Capítulo 10 (Parte 1) - "Você veio"
A água caindo sob seus cabelos brancos e azuis era uma espécie de ironia crônica. Era uma água pesada, calcária, desconfortável. Inadmissível. Como pode a Water Inc. distribuir uma água como essa para Romaniva? Algo devia estar errado.
— Vou convocar uma reunião na empresa quando voltar a Orfenos — Atlantis disse a si com voz firme. Tirou o sabão do corpo o mais rápido possível e fechou o chuveiro. Saiu do box do banheiro e secou-se com uma toalha.
Escovou os dentes, aplicou sérum no rosto, colocou perfume sobre o corpo. Quando saiu do banheiro, foi direto a sua cama onde estava uma pilha de roupas que já tinha separado. Colocou uma regata, cueca de super-herói, calças de terno, meias brancas. Parou por um segundo, pensou um pouco.
— Esqueci algo… Ah, sim. — Foi até um armário ao canto da sala, e o abriu. Não havia roupas, e sim coletes balísticos. — Quase me esqueço, vamos ver… Senhor Lazlo me recomendou um leve, mas… — Pegou logo o mais pesado, um de dois quilos e meio. — Hm…? Esse é o mais pesado? Que estranho…
Decidiu não pensar muito nisso. Colocou o colete sobre sua regata e continuou arrumando-se. Camisa de botão, gravata, terno. Estava pronto. Saiu do seu quarto e foi até a sala de estar do seu andar, onde havia uma pequena multidão.
Diversos guardas e funcionários, sua guarda-costas Agni e o chefe de segurança: Lazlo. Era um homem alto, de cabelo longo e loiro, utilizava a farda da sua empresa de segurança: a empresa Armstrong em sua bandoleira, havia uma escopeta que mantinha o ar de slinger. Ele deu um sorriso provocante quando viu Atlantis saindo, se aproximou com os braços abertos.
— Está pronto, chefia?! A noite de hoje será… — Deu uma breve pausa. — Algo. Será algo.
Atlantis o olhou dos pés à cabeça. Parecia o julgar de certa forma, ou ao menos não estava aberto o suficiente para qualquer papo desse tipo.
— A rota já foi assegurada?
— Foi sim. Meus homens já estão na assembleia, estão colaborando com os soldados de Benzaiten e a polícia de Romaniva. A trajetória será tranquila. Embora eu deva dizer…
— O quê?
— Um belo de um pé no saco adiantar a reunião. Tive que refazer todo o planejamento.
— Foi necessário. — Atlantis cruzou os braços. — O ataque de Raimunda ao presidente Loid criou uma grande tensão no ar. Suspeitamos que possa haver mais um ataque amanhã, por acharem que iremos nos reunir lá… Fazer o encontro diplomático em segredo é a melhor opção.
— Não estou negando, apenas comentando. Bom, vou descer para a garagem e preparar os carros. Venha quando estiver pronto.
Lazlo saiu. Outros diversos funcionários vieram, conversaram, perguntaram coisas. Aquelas coisas que sempre perguntam: “devemos preparar um sósia?” “devemos colocar mais gunslingers na escolta?”. Questionamentos tediantes, políticos.
Ao fim da sessão de perguntas e respostas, Atlântis estava no elevador com sua guarda-costas. Como de costume, estava um tanto retraída. Não deixou de dar uma espiada de canto, notando algo importante. Após refletir, decidiu dizer.
— Você está tremendo.
— Hm? — Atlântis ficou surpreso. Olhou para sua mão, e notou aquela tremedeira tão leve e disfarçada que mais parecia uma tremedeira de frio. Fechou o punho, concentrou-se. Sua mão voltou ao normal. — Não é nada para se preocupar.
— Não estou preocupada… Só creio que deve ser muita pressão ao senhor… — hesitou em continuar — não quero soar meio grosseira, mas você não é muito novo para isso? Você tem 23 anos.
— Nosso adversário também tornou-se presidente muito jovem — contra argumentou — entendo o que está insinuando. Na maior parte da história, a liderança era associada com a idade. Então pode parecer contraditório isso… — Olhou de canto para Agni, e com uma expressão confiante, completou: — mas acho que um líder que ainda viverá bastante fará decisões mais sábias.
