    “Bem, não há muito o que fazer, M-san. Você realmente quebrou algumas regras”, disse Ethan, enquanto preparava mais um par de manoplas de pedra. 

    “Não vem com essa… você está feliz por poder lutar contra ele de novo”, Kai observou, também preparando algumas esferas pequenas de água em suas mãos. 

    “Aha… você descobriu?” Sua resposta o denunciou. 

    A punição de Mayck, assim como Nikkie a chamou, era sobreviver aos ataques impiedosos do time Alfa sem revidar e sem usar habilidades que não fossem de locomoção. Isso tudo e sem sair do círculo de dois metros de diâmetro que foi desenhado para ele. 

    Era por isso que o garoto estava quase esgotado. Isso já havia começado horas atrás e a cada golpe que ele recebia, aumentava mais dez minutos. Kai e Ethan eram muito habilidosos, então esses dez minutos foram sendo dobrados rapidamente. 

    “Força aí, M-kun. Logo eu volto para ajudar.” Luna estava se divertindo com a situação, enquanto se refrescava com uma bebida energética. 

    “Essa garota…”

    “Hahaha. Vamos, parem de provocá-lo. Isso é cansativo, não? Nenhum de nós está livre no fim. Aliás, onde está Mia?”

    “Hm? Ela saiu dizendo que ia até o banheiro… ah. Olha ela ali”, Luna respondeu, apontando para a porta. “Ei, Mia!”

    Mia se aproximou lentamente, olhando para a luta que havia recomeçado outra vez, com Kai e Ethan atacando Mayck sem misericórdia. 

    “Parece que isso não vai acabar tão cedo.”

    “Realmente. Mas eu sinto que M-kun está ficando mais rápido… talvez sejam Kai e Ethan que estão ficando mais lentos.”

    “É o que parece. M-san está aguentando bem até agora. Eu lembro de não ter durado mais de uma hora e meia na minha primeira punição.”

    “Hahaha. Eu também… aquilo foi o inferno.”

    As três garotas riram, e depois de se recuperarem, se juntaram aos seus amigos para o aumento do sofrimento de Mayck. 

    ****

    A punição acabou, finalmente. Após mais de cinco horas de combate, sem parar, Mayck pôde descansar. Mas mesmo que chamasse se combate, ele apenas esquivou freneticamente dos ataques esmagadores daquele time, que nem se importou em pegar leve. 

    Os de verdade eu sei quem são. 

    Quando se tratava de luta e disciplina, a equipe Alfa realmente levava ao extremo. 

    Mayck lavou seu rosto no banheiro e após se encarar no espelho por alguns segundos, saiu. Sua mente estava calma. Seu corpo, apesar de cansado, se sentia revigorado. 

    Eu acho que precisava de um intensivo desses. Uma luta sem sentimentos ou obrigações em jogo. 

    Todas as suas lutas até aquele momento tinham sido amargas. Ele estava sempre carregando o peso de uma vitória sobre alguém e isso era o mais cansativo. Lutar e vencer significava derrubar sonhos. 

    No fim, era uma disputa de egos, onde alguém teria que desistir de tudo. 

    Eu me pergunto o que acontece se eu perder…

    Sua mente estava focada nisso, mas ele rapidamente voltou a si quando deu de cara com um rosto conhecido, que estava saindo do banheiro feminino do outro lado do corredor.

    “…”

    Eles se encararam atônitos. Mayck pegou a máscara e pôs em seu rosto. 

    “Não adianta você colocar ela agora!” Kasumi o repreendeu, mas ele colocou mesmo assim. 

    “Há quanto tempo.” Mayck deu procedimento a uma conversa, fingindo que nada aconteceu. Por outro lado, a garota ficou sem saber como reagir direito àquilo, então apenas desistiu. 

    “Sim, sim. Há quanto tempo.”

    Kasumi estava usando roupas diferentes de outros agentes da Black Room, visto que ela não era membro da organização. Era como uma roupa comum. A camiseta era branca e a calça também, apenas seu par de sapatos era preto.

    Lembrava muito as roupas usadas por pacientes em um hospital.  

    “Me surpreende você poder andar livremente por aí.”

    Mayck começou a caminhar e Kasumi o acompanhou. 

    “Não é tão livre assim. Eu estou restrita às áreas mais normais. Não posso ir para salas de treinamentos, armas ou qualquer coisa do tipo militar. O mais longe que posso ir é da ala médica até os dormitórios.”

    “Isso é bem restrito mesmo.”

    Da ala médica até os dormitórios não era uma distância tão grande. 

    “Eles vão me deixar ficar aqui por um tempo, até que eu decida o que quero fazer. Sinceramente, eu tenho pensado em parar, mas esse pensamento não me parece certo. Ainda há muitas crianças por aí que estão sofrendo nas mãos dos adultos mal intencionados.”

    “Você planeja salvá-los?”

    “Esse sempre foi o plano… Eu tive muitos impedimentos, mas ainda quero fazer isso.”

    Kasumi teve uma infância conturbada. Ela cresceu nos institutos e foi obrigada a protegê-lo para poder manter as crianças, no mínimo, vivas. 

    Não era uma tarefa fácil. 

    “Se não fosse por você… Eu acho que ainda estaria naquele lugar, com as mãos atadas. Obrigada.” 

    Ela sorriu serena. Seus cabelos acinzentados escondiam seu rosto levemente avermelhado. 

    Não havia pelo que agradecer, pelo menos era o que Mayck pensava, já que eles lutaram por serem inimigos. Mas isso já não importava. 

    “Então, você só precisa se aliar a Black Room se quiser apoio na sua busca pelas crianças. Ou você pode simplesmente fazer por conta própria. Não é como se você não pudesse ter sua liberdade.”

    “É… existem esses caminhos. Mas, ainda assim, eu acho que não tenho o suficiente para salvar as crianças.” 

    Ela acreditava que, com sua força, não podia fazer muita coisa. 

    “Eu preciso ficar mais forte”, ela sussurrou. 

    De certa forma, ela pensava do mesmo jeito que Mayck. 

    É assim mesmo. Quanto mais nós vivemos, percebemos que não temos o necessário para salvar alguma coisa e atitudes impulsivas só tendem a nos levar para o buraco. 

    “Já que é assim, eu escolho te apoiar nisso.”

    “Hã?”

    “Isso aí. Eu entendo como você se sente. Eu também não gosto da ideia de deixar a próxima geração afundar, então vou te apoiar em qualquer decisão que você tome.”

    Os olhos azuis de Kasumi brilharam. Ela tinha ficado genuinamente feliz, porém..

    “Mas você nem me conhece direito. Não sabe das minhas origens e nem o que eu sou de verdade… E ainda assim diz que vai me apoiar?”

    “E qual o problema? Não temos tempo para avaliar todas as pessoas que têm boas intenções na superfície. Nesse mundo maluco que nós vivemos, é fácil diferenciar os falsos dos verdadeiros.”

    Kasumi parou no corredor e Mayck parou mais adiante. Ele olhou em seus olhos, que estavam encharcados. Ela levou a mão à boca e deixou as lágrimas rolarem. 

    Era a primeira vez que alguém apoiava seus objetivos de forma tão sincera. Depois de tantos anos sofrendo sozinha, carregando um fardo enorme em seus ombros, Kasumi encontrou alguém que lhe ajudaria em sua jornada. 

    Se isso não fosse motivo para felicidade, o que seria?

    Por muito tempo, ela esperou alguém que pudesse lhe ajudar. Parecia que suas lágrimas não foram pra nada, afinal.

    “Obrigada… de verdade.”

    Sua dor estava sendo empurrada para fora junto às lágrimas. Sua consciência se tornou mais leve. Kasumi estava pronta para tomar sua decisão. 

    ****

    “Então esse é o seu plano?”

    “Sim. Eu tenho que fazer o quanto antes. Não temos tempo para ficar parados, né? Vou encontrar meu professor e continuar treinando.” 

    “Você fica falando desse professor, mas quem é ele?”

    Os dois estavam andando apressadamente pelos corredores vazios. O destino era a sala de Zero. 

    “Ele é a pessoa que me salvou e me ensinou tudo o que eu sei hoje. Nós fomos separados no dia em que os homens do instituto vieram atrás de mim.”

    “Ah entendi… Ele é tão forte assim?”

    “Hehe. Surpreenda-se. Ele é um dos poucos no mundo a atingir o Controle Perfeito.” Ela sorriu triunfante, se gabando de seu professor. 

