Capítulo 102 — Guardião (4)
Pássaros voaram sem rumo, indo para além do horizonte. Algumas bestas foram afetadas pelo feitiço de Nosehel, embora não atingidos fisicamente, a “Purificação Mútua” afetou o espírito e mente dos animais espalhados pela floresta.
O anjo, recuperando seus bastões d’água, recuou alguns metros do ponto de impacto. Retornando as armas elementares para as costas, enfim a cruz elemental havia voltado. No entanto, Nosehel estava perplexo.
Com o peito preenchido por curiosidade, afinal, era sua primeira experiência com um ser daquela magnitude.
Dano físico, elemental e espiritual…
Realmente, nenhum ataque funcionou diretamente no guardião. Nada além de meros danos na armadura da besta. Por fim, o guardião ergueu-se dos estragos. Sua armadura, antes altamente danificada, retornou a sua mais perfeita e absoluta forma ao absorver a mana ambiente.
‘Você se tornou mais interessante agora.’ comentou Nosehel.
As duas criaturas se encararam novamente, os olhos vazios de um anjo artificial com os de um guardião sem salvação. A boca do guardião, abaixo do elmo, abriu-se em reflexão.
‘Eu…’ murmurou ‘Sou interessante?’
Nosehel foi atacado de surpresa. Aquele golem… Havia criado consciência?
O guardião encarou suas manoplas, cobertas por terra e algumas manchas verdes de folhas esmagadas.
‘O que torna eu… lamentável… interessante?’ resmungou o guardião.
“Ele não consegue falar como um humano… É como se estivesse aprendendo.” concluiu Nosehel.
Sua maior conclusão chegou mais tarde; é óbvio que ele criaria uma consciência, afinal, possui um cristal arcano lhe dando vida. Alguma hora a besta iria despertar. É um caso similar com a harpia que falou com Theo, no entanto, aquela já tinha plena consciência.
‘Eu… desprezível…’ disse o guardião.
‘Por quê?’
A besta revirou seus olhos pela floresta, induzindo o anjo a tirar sua própria conclusão.
‘Hm…’
Nosehel havia entendido. Aquele golem deve ter sido criado unicamente para ser o guardião daquela floresta, um ser poderoso que protegeria tudo e todos. Não se regenerar antes demonstrou que o guardião não estava utilizando tudo de seu núcleo, afinal, ele deveria proteger a floresta e não a destruir com seu poder. No entanto, a floresta estava, em parte, destruída pelo próprio.
‘Irmãos…’ murmurou, olhando para além das árvores. ‘Eu… os matei.’ Sua mente, recém despertada, entrou em pânico. ‘Pai…’
Uma luz clareou seus olhos, tomada pela silhueta de uma pequena mão.
— Sempre haverá quem lhe abrace, filho. Não importa o que faça, se for pela proteção… — disse uma voz juvenil, pouco irônica por natureza, mas proferindo verdades.
‘Proteção…’
O guardião suspirou. Ele podia sentir toda a mana daquela região, afinal, dela foi criado. Qualquer mera interação entre massa e a partícula de energia… Animais, ao longe, confusos pelos repentinos abalos sísmicos que outrora ocorreram, corriam para todos os lados. As bestas sentiam-se oprimidas pela liberação de energia do guardião e de Nosehel. O demônio que tentou lhe ajudar teve a presença apagada há um tempo, mas só agora notou.
‘Falhei, mas… Responda.’
Nosehel ajustou a postura e recuperou sua guarda. A lâmina esmeralda escorregou pela mão do guardião, um chicote de vinha escorregou na mão esquerda, se estendendo pela clareira que estavam.
‘Quem?’
O anjo encarou perdido.
‘Quem o quê?’
‘Se eu morrer para você… Quem irá os proteger?’
Toda a mana de seu núcleo deslizou pelo ambiente, assumindo a manifestação de uma criatura imensamente poderosa, superior e grandiosa.
Porém, apenas aos olhos de Nosehel. Para os humanos, o que tem uma aparência questionável e monstruosa, se aproximando do pesadelo de muitos, para o anjo dos druidas, tinha sua essência majestosa.
Repentinamente, aquela quantidade massiva de mana caiu contra Nosehel como uma onda d’água. Surpreendentemente, o guardião surgiu em sua frente, golpeando-o com a espada esmeralda sem permitir que o anjo respirasse.