— É uma perspectiva válida.
— Válida, mas não é verdadeira.
— Hm?
— Se você quer realmente o motivo… É bem simples. Sou eu que vou conversar com Loid, pois sou o mais rico da cidade. — Cruzou os braços, e uma expressão um pouco mais para baixo dominou sua face. — Se meu avô tivesse durado mais um ano, seria ele que estaria no meu lugar. Ou melhor… Não. Ele nunca teria proposto algo como isso.
— Verdade.
. . .
As vinte e cinco horas e cinquenta e nove minutos, o restaurante estava exatamente como sempre está: cheio, com a cantoria de Simone tocando, garçons indo de um lugar ao outro. Não foi a briga de dias atrás que faria a clientela evitar comer lá, talvez fosse o justo oposto: a briga elevou muito os negócios, todo mundo queria algo parecido novamente.
E eles teriam.
Baret estava sentada em uma mesa bem no meio do restaurante, longe das janelas, em frente a entrada. A impressão que dava é de estar sozinha, uma pessoa solitária. Encarava a porta com esmero, contando os segundos para o tal sequestrador aparecer.
Não sabia de fato como se parecia. Arya dizia não ter o visto, tendo sido empurrada antes que pudesse o ver, e Quincas Borba, o único que poderia saber como se parecia, estava até então caído. A garota que tinham tomado com refém, a tal Destroyer, não deu informação relevante sobre sua aparência. Segundo as mensagens de Arya, ela apenas disse: “vai saber quando ver”.
“Que frase problemática”, pensou “Todo mundo nessa cidade se veste diferente, como que eu vou saber, porra? Até onde sei o cara pode tá vestido de palhaço”.
Ao badalar do horário combinado, não foi um palhaço que entrou no restaurante, e sim um homem de chapéu preto. Apenas mais um dentre muitos de Romaniva, com sua moda bonita, exagerada. Quando Baret bateu o olho nele, foi exatamente como Destroyer descreveu: dava para saber só de olhar.
Ficou parado na entrada por alguns segundos, a cabeça baixa fazia o chapéu bloquear o seu olhar. De forma lenta, foi levantando o queixo até os olhos afiados darem de cara com Baret, que retribuía com a mesma intensidade.
Quando algumas pessoas começaram a olhar para ele, e uma fila de pessoas querendo entrar no local começou a se formar, Elliot andou até a mesa de Baret. Com uma voz elegante e educada, perguntou:
— Posso me sentar?
— À vontade — Baret respondeu, ajeitando sua postura, tentando parecer um pouco mais alta, intimidadora.
— Obrigado. — Como se fosse um cavalheiro tirado dos livros do século dezenove, sentou-se na cadeira. Em seguida, com uma expressão calma, colocou a mão sobre o coldre e tirou sua slinger, deixando-a bem acima da mesa, apontada para a Baret.
Os olhos de Baret ficaram bastante focados com a slinger de Elliot, algo a chamava. Não hesitou em estender a mão e pegar a slinger para si mesma. Elliot, embora não esperasse isso, não reagiu. A mulher analisou cada pedaço da arma, até achar na sola do cabo as seguintes inscrições:
“#C19”
Um sorriso singelo apareceu em sua face. Largou a arma na mesa e pegou um celular, anotou a inscrição e cochichou.
— Não foi de todo mal… — comentou para si mesma.
— Minha slinger lhe agrada? — Franziu a sobrancelha. — Algo envolvendo o tesouro?
— É, é. — Confirmou levemente com a cabeça. — É apenas um passo para o sonho.
— Sabe… Pessoas como você seriam perfeitas para a Wild Hunt, sabia disso? Loki gosta do seu tipo. Se clamasse uma slinger para si, seria mais que bem-vinda.
— Ata. E largar o meu sonho pra vocês? Pelo quê? Dinheiro? Uma recompensa na cabeça? Não preciso disso. Além disso… — O sorriso se esvaiu, uma expressão séria dominou sua face. — Não sequestro gente.
— Mas mata um homem inocente por um número, não mata…?
Encaram-se. Os seus olhos disputaram dominância por alguns segundos. Olhos vermelhos e olhos azuis, era uma disputa maior do que qualquer embate entre gunslingers que Elliot tinha participado.
Então, Baret decidiu parar de enrolar.
— Onde está Émile?
— Onde está Destroyer? — Elliot respondeu com outra pergunta.
— Meio cedo para fazer exigências — Baret afirmou — considerando que quem está na vantagem sou eu.
— Será mesmo? — Elliot franziu as sobrancelhas. — Com todo o respeito… Parece-me que está um pouco desesperada.
— Eu?
— Evidentemente. Senhorita Baret, não quero soar grosseiro… Mas dentre nós dois, você é a quem mais tem a perder com o fracasso dessa negociação. — Juntou as mãos, e repousou o queixo sobre elas. — Não me entenda errado, estou aqui, pois, estou disposto a negociar. Mas você está apostando sua carreira, já eu… Algumas balas da minha slinger. Dito isso… Onde está Destroyer?
Ela desviou o olhar por um segundo, e Elliot seguiu os olhos. Levantando a mão como um sinal, um dos funcionários foi em direção a eles com uma mesa com rodinhas, com algo escondido por uma tampa de metal. Chegando à mesa, abriu a tampa, revelando a slinger de Destroyer.
Elliot focou seu olhar para a arma, encarou o funcionário, olhou para Simone cantando.
“Estou cercado”.
— Eu perguntei sobre Destroyer, não sobre a arma dela.
— Destroyer está no hotel — afirmou — a slinger é só uma garantia. Não tô muito afim de ter dois gunslingers com suas armas bem na minha frente, então achei melhor te entregar logo a parte mais importante.
— Pedi especificamente por ela. Não foi esse o combinado.
— Quando eu receber a Émile e garantir que ela esteja num lugar seguro, eu mando eles liberarem a Destroyer. Como eu disse, a garantia é a slinger. Não tenho motivo para segurar aquela garota. Ela é só problema mesmo.
— …
Elliot começou a pensar um pouco. Ponderava as opções do plano que tinha formado em sua cabeça. Após pensar em todos os riscos, tomou sua decisão.
— Chame seu amigo. Como é o nome dele mesmo? Axel, seu eu não me engano. Isso. Chame ele.
Baret tentou segurar a surpresa, mas não conseguiu. Por um único segundo, sua testa franziu. Disfarçou com uma voz séria logo em seguida:
— Por que assume que eu to com ele?
— Poupe-me. — Elliot gesticulou com as mãos. — Os funcionários estão ao seu serviço, deve ter conversado com a dona do estabelecimento, a cantora atual. Há certamente um plano por trás, e num plano, mobilidade é tudo. Por que não trazer o homem que tem o feitiço de maior mobilidade? Traga-o logo, será ele que pegará Émile.
— Tsc.
Após a leve reclamação, pegou o celular e digitou algumas mensagens. Não levou mais que um minuto para Axel aparecer. Com as mãos no bolso, óculos quebrados, cara de mal-encarado. Elliot deu uma espécie de sorriso provocante, tirou do bolso a chave de um carro.
— Está no estacionamento ao lado do restaurante. É um carro vermelho.
Axel pegou a chave e colocou no bolso com pressa, deu uma olhada para Baret esperando a ordem.
— Me ligue quando conseguir ela — Baret disse a Axel, que apenas ficou em silêncio, confirmando com a cabeça. Saiu do restaurante com pressa, indo ao estacionamento pelas ruas vazias.
O estacionamento era ao ar livre, com diversos prédios o cercando. Axel sabia, pela descrição de Arya, que havia uma garota com uma espécie de slinger-sniper, parecida com a da guarda-costas de Atlantis. Com a mão direita, já pegou seu revólver-espada. Na esquerda, a chave.
Deu uma olhada no estacionamento, havia três carros vermelhos espalhados. Apertou o botão para destrancar o carro, e o mais ao canto, embaixo de uma sombra de um prédio, respondeu ao sinal.
Foi em direção ao carro, com os olhos indo de prédio em prédio, preparando-se para o pior. Um esforço inútil, mas uma paranoia justificada, ele sabia: se houvesse algum sniper, ele iria morrer e simples assim. Quando tomou coragem, ficou em frente ao carro. Não havia ninguém nem nos bancos de trás, nem nos bancos da frente.
Apenas uma conclusão óbvia: o porta malas.
Abriu ele e lá estava uma surpresa positiva: Émile.
Em posição fetal, com as pernas e braços amarrados. Os olhos fechados e a respiração lenta indicavam que estava desacordada. Quando viu aquilo, sentiu algo.
— Tem parada errada aqui… Tá tudo muito tranquilo… — Com a slinger, cortou as cordas e em seguida, com uns movimentos bruscos, tentou acordar ela. Nada. — Tsc, deve ser a mesma parada que usaram pra colocar o Quincas para dormir… — Não teve outra opção. Colocou Émile desacordada sobre seu ombro e apontou a slinger ao chão, pronto para criar um portal. Deu um único disparo no chão, o espaço começou a ficar distorto, mas ainda faltava cortá-lo para efetuar o portal. Estava prestes a fazer isso, quando de repente… Hesitou.
Algo estava muito errado.
Olhou novamente nos prédios. Não havia sinal nenhum de sniper, nenhum brilho que parecia de luneta. Era definitivo que não havia sniper nenhum, em sua própria ignorância, sabia disso. Então por que aquela sensação de que estavam mirando contra ele…?
“Por que… Ele fez questão de que eu que buscasse a Émile…?”
Olhou para o carro novamente, como estava posicionado de uma forma curiosa, bem embaixo de uma sombra… Foi bem ali, que ele percebeu.
E se eu erro foi dizer em voz alta:
— Merda.
Tentou correr, se afastar, mas foi tarde demais: sentiu algo perfurando a sua canela. Quando a dor aguda de um disparo de rifle vindo de baixo do carro subiu pelo seu corpo como um raio descendo dos céus, sua perna perdeu as forças e instintivamente ajoelhou-se.
Um erro.
Sua espada tinha perfurado o chão, o espaço. Bastava apenas cortar. Mas tudo aconteceu tão rápido, Ramona rolou para o lado do carro, levantou-se e correu em direção a Axel. Antes que ele pudesse reagir, a garota deu um chute em seu punho, empurrando a espada para trás e abrindo o portal para o hotel. Sem hesitar, pulou nele.
Axel mal conseguiu perceber o que estava acontecendo. Tudo que sabia era que precisava garantir que Ramona não passasse. Talvez fosse um erro, ou talvez não, mas instintivamente soltou Émile, que caiu no chão desacordada; e ele mesmo pulou no portal.
Ramona caiu no quarto do hotel de Émile. Sem perder tempo, tomou cobertura para trás do sofá e apontou ao portal, preparando-se para acertar Axel. Mas no momento que ele estava caindo, exposto… Ela hesitou. Decidiu não atirar, em vez disso, colocou a slinger nas costas, puxou uma faca de combate.
Axel caiu de pé, mesmo com dificuldade. Encarando Ramona, estranhou o fato dela não ter atirado. Porém, logo percebeu o motivo:
“Tendi… Ela acha que se atirar, o som vai ser alto o suficiente para alertar o povo daqui. Eu sei que isso é besteira porque o isolamento sonoro dos quartos é foda para caralho, por outro lado, se ela descobrir sobre isso, ela vai pegar a slinger”
Não devia perder tempo. Colocou a mão sobre o cabo de sua slinger e de sua espada, puxando-as para fora da bainha em forma de X.
— Sabe o que dizem? — Axel perguntou, mas não obteve nenhuma resposta de Ramona. Decidiu continuar mesmo assim — “não traga uma faca numa briga de espadas”.
— Ninguém diz isso. — E então, colocou a mão por cima do ouvido, e apertou o que parecia ser um fone no ouvido. — A garota ficou no estacionamento.
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