    “‘Controle Perfeito’?”

    “Exato. O auge de todo o portador, que só é alcançado após muito esforço. Se eu conseguir alcançá-lo algum dia, não vai ter ninguém que vai bater de frente comigo. Só aí eu vou poder salvar todo mundo.”

    O Controle Perfeito. Mayck ouviu essa palavra antes da boca de Kasumi, mas nunca buscou uma explicação de verdade. Assim como a garota disse com tanto vigor, o Controle Perfeito era o estado de concentração, poder e sabedoria que um portador podia alcançar. Era a borda do limite de seu poder. O seu poder absoluto. 

    “Onde fica a sala dele? Hein?” Ela estava ansiosa para ter uma resposta plausível para sua decisão. 

    “Se acalma. Nós já estamos aqui.” Mayck apontou para uma sala no final daquele corredor.

    Antes que ele percebesse, Kasumi disparou para a direção indicada, e sem hesitar chamou por Zero.  

    “Zero-san, pode me ouvir? Tenho algo a discutir com você.”

    “Garota sem noção…” 

    Ela falava de um jeito muito informal com o líder da organização que poderia decidir seu destino. Ele já não sabia dizer se aquilo era pura empolgação ou ela só era meio desligada. 

    Fosse o que fosse, ele se aproximou dela e a fez se afastar. Em seguida, tocou no leitor biométrico e olhou pelo scanner de íris. Ao adquirir permissão para entrar, a porta se abriu. 

    Kasumi arregalou os olhos, impressionada com a tecnologia daquele lugar, mesmo que nos institutos houvessem coisas parecidas. 

    Eles entraram e se depararam com Zero sentado à  mesa tirando um cochilo. Ele estava reclinado em sua cadeira tão confortavelmente que parecia uma pena acordá-lo. 

    Kasumi deu um pé para trás, Mayck já não se importou. 

    “Pensei que, como líder, você deveria ficar ativo mais vezes.”

    “Ei, ei… não sobrecarregue seu líder. Se ele errar, todo mundo morre.” Ele lentamente se ajustou em sua cadeira e alongou os braços. 

    Até que seu sono não era tão pesado assim. 

    “Então… parece que sua punição acabou.”

    “Foram cinco horas sem parar. Você não acha que é um tratamento desumano?”

    “Para ela, com certeza não”, Zero respondeu. “Você tem uma companhia bem interessante hoje. Do que precisam?”

    Zero notou a presença de Kasumi e já assumiu que eles estavam indo atrás de alguma coisa. 

    Uma intuição afiada como sempre. 

    “É algo assim. Kasumi queria falar com você, então eu a trouxe aqui”, dizendo isso, Mayck deu espaço para a garota, que, visivelmente nervosa, deu um passo à frente. 

    “O-obigada por me deixar ficar aqui até agora!”

    Ela se curvou de forma violenta…

    Ela errou a palavra. Mayck notou a falha da garota.

    Ela errou, Zero também notou.

    “Eu agradeço muito, mas eu tenho algo que preciso fazer, então quero que me deixe ir embora, por favor”, ela declarou. Suas palavras soaram firmes e pegaram Zero de surpresa. Ela parecia decidida em seu olhar. 

    Porém, apesar disso, não seria tão simples. 

    “Negado. Podem sair.” Zero foi ainda mais firme em sua resposta, deixando Kasumi atônita. 

    Ela olhou para Mayck com uma expressão duvidosa. O garoto levantou os braços, como quem dizia “nunca disse que seria fácil.”

    “Ma-mas…”

    “Não quero ouvir os poréns. Você me pediu algo e eu rejeitei. Não tem mais o que conversar. Você é uma prisioneira, não tem direito de fazer pedidos. Não se esqueça que você fez parte de um experimento que tirou a vida de centenas de crianças.”

    As palavras de Kasumi ficaram presas em sua garganta. Zero acabara de soltar uma bomba pra ela, da qual não poderia se esquivar ou se defender. A esperança que ela tinha criado minutos atrás foi despedaçada tão facilmente quanto um jarro de vidro. 

    Seus olhos tremeram e seu coração se abalou. Zero era uma pessoa tão assustadora assim? Ela pensou. Mas, mais importante, ele não a deixaria seguir seu sonho?

