Capítulo 84 — Juiz do Inferno (2)
— Nihaya! Leve isto para fora — ordenou Mithraya.
Antigo reino Lekuas, deserto de Ithak, atual Estado de Hardian. Mil e quinhentos anos atrás.
Mithraya era o rei de Lekuas, um homem soberbo e avarento. Não aceitava nada abaixo de ouro e diamante como presentes, e para quem o presenteava com coisas inferiores, tinha seus corações arrancados em frente ao trono real e entregue aos três cães do rei.
Nihaya era o filho mais novo, negado pelo rei. Embora não fosse um filho bastardo, tendo a própria rainha como sua mãe, Mithraya renegou seu filho caçula por um único motivo: ele tinha um problema de visão incurável, cujo nem os melhores óculos do mundo poderiam lhe ajudar.
Como sendo um mero miserável, Nihaya era obrigado por seu pai a levar os corpos dos “ingratos” escada a baixo. Muitas vezes, o pequeno infeliz tropeçava e caia degraus a baixo, servindo de puro entretenimento para o rei.
Naquele dia, um comerciante trouxe uma tigela de jóias, com os rubis mais brilhantes. No entanto, o que tornou o rei furioso foi o fato da tigela ser de barro e algumas pulseiras de ouro serem falsas. Mithraya era temperamental quanto ao grau de inferioridade.
Ao ver aquilo, Mithraya ordenou que decapitassem o comerciante. O sangue caiu pelo pano vermelho que se estendia até o trono real.
— Vamos, moleque! Obedeça ao pai! — ordenou o filho mais velho do rei, empurrando Nihaya para o chão e chicoteando suas costas em seguida.
A rainha aguentou calada.
Nihaya se movimentou falsamente, se assegurando que estava seguro a cada passo.
A sala do rei estava repleta de pessoas naquele dia, os maiores nobres de todo o deserto estavam presentes no festival. Alguns temeram a ação de Mithraya, outras zombaram do comerciante junto ao rei.
Em determinado instante, o príncipe renegado tropeçou na cabeça decapitada do comerciante. Nihaya engoliu em seco, não tentando imaginar a cena. Pondo a mão no rosto gelado, encostando no ponto decapitado e sujando suas pequenas mãos de sangue, Nihaya andou pelo caminho decorado até a escada. Ele soltou o crânio escada abaixo, lamentando pelo comerciante.
Os ouvidos do pequeno Nihaya foram tomados pelas músicas de um festival.
As mulheres seminuas dançando, se exibindo aos nobres e a Mithraya não eram sequer sentidas por Nihaya. O jovem estava apenas sentado no canto do saguão, incomodado pela quantidade de barulho agoniante.
— Filho, venha — chamou a rainha. — Temos que receber os nobres.
— Haverá mortes?… — perguntou cabisbaixo.
— Não — afirmou com certeza.
Nihaya foi convencido, afinal, sua mãe não mentia para ele.
A rainha levou seu filho até uma enorme almofada amarela, onde os nobres se apresentavam para Mithraya formalmente. Assim que Nihaya foi deixado por sua mãe abaixo do assento real, um de seus irmãos o empurrou e riu.
— Deixe-o! — reprimiu a rainha, irritada. — Mais uma vez e tirarei seu colar!
O colar de ouro e diamante vermelho era o maior símbolo de status social naquele reino.1
O garoto se comportou após a ameaça de sua mãe, recuando até os olhares.
Um homem de cabelos longos e pretos, acompanhado por outras cinco pessoas, levou o braço ao peito e curvou as costas levemente. O homem principal em questão, tinha seus olhos cobertos por uma venda preta com emblemas dourados, as pontas da venda se sobrepunham. No canto superior esquerdo da venda estava escrito algo incomum para aquela época, algo ainda desconhecido: Baal.
— Saudações, grande rei de Lekuas. Me chamo Nalleth Zala, sou o rei de todo o continente Esprit Zai — apresentou-se.
— Saudações, rei de Esprit Zai. Antes de tudo… — indagou Mithraya.
— Claro. Tenho um grandioso presente para ti. — Um sorriso suspeito bordou seu rosto largo e fino. — Temos um lugar reservado?
Mithraya assentiu que sim. O rei e toda sua família se levantou, por exceção de Nihaya que se manteve distante.
— Ah, não — disse uma das pessoas com Nalleth. — Somente o rei e a rainha.
— E a criança que não enxerga — ordenou Nalleth.
Seus irmãos o invejaram estalando a língua e o amaldiçoando. Reuniões isoladas eram um sonho para os príncipes e princesas.
Já estavam longe o suficiente para transformar o barulho da festa em algo distante, as músicas e conversas altas quase não encontravam seus ouvidos. Mithraya, ao lado de sua esposa e Nihaya, guiaram Nalleth e seus acompanhantes até uma torre no alto de seu pequeno castelo.
É claro, embora Lekuas fosse um reino importante para a época, continuava sendo no deserto de Ithak. A pobreza era grande, porém, a riqueza dos reis eram enormes. O castelo de Mithraya não era nada tão enorme quanto o castelo Windsor, pois este era equivalente a toda a capital de Lekuas, no entanto, dava pro gasto. Era uma boa visão, embora podre.
As casas próximas ao castelo estavam iluminadas, enquanto ao longe era difícil ver uma única tocha.
A noite no deserto era congelante, ao contrário do dia. E, diferente de seu pai e mãe, Nihaya estava com pouca roupa. Trapos velhos com somente algumas pulseiras em seus braços, o que ainda indicava seu cargo social. A criança morria de frio.
De repente, um manto negro caiu em seus ombros. Naquela altura do campeonato, Nihaya já tinha se acostumado a nunca olhar para quem o tocava, afinal, o que iria mudar? Ele não enxergava.
Entretanto, quem jogou o manto para cobrir o frio de Nihaya foi uma jovem; era muito magra, o que a tornava pequena mesmo tendo mais de vinte anos. Um chapéu pontiagudo preto escondia uma venda quase igual a de Nalleth, porém, com um preto esverdeado. Seus cabelos verdes e curtos cobriam uma parcela da venda.
Aquela era Alyla, uma das irmãs de Nalleth, a segunda mais velha entre as três mulheres. Vestia um vestido preto colado ao corpo, ressaltando ainda mais seu corpo magro e delicado.
Alyla fez um breve cafuné em Nihaya, com um sorriso simpático em seu rosto. Infelizmente o jovem não pôde presenciar.
Nalleth e Mithraya se distanciaram de todos, indo para o extremo de uma varanda.
— Por que usa esta venda? — Mithraya fez uma observação melhor, olhando para todos os irmãos de Nalleth, tais que usavam vendas similares. — Melhor: por que todos vocês usam essas vendas?
— Enxergamos melhor assim — retrucou Nalleth. Posteriormente, retirou um pequeno grimório de seu manto e o ofereceu à Mithraya. — Este é o meu presente.
— Um livro? Detesto leitura…
— É um grimório. Há rituais de invocação neles, desde espíritos a deuses e demônios.
O rei suou frio. Demônios não eram tão temidos naquela época devido as suas existências ainda serem contestadas. No entanto, deuses… Eram temidos e não adorados graças à opressão divina que os humanos encararam.
Há sete mil anos, os deuses escravizaram os humanos e qualquer raça inteligente. Foram todos oprimidos pelos deuses. Então, os deuses passaram de adorados para temidos e odiados. Ritualizar para entrar em contato com um deus era um crime grave, pois não era do entendimento humano suas intenções.
— O que eu ia querer com deuses ou… — Mithraya fez uma expressão risonha, descrente quanto aos outros seres. — Demônios? Pfft. Que piada, rei de outro mundo.
Outros continentes são chamados de outros mundos.
— Demônios trazem riqueza, poder, cura… — argumentou Nalleth. — Conhecimento.
— Cura? Do que isso me interessa?!
Nalleth recuou seu corpo levemente para a esquerda, apontando para Nihaya em seguida.
— O garoto é igual a mim e meus irmãos, além de ser igual a outros que chamamos de “Desviantes”.
— Não fale besteiras! Ele é um inútil imprestável!
Os xingamentos chegaram aos ouvidos de todos, inclusive de Nihaya. A criança segurou o choro e recuou.
Uma expressão de desprezo fora esboçada no rosto de todos os irmãos de Nalleth.
— Criança — chamou Nalleth.
— Nihaya — respondeu a rainha.
— Nihaya? Este é seu nome?
Assentiu que sim.
— Certo, Nihaya. O que você sente abaixo do coração?
Mithraya se calou e apenas observou.
— Algo mexendo. Um calor confortável…
— Sente isso em outro lugar?
— Quando estou sentado… Em… Sete lugares ao mesmo tempo.
— Ele tem os sete discos… — murmurou Zale, o segundo irmão de Nalleth.
— O que isso significa? — perguntou a rainha, preocupada com seu filho.
— Que ele é um monstro, não daqueles horrorosos, mas daqueles extremamente poderosos.
— Seja claro — ordenou Mithraya.
Alyla cerrou o punho, era um insulto do tamanho do mundo. Nalleth não era conhecido, porém, seu cargo social igualava-se ao do imperador de Romerian. Ainda assim, um rei tão inferior, comparado a um mero prefeito, ousava encarar seu irmão mais velho daquela forma. Sua única vontade era esmagar o crânio daquele rei estúpido ali, no entanto, ela simpatizou com o jovem Nihaya. Embora sentisse que seria uma salvação, deixou seu desejo impulsivo de canto.
Após vinte minutos, Nalleth conseguiu convencer ao rei. Mithraya aceitou invocar um dos demônios, buscando além do que já tinha; mais riquezas e poder. Porém… O preço para o pacto foi além do esperado.
O ritual foi feito ainda naquela noite, depois que a rainha decidiu dormir com os outros filhos, apenas Nihaya ficou acordado. Nalleth e Mithraya foram para firmar o pacto, enquanto os irmãos de Nalleth vigiaram o jovem.
— Já é a terceira família real que o irmão Nalleth engana — sussurrou Zale, insatisfeito. Seus cabelos eram pretos em um tom de vermelho sangue, a venda que usava atendia por uma cor similar. Todos os cinco irmãos de Nalleth se vestiam com túnicas pretas e douradas.
— E o que essas famílias têm de valor? Esta tinha o garoto, mas não deram valor a ele — disse Shadra, a irmã mais velha.
— Vidas — retrucou Zale. — Elas têm vidas.
Nihaya derrubou uma taça no chão, feita de um material maciço. A água dentro escorreu pelo chão por entre seus pés. Em poucos segundos, todos os irmãos de Nalleth olharam para ele e viram a criança pálida, suando frio. Estava ofegante, com seu coração batendo tão rápido que dava a impressão de que sairia do corpo.
— Você está bem? — perguntou Zale.
A criança olhava para as próprias mãos, turvas e trêmulas. Seus olhos não acreditavam.
— Eu… Estou enxergando… — disse Nihaya, incrédulo.
Zale recuou o rosto assustado enquanto todos os outros sorriam. Nihaya agarrou o manto em seus ombros, averiguando sua cor preta.
— É realmente verdade? — Alyla se agachou na frente da criança, sua felicidade era genuína.
— Sim… Que cor é essa? — indagou tocando nos fios verdes de Alyla.
— Verde — respondeu. — Achou bonito?
Assentiu.
— Você sabe o que é bonito?
— Mamãe disse que é algo que agrade os olhos… — Nihaya se lembrou de algo. Seus ombros relaxaram e a cabeça se levantou. — Mamãe…
Cuidadosamente ele soltou os cabelos de Alyla e correu pelo corredor, quase saltando de felicidade.
— É. Digam adeus a ele — disse Zale.
— Por quê?
— A visão dele voltou. Isso significa que o irmão Nalleth concluiu o pacto. Porém…
Os passos desajeitados da criança ecoaram no corredor. Nihaya, mesmo com sua visão, ainda não tinha jeito para caminhar. Vez e outra ele bateu nas paredes, mas conseguiu chegar no quarto de seus pais.
— Assim que ele abrir aquela porta… — Lamentou com os olhos. — Vai ver o inferno dele.
— Mamãe… — Seu tom de voz diminuiu gradualmente conforme a porta se abriu.
A luz do quarto estava fraca, iluminando pouca parte do cômodo. Os lençóis da cama estavam totalmente bagunçados, sangue pingava no chão. Nihaya viu os corpos de seus irmãos sangrarem pelos olhos, mas não se importara. Afinal, fodam-se seus irmãos de merda.
No entanto, na cama, coberta por um lençol fino e manchado de sangue, Nihaya teve a visão do inferno. O tronco de sua mãe estava aberto, mostrando a carne e os ossos, com a ausência do coração. Tinha sido arrancado e usado por Mithraya como sacrifício ao demônio convocado.
Mamom, o pecado da ganância estava frente ao rei. As mãos de Mithraya estavam cobertas de sangue, seus olhos estavam vidrados no coração de sua esposa no altar.
‘É o suficiente.’ murmurou Mamom. Sua voz era tão grossa e alta que seus murmúrios pareciam gritos.
O quarto diante dos olhos de Nihaya entrou em chamas, cremando tudo em sua frente. Foi a primeira e última vez que a criança viu sua mãe e, também, a primeira vez que presenciou o fogo.
— Vamos embora — ordenou Zale, agarrando Nihaya pelo abdômen. O irmão de Nalleth havia retornado apenas para salvar o garoto, a mando do próprio.
Se movendo rapidamente, o futuro djinn pôde ver apenas seu castelo se distanciando num estalar de dedos. Os mantos negros de Nalleth e seus irmãos voaram, em contraste ao fogo que já consumia toda a capital.
Estavam num morro tão distante da capital, o suficiente para vê-la queimar.
— Outra família morta para nada, irmão? — indagou Zale.
— Não. Mithraya sacrificou seus bens valiosos para se tornar um duque infernal, mas o demônio que invocou achou uma ofensa. Mesmo assim, temos a segunda fenda. Em alguns anos, a passagem estará completa e teremos acesso ao Tártaro. Não foi em vão, irmão — retrucou Nalleth.
— O garoto… — disse Alyla, preocupada e inquieta. — Aonde ele foi?!
— Não consigo senti-lo — respondeu Shadra.
Os irmãos de Nalleth olharam para todas as direções, porém, o próprio se manteve encantando pela destruição da capital.
— Deixem-no. Permita que o destino trabalhe por hora.
Nihaya caminhou descalço na areia durante aquela noite fria do deserto, coberto apenas pelo manto que Alyla lhe deu.
‘Caminhei aquela noite desta forma. Aquela noite e mais mil. Me alimentando apenas com a energia em meu núcleo. Até que, um grande dia, a energia alterou meu cérebro. Meus olhos, meu corpo. Eu me tornei um com a energia e virei um djinn.’ contou Nihaya, em frente ao juiz Toiras.
— Como escapou de Nalleth Zala? Viveu mil anos, deve saber a importância dele. Mesmo que seja um djinn hoje, naquela época você não era.
‘Usei um pequeno truque…’
Nihaya surgiu subitamente atrás de Toiras, como num passe de mágica.
‘Este.’
O djinn ocultou sua presença rapidamente e se moveu em uma velocidade imensurável, trazendo uma leve brisa consigo.
Toiras invocou um espectro em resposta, mas Nihaya não permitiu a invocação por completo. A sombra do espectro foi desintegrada antes de sair.
‘Mithraya sacrificou a própria esposa, seus filhos e reino com a falsa ilusão de que seria um duque do inferno. Bom, ele findou virando apenas um juiz do Tártaro.’ Segurou a risada ao coçar a garganta. ‘Diga a ele que eu o alcançarei. E quando chegar nele… o Tártaro irá precisar de outro juiz.’
— Não faça ameaças vazias — disse Toiras.
— Não é uma ameaça vazia, Senhor.
Uma terceira voz surpreendeu Toiras e Mithraya, forçando os dois a entrarem em guarda. No topo de uma pedra, um brilho vermelho iluminou o ambiente.
— Bastien, o guardião das sombras… — resmungou Toiras, suor frio escorreu em seu rosto.
- Graças a isso, inclusive, que os tubarões mais poderosos de Nihaya eram aqueles com estrutura óssea de diamante vermelho[↩]
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