Novamente, antes que Nosehel respirasse, o guardião pressionou a lâmina contra o antebraço do anjo e proferiu sua questão.
‘Quem irá os proteger?!’
Ódio.
O primeiro sentimento que o guardião sentiu, foi liberado em forma de um grito que rasgaria a garganta de uma pessoa comum.
Com pura força bruta, o guardião abriu os braços de Nosehel com o único movimento e aproveitou da abertura para chutar o abdômen do anjo. Este deslizou para longe, no entanto, não tirou os pés do chão. Manteve sua postura firme.
Agilmente, Nosehel criou uma espada de aço e envolveu-na em chamas; instáveis como uma fogueira sendo atacada por uma ventania intensa. Ligeiramente, o guardião investiu novamente contra o anjo, com seu rosto banhado por uma sombra intensa que deixava apenas o brilho dos olhos escaparem.
Sua presença estava incrivelmente mais refinada. Parecia um ser totalmente diferente.
Com uma poderosa estocada, o guardião liberou sua mana num feixe de luz; capaz de atravessar a armadura do anjo em um disparo de energia verde. Nosehel temeu enquanto sentia aquele ataque.
“Dano espiritual… Ele evoluiu comigo?”
Recuando um passo, Nosehel bateu asas para o céu. Em um instante, o anjo já estava acima das árvores, podendo ter um breve vislumbre da destruição. Entretanto, com o chicote de vinhas, o guardião agarrou a perna do anjo e o puxou contra o chão novamente.
‘Quem irá os proteger… Além de mim?!’
Aproveitando o puxão do guardião, Nosehel despencou com a espada de chamas, conjurando um feitiço às presas. Uma lâmina de fogo azul caiu sob a floresta, rasgando o ecossistema em sua menor potência, sendo mantido sua força e reduzida sua pressão. A prova da facilidade que Nosehel permitiu, foi que o guardião segurou aquilo apenas com sua mão esquerda. Embora fosse necessário para cremar qualquer ser vivo sem controle de energia.
‘Não haverá ninguém.’ respondeu Nosehel. ‘Entendo a ti, pois somos ingredientes de uma mesma receita. Uma criação, um guardião, um ser criado com o único objetivo de proteger. É por isso que somos vazios, apenas exercemos nossas funções num mundo de sentimentos. Uma espada e a morte, apenas isso que oferecemos para quem vos criou.’
O guardião relaxou o braço, permitindo Nosehel tempo de fala.
‘De fato, não haverá ninguém para exercer sua função. No entanto, com tudo que vi lá de cima, você acha que realmente está os protegendo? Na verdade, após aquilo tudo, acha que eles não te aceitariam?’
‘Eu não sei.’
‘Ficarão bem após tua ida?’
Ele permaneceu em silêncio.
‘Pois bem, você ficaria bem se eles partissem?’
A mesma reação se repetiu. O guardião não possuía respostas, apenas incertezas.
‘Então, veja bem. Após terminarmos com você, prometo não machucar nenhum de seus irmãos ou irmãs. Pelo menos, não eu…’
Nosehel pôs a mão esquerda no peito do guardião e iniciou um processo peculiar na manipulação de energia. A mana de todos os núcleos se concentrou na palma da mão, desde a mana elemental — os atributos — até o próprio ki — a energia que limita o núcleo.
Eventualmente, Nosehel aplicou a energia quantum na equação, podendo afetar atomicamente o próprio guardião.
‘A propósito, qual teu nome, grande guardião?’ indagou Nosehel.
‘Nome…?’
Seu criador não havia dado nada além de “Guardião e filho”. Na verdade, sequer o ensinou o que significa ter um nome. Embora tivesse o costume de contar sobre os anjos, já que o Emissário do Mundo é descendente dos caídos. Ele sempre escutou que os anjos possuíam nomes ao qual louvavam a Deus; Ninguém é como Deus, Fortaleza de Deus, Curado por Deus…
O guardião, notando que não lhe restava tempo nas mãos de um anjo, concluiu um breve raciocínio.
‘Tevariel.’ afirmou o guardião ao escolher seu próprio nome.
‘Entendo…’ disse Nosehel, sorrindo. ‘Tevariel, o guardião da harmonia. Teu próximo mestre lhe dará uma missão honrada.’