    Isso… não pode ser… é assim que acaba? Ele não vai me dar nem uma chance de falar?

    “Po-por favor… me-me escute…”

    “Está encerrado.”

    Ela deu um passo para trás. Realmente não havia portas para negociar?

    “Vamos, vamos. Ao menos escute seus motivos, né, Zero?”

    Mayck abriu a boca, tentando criar uma oportunidade para a garota abalada dizer seus motivos e tentar convencer Zero a deixá-la partir. 

    “E porquê?” Zero manteve sua atitude séria e fria. 

    “Veja bem, ela não teve uma participação direta nos experimentos. Ela é uma portadora, se quisesse poderia usar suas habilidades para tentar escapar, mas não foi o que ela fez. Isso não prova que ela não está do lado dos vilões?” Ele gesticulou. 

    Zero olhou para Kasumi e a analisou friamente. Os punhos cerrados estavam trêmulos e ela mordia seu lábio inferior com força. 

    Zero, então, suspirou pesadamente. 

    “Está bem. Diga seus motivos. Você não tem muito tempo.”

    “Si-sim! Eu cresci nos institutos como cobaia, sei como é ser usada em experimentos desumanos e doentios. Eu nunca quis isso pra mim e nem pra ninguém. Eu sacrifiquei a liberdade que havia ganhado para proteger as crianças que estavam na mesma instalação, mas tive que pagar um preço terrível… no fim… eu falhei e várias vidas foram perdidas. Tudo o que eu quero é uma chance de redenção—”

    “Okay, okay. Isso é comovente. Mas como eu vou saber que isso não é só uma desculpa para você fugir e se juntar a eles novamente?”

    “Eu jamais faria isso! Eu quero resgatá-las… Quero tirar as crianças do mundo inteiro desse pesadelo.”

    Sob o olhar severo do líder da Black Room, Kasumi se sentia tão pequena quanto um inseto, mas ela precisava ser forte se quisesse ter seus pedidos atendidos. 

    Só palavras não bastam… Eu tenho que mostrar a ele que eu posso. 

    “Ainda assim. Você está declarando que vai lutar contra grupos poderosos e contra o submundo. Está tentando se matar por acaso? Você tem o que é preciso para isso?”

    “… Não… eu não tenho…”

    “Então está decidido. Você não pode fazer o que quer—”

    “Eu tenho 15 anos… ainda tenho muito a evoluir e tenho alguém que pode me ajudar com isso. Eu também sou uma portadora e tenho meus desejos. Não vou parar apenas porque me dizem que lá fora é assustador. Eu já passei muito tempo sentada e chorando. Já passou da hora de me levantar e seguir em frente.”

    “Huum…”

    A expressão no rosto de Kasumi estava melhor que a de segundo atrás. Ela estava falando firmemente com o líder da Black Room, que tinha poder para decidir o futuro dela ali mesmo. 

    Independente disso, ela não iria desistir. Se desistisse naquele momento, ela nunca mais teria outra chance e todas as suas ambições seriam jogadas no lixo. 

    Pior ainda, Zero confirmaria que ela não passava de uma idealista que só sabia falar e cedia na primeira adversidade. 

    “… Mesmo que… eu tenha que fugir a força… não vou desistir das crianças que ainda estão sofrendo lá fora. Eu vou dedicar a minha vida para criar um mundo em que elas possam viver em segurança, sem medo de serem arrancadas de suas famílias”, declarou. Sua determinação era visível. 

    Depois que ela terminou de falar, encarou Zero nos olhos e ele fez o mesmo. 

    “É assim mesmo? Você abandona tudo o que tem para sofrer pelos outros?”

    “Sim.”

    “Está me dizendo que possui o potencial de mudar o mundo em prol da felicidade de crianças portadoras?”

    “Não só delas, mas também de crianças comuns, jovens e velhos. Eu vou garantir que tenhamos um mundo de paz.”

    “Okay.” A expressão de Zero suavizou de repente, assim como seu tom de voz. “Você está livre para ir onde quiser.”

    “H-huh…? Perdão…?”

    “Hum? Não era o que você queria? Você está liberada. Porém, tem algumas coisas que nós precisamos conversar antes.”

    Kasumi ficou confusa com a mudança súbita. Seus olhos duvidosos encontraram Mayck, que movimentou os ombros. 

    “… Isso foi tudo?”

    “Não está satisfeita? Talvez eu deva reconsiderar…”

    “Não, não! … Eu estou bem. É só que… pensei que seria algo diferente… como posso dizer…” Kasumi brincou com seus dedos, olhando de um lado para o outro. 

    Ela não conseguia dizer que foi relativamente mais fácil do que ela imaginava. 

    “Quanto mais fácil melhor, não?” Mayck tocou o ombro dela levemente. “Você tem permissão para deixar este lugar, agora só depende do que você quer fazer.”

    “Estou livre…?” A ideia parecia diferente. Ela não se sentia feliz em pensar nisso realmente. Na realidade, ela não sentia que estava presa desde o início. O que a deixou feliz foi saber que havia quem a apoiasse em sua decisão. Ela não estava errada no fim das contas. 

    Kasumi suspirou, um sorriso radiante em seu rosto. 

    “Certo. Muito obrigada, Zero-san, M-kun.”

    ****

    Depois que Kasumi se foi, Mayck e Zero ficaram a sós na sala — a pedido do próprio Zero. 

    “Acredito que Nikkie já tenha comentado, mas vou falar de novo”, disse ele, apoiando-se na mesa, ao lado do monitor. “Em breve, nós iniciaremos as últimas buscas pelas duas fitas que restam e que vão solucionar parte do nosso mistério.”

    Mayck assentiu, afirmando que já sabia sobre isso. 

    “Como você já sabe, a equipe Delta está incapacitada de partir em missão no momento, então ela está fora dessa vez. Então, como forma de redenção, conto com você para participar por eles e auxiliar os outros times.”

    “Redenção… Eu já planejava participar mesmo, então não temos problemas com isso.”

    “Isso é ótimo. Não precisa se preocupar muito. Eu quero que você vá com a equipe Alfa, juntamente às equipes Beta e Gamma. Nós temos mais aliados dessa vez, então eu vou despachar alguns membros da Strike Down também. Outras equipes, como Epsilon e Zeta, irão para outras áreas.”

    “Entendi. Você já tem uma formação para isso? E quando começa?”

    “Eu e Nikkie, assim como as próprias equipes, estamos trabalhando nisso. Não precisa se preocupar com quando começa. Eu vou te notificar com uma semana de antecedência. Então esteja preparado”, Zero falou, como se não tivesse nada a ver com ele. 

    “Certo… mas eu espero que você tenha um plano para me afastar daqui por não sei quanto tempo. Isso vai bagunçar demais a minha vida privada.”

    Mayck sabia o quanto essa missão iria afetar sua vida, sabendo que ele teria que ficar vários dias seguidos longe de sua casa, o que, definitivamente, não era algo normal. Não tinha como ele dizer “eu estou indo ficar fora de casa por tempo indeterminado” e Takashi aceitar calado. 

    No mínimo, ele diria um não bem autoritário. 

    Porém, apesar de também imaginar tais consequências, Zero riu triunfante. 

    “Não se preocupe. Eu também estarei pensando a respeito disso.”

    Um arrepio percorreu o corpo do garoto. 

    Eu sinto um mal pressentimento… espero que seja apenas impressão. 

    ****

    Depois de tudo, Mayck voltou para casa. Já era tarde da noite então ele entrou com cuidado. 

    Não havia ninguém para recebê-lo. Takashi no trabalho, Suzune e Haruna dormindo, mas não era como se ele se importasse com isso realmente. 

    O que o incomodava de verdade, era tê-los por perto e não ocorrer nenhuma interação como antes. 

    O garoto esperava consertar isso antes de ter que participar da nova operação. 

    Ele decidiu confrontar Haruna, mesmo que ela viesse a surtar por ele estar perto. Já era hora de pôr as cartas na mesa. Além disso, aquela pessoa que o perseguia há alguns dias também estava começando a incomodar muito. 

    Mayck pensou que, talvez, ser pacífico demais não ajudaria a resolver sua situação, então estava na hora de ser um pouquinho mais direto. 

    Até o fim daquele ano, ele esperava ter tudo em ordem, para que pudesse pôr seu plano em um estado concreto de efetividade. 

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