Índice de Capítulo

    — Onde caralhos aquele gordo filho da puta foi? — Tyler gritou, sua voz atravessava o acampamento, atraindo atenção. Ele coçava o cabelo, e chutava pedras a cada passo. — Sabia que alguma merda ia acontecer — concluiu.

    Pamela estava calada, olhando para o espaço vazio, onde o homem gordo havia sido deixado na noite anterior.

    — Ele levou a Daisy — disse ela, com um misto de desespero e confusão em seu rosto.

    Marcelo grunhiu e cuspiu no chão.

    — Eu disse pra deixarmos aquele gordo desgraçado para trás. Parece até que esqueceram o que ele fez comigo — falou, levantando o braço aparentemente curado.

    Estranhamente, ele parecia o mais lúcido dos três naquele momento. Ambos, Tyler e Pamela, tinham sinais de ressaca, tanto em seus rostos, quanto em seu caminhar. O próprio Ítalo sentia uma fina dor de cabeça e um pouco de enjoo, mesmo tendo bebido poucos goles. Marcelo, no entanto, parecia tão disposto como nos outros dias, mesmo sendo aquele que mais bebera na noite anterior.

    Ítalo tentava digerir a situação. Ele fora dormir desejando que Daisy sumisse, e agora, não acreditava que isso realmente havia acontecido. Olhou para o horizonte desértico, se perguntando onde eles poderiam estar. Algumas estrelas ainda brilhavam oscilantes na borda do mundo, desaparecendo enquanto o sol se erguia.

    — Não podem ter ido longe — disse. — Alguém deve ter visto. Um dos guardas ou talvez os viajantes.

    Ele cuspia a areia trazida pelo vento, que batia contra seu rosto. Parecia bem mais forte que o normal naquele dia.

    — Sim, esses caras não deixam passar nada — Tyler respondeu, concordando. — Vejam o que descobrem por aí. Vou até a tenda do comandante.

    — Vou com você — disse Pamela.

    — Faça o que mandei — Tyler resmungou, se afastando.

    Pamela o seguiu mesmo assim.

    Ítalo e Marcelo, então, se separaram e começaram a busca atravessando o acampamento.

    Todos pareciam preocupados com a garota inocente que pensavam que Daisy era. Mas Ítalo se perguntava o quão verdadeiro isso era de fato. Aquele lado que ela havia lhe mostrado na escuridão da noite, com apenas as estrelas como testemunhas, dava-lhe motivos para desconfiar. No entanto, ele ainda procurava com todo o seu empenho. Afinal, mesmo com o que a garota havia lhe dito, ele não desejava que o homem fizesse a ela o que quase fez a ele. O vento vindo do deserto soprava contra o seu rosto.

    Logo Ítalo percebeu que o acampamento estava tumultuado. Mulheres conversavam, preocupadas, umas com as outras, velhos o olhavam com resignação, enquanto murmuravam entre si.

    Ele perguntou aos mercadores e guardas o que estava ocorrendo, ao mesmo tempo em que buscava informações sobre o homem gordo e Daisy. Ele escutara nada sobre um homem grande com uma garota, mas ouviu de alguns mercadores algo sobre três guardas terem sido atacados na noite anterior, logo após a troca de turno. Todos os três foram encontrados inconscientes, com as armas roubadas. Os guardas que se apresentaram para tomar seus postos, começaram uma busca ao encontrarem seus corpos, mas não encontraram nada.

    Após três histórias sobre o ocorrido, Ítalo observou os fatos e conjecturou sua suposição, voltando para o lugar onde a tenda, ainda armada, sacudia com o vento do deserto. Se não estivesse fincada com estacas, provavelmente já teria voado.

    Lá, encontrou-se com Marcelo. Tyler e Pamela não haviam retornado ainda.

    — E então, descobriu algo? — perguntou Marcelo.

    Ítalo negou com a cabeça, esfregando os olhos, devido a areia que entrara neles. Sua cabeça doía devido ao sol e ao esforço mental. Pensar no meio de um acampamento em desordem era surpreendentemente difícil.

    E, ainda por cima, as palavras continuavam pulsando em sua mente.

    — Que belo jeito de começar esse dia de merda — reclamou Marcelo mais uma vez. — Devíamos ter deixado aquele gordo filho da puta pra trás — Ele passava a mão sobre o braço que fora machucado.

    Ítalo observou o gesto, lembrando-se da cena, e uma curiosidade surgiu em sua cabeça.

    — Marcelo, eu nunca perguntei, mas, por que foi que ele te atacou daquela vez?

    O homem olhou para ele. A raiva levemente abrandada pela confusão da pergunta repentina. Ele alisou o braço antes de responder:

    — Eu sei lá. Ele só endoidou e me atacou.

    Ítalo levantou uma sobrancelha. Podia-se esperar um surto de raiva repentino de um louco. Mesmo assim, era algo pouco provável. E conhecendo Marcelo pela forma como ele havia agido nas semanas que permaneceram juntos, Ítalo não podia concluir que não fora apenas isso.

    — Você não disse nada a ele antes disso? — perguntou, lembrando-se do quão irritado o homem calvo tinha subido aquele aclive.

    — E daí se eu disse ou não, que diferença faz? — bradou ele. A raiva voltando a assumir o controle de suas emoções. — Vai me culpar pelo retardado ter quebrado o meu braço agora?

    — Não, não é isso, foi mal — falou Ítalo, recuando sobre o assunto.

    Ele já tinha feito sua suposição, mas não era algo para se falar naquele momento. Em nada ajudaria a achar Daisy ou o homem gordo.

    “Homem gordo”.

    Agora que ele pensava nisso, Ítalo se dera conta de que sequer sabia seu nome. Tudo o que sabia sobre ele se resumia ao seu estranho surto violento no primeiro dia, o qual ainda imaginava o motivo.

    Ele olhou para o horizonte, não conseguindo mais ver as estrelas.

    Pouco tempo depois, Tyler apareceu, junto a Pamela e uma dúzia de guardas. Sarosh entre eles. Não pareciam muito amistosos, o que tornava a hipótese  imaginada por Ítalo mais provável.

    — O que houve, acharam eles? — Marcelo perguntou.

    Tyler negou com a cabeça. Uma expressão tensa marcava seu rosto. O que também deixou Ítalo tenso.

    — Faltam dois. Onde eles estão? — Sarosh perguntou em seu tom monótono.

    — Ah… também não sabemos — Ítalo disse, engasgando, sentindo-se mais nervoso do que momentos antes. Algo nos olhos dos soldados o fez assimilar o por que eles estavam ali.

    — Que bom que trouxeram tanta gente. Assim vai ser mais fácil achá… — Marcelo foi interrompido por um golpe com o cabo da lança em seu estômago, dado pelo soldado mais próximo.

    Os outros guardas cercaram e renderam a todos, Pamela, Ítalo, Marcelo e até Tyler, que tentou se debater, mas não conseguiu reagir a tempo. Seus movimentos pareciam lentos, talvez por conta da ressaca.

    — Porra! O que foi isso? — disse, caindo de joelhos, ao mesmo tempo em que uma cortina de poeira causada pelo vento subia.

    Sarosh continuou falando, elevando sua voz para se sobressair ao uivo cortante do vento.

    — Por que estão aqui? Vieram nos espionar para a sua aldeia? Se sim, porque não foram embora com os outros? Quantos virão?

    — Não somos de aldeia nenhuma, só queremos chegar em uma cidade. Queremos achar a Daisy — Pamela gritou, desesperada.

    Ítalo sentiu seu peito de torcer ao ouvir o clamor desesperado de Pamela, como se a voz da mulher tocasse o canto mais íntimo de seu ser. Viu-se de repente com profunda pena dela.

    Sarosh olhou para Pamela, mantendo seu rosto apático de sempre.

    — Seu “encanto” não funcionará comigo, abençoada — disse ele, com uma voz desinteressada.

    Pamela fez uma expressão perplexa, e então, a sensação de pena que Ítalo sentia, desapareceu.

    “O que foi isso?”.

     — Vós tendes a proteção do Eleito. Por isso não morrerão. Não enquanto não chegarmos em Narkul, onde nosso contrato se encerra. Até lá, ficarão presos e sob vigilância, ratos das cavernas.

    Sobre os protestos de Marcelo, Pamela e Ítalo, que foram respondidos novamente com os cabos das lanças, os guardas amarraram seus punhos e pés com cordas, as quais estavam presas umas às outras, para mantê-los juntos quando caminhassem.

    A tenda que haviam comprado, suas trouxas, e o que conseguiram nos túmulos, tudo fora confiscado.

    Ítalo viu Sarosh tomar para si a adaga branca que pegara no túmulo.

    — Prendam-nos perto da tenda  e mantenham-nos sob vigilância constante — ordenou ele.

    — Pelo amor de Deus, tem de acreditar em nós, não somos de nenhuma aldeia. Só queremos saber onde Daisy… — Pamela foi interrompida por um tapa com as costas da mão de um dos guardas.

    Ela começou a chorar. Ítalo e Marcelo continuaram a tentar dar explicações. O que acabou por ser um esforço inútil, que apenas lhes rendeu chutes, socos, e cabos de lança.

    Eles foram arrastados, atravessando um acampamento confuso e curioso, que os olhavam de forma suspeita, como na primeira noite. 

    Quando finalmente chegaram até a tenda dos guardas, onde ficariam presos até segunda ordem, Ítalo já havia perdido as contas de quantas pancadas tinha recebido. Foram menos do que Marcelo tinha tomado, ao menos. O homem calvo sangrava pelo nariz, e tinha um lado do rosto arroxeado.

    O vento continuava soprando, cada vez mais forte e alto.

    Eles foram colocados sentados em círculo. Três guardas os vigiavam, Ítalo se lembrava de ter visto ao menos dois deles na noite em que chegaram ao acampamento. Um era robusto, e coberto de pelos, o outro tinha uma grande cicatriz em seu rosto, a qual Ítalo não conseguia deixar de encarar, e mancava, marcando o passo da caminhada, enquanto puxava a corda que os mantinha juntos.

    Eles não falavam, e não permitiam que Ítalo e os outros falassem.

    O sol começou a esquentar, a ponto de ondas de calor se erguerem do solo. Mesmo o vento trazia areia, mais do que esfriava-lhes os sentidos.

    Ítalo não conseguia deixar de pensar no motivo de isso acontecer.

    O homem gordo libertou-se, raptou Daisy, e fugiu do acampamento, nocauteando três guardas, sem ninguém perceber. Como fora possível? Ele nem parecia em si antes, como fizera tais coisas com tamanha descrição. Como conseguira não ser notado pelas sentinelas e ter se escondido na escuridão, ainda por cima levando alguém consigo?

    Ítalo não conseguia entender isso, mas também havia uma coisa que não entendia. Por que Tyler estava tão quieto?

    Desde que foram presos e amarrados, ele não resistiu nenhuma vez sequer. Apenas aceitou passivamente a situação.

    Ítalo queria lhe perguntar o que fazer, mas os guardas iriam nele novamente. A ideia de permanecer assim até chegarem à cidade, apenas para serem mortos o assombrava.

    De repente, ele reparou na bagunça de vozes incompreensíveis ao seu redor. Olhou em volta, pensando que se tratava da confusão rotineira que ocorria quando o acampamento estava sendo desmontado, mas notou o pânico dos que estavam próximos. Homens, que haviam começado o processo de desarmar suas tendas agora voltavam a martelar as estacas. Outros levavam alguns animais para dentro, soltando os que não cabiam, os quais corriam para longe.

    Mulheres que haviam saído para pegar água corriam, com seus baldes derramando o conteúdo.

    Ítalo olhou de um lado a outro em volta, e percebeu o por que do alarde. Uma cortina de areia vinha por entre as rochas, engolindo a passagem de pedra.

    “Uma tempestade”, percebeu, estranhando o fato de ela não vir do deserto, como já havia ouvido antes.

    Os guardas que os vigiavam arregalaram seus olhos, atônitos.

    — O que, por Huashika, é aquilo? Ainda não estamos nessa época, e o horizonte estava limpo por ecnas, segundo os batedores — O guarda robusto falou.

    — Não admira que ainda não tenham encontrado o rato, os batedores estão ficando cegos e surdos, como os inúteis nas margens do Akshvar — resmungou o guarda com a cicatriz, caminhando apressadamente até a tenda.

    — O que faremos com os prisioneiros? — Outro guarda perguntou.

    — Deixe-os aí.

    Ao ouvirem isso, Pamela, Marcelo e Ítalo suplicaram por suas vidas. Os movimentos fizeram a corda apertar ainda mais as mãos de Ítalo, e dos outros também, obviamente. Ele pode ouvir Tyler soltar um pequeno gemido e dor em certo momento. O guarda da cicatriz não pareceu comovido.

    — Mas eles têm a proteção do Eleito, não podemos matá-los — retrucou o guarda robusto.

    — E não iremos, a tempestade irá — respondeu o da cicatriz.

    O guarda robusto estalou a língua e caminhou até a tenda. Outro guarda o seguiu, deixando apenas um, que parecia indeciso, para trás.

    Quando ele fez menção de se virar, uma voz se ergueu em meio ao vento uivante.

    — Se vai nos deixar morrer, dê-nos pelo menos água antes.

    Era Tyler, que havia ficado calado o tempo inteiro.

    O guarda olhou para eles, tirou algo de sua capa. Era um odre. Ele se aproximou e começou a despejar o líquido na boca de todos. Ítalo tomou a contra gosto, engolindo ateia junto. Sentia lágrimas fluírem em seus olhos. O que aquilo deveria ser? Misericórdia, pena? Tyler havia desistido de vez?

    Quando o guarda se aproximou de Tyler e despejou a água em sua boca, o jovem que não era nem cinco anos mais velho ergueu suas mão, se alguma forma livres no rosto do guarda, enfiando os dedos em seus olhos.

    O guarda caiu para trás, e Tyler saltou sobre ele. Ítalo engasgou ao ouvir o grito de agonia, enquanto as pernas e braços do homem se debatiam. Tyler grunhia, enquanto se forçava contra o homem, o enforcando.

    Ítalo podia ver o desespero do enquanto seu corpo se debatia.

    Após o que pareceu uma eternidade angustiante, seus braços e pernas se acalmaram, e Tyler se levantou, ofegante. Sangue pingava de suas mãos. Ele tomou algo do corpo do homem e se aproximou.

    — Você… ele… — Ítalo perguntou, assustado.

    Tyler não respondeu, apenas cortou as cordas que os prendiam.

    Pamela olhava, pasma, para o corpo no chão. Marcelo abriu sua boca, como se para falar algo, e então a fechou. Parecia consternado.

    — Temos que nos abrigar — Tyler disse, finalmente, olhando para a nuvem de areia que se aproximava.

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