A energia cobriu a armadura do guardião em um lençol de mana, tal qual se tornou quase invisível segundos depois. Posteriormente, uma luz verdejante reluziu por entre as árvores da floresta, iluminando seus pontos mais escuros e atormentando a mana atmosférica. Em seguida, um bater de asas abandonou o local.
— Agente Serach, está tudo finalizado! — anunciou a conjuradora, levantando-se do chão no qual estava ajoelhada.
— Ótimo, agora só nos resta esperar pelo retorno da besta. Quando acontecer, Aidna, ordene que tua invocação prenda nosso inimigo ao círculo central.
Dez círculos de energia enormes estavam plantados pela arena; nove estavam nas paredes do local, quase se fundindo com os tijolos de pedras. O décimo estava esbanjado no centro do campo de combate, ainda nítido ao olho nu, adotando uma tonalidade vermelho vivo. A jovem conjuradora buscou sair do campo de seu círculo.
— Tem certeza de que irá funcionar, conjuradora? — indagou Aidna.
— Meu nome é Kris! Vocês me chamam de conjuradora pra lá e pra cá como se fosse meu nome, mas não é!
Aidna e Selina se espantaram, de uma maneira fria, sem expressar medo ou qualquer coisa referente à conjuradora Kris.
— E sim, tenho certeza. Cada círculo exerce um dano diferente; elemental, físico, mental, espiritual, gracioso… Todo tipo de dano. Mesmo que seja um Golem, deve haver fraqueza para algum tipo…
‘Ele não possuía.’ afirmou Nosehel, aparecendo repentinamente por detrás de Kris.
A jovem saltou de medo. A presença do anjo sufocava-a.
‘Era realmente um ser esplêndido.’
— Você o matou? — perguntou Aidna. Nosehel carregava o chicote de Tevariel em mãos.
O anjo retirou um cristal de um compartimento em sua manopla, translúcido mas de tonalidade verdejante com apenas uma runa preta flutuando no centro. Aidna surpreendeu-se.
“Um sigilo! O Nosehel-fetz aprendeu a criar sigilos?!” pensou Aidna, espantada com o anjo.1
‘Fique para ti.’ Estendeu a mão para Aidna. ‘Não sei a qual clã pertences, mas, ainda é uma druida cuja merece minha proteção. Entretanto, nossos lordes não me permitirão ser teu guardião novamente. Devido a isto, peguei este presente como despedida.’
Aidna aceitou o gesto e pegou o cristal com a mão direita. Ela ficou admirando o artefato durante um belo tempo, tentando entender exatamente do que se tratava. Contudo, após alguns segundos, ela entendeu.
— O guardião? — perguntou surpresa.
‘Tevariel, o guardião. És um sigilo de invocação, o subjugue e ele te protegerá.’
— Então… Fiz o meu ritual pra nada? Gastei energia! — reclamou Kris.
‘Problema não é meu.’ retrucou Nosehel. ‘Contudo, há uma solução.’
O anjo deixou as três pensarem um pouco, por conta própria. Com seu tempo como o guardião de Aidna chegando no limite, ele queria deixá-las responsáveis e cientes da situação atual.
Selina estalou os dedos e encarou suas companheiras, estava nítido o objetivo do anjo. Aidna inclinou a cabeça em perplexidade, mas também alcançou a resposta.
— Você consegue mover seus círculos até o Emissário? — perguntou à Kris.
— Consigo… — respondeu, entendendo o ponto. — Mas… Eu não vou conseguir manter por muito tempo. Talvez eu nem chegue lá antes de prevenir um final pior.
— Vamos, eu te ajudo — disse Aidna. — Quanto a você, Selie?
— Eu vou achar o Theo. Faz um tempo que não sinto a presença dele, vou averiguar a situação… — retrucou Serach.
A druida assentiu com um sorriso.
— Garanta que ele esteja bem.
— Irei.
Selina saltou para fora da arena, parando exatamente onde o confronto de Theo e o demônio aconteceu. Embora a destruição não se comparasse a da batalha de Nosehel e Tevariel, ainda era notória a dificuldade que Theo enfrentou. Entretanto, entre árvores caídas de partículas de manas corrompidas, Serach encontrou algo que lhe irritou demasiadamente.
Rupturas na superfície, semelhante a cortes de energia aprimorados, imbuídos em encantamentos elementais; além dos quatro elementos primordiais, alcançando o quinto elemento… Theo havia alcançado um de seus maiores feitos para Selina.
Fundir os quatro elementos vai além de uma simples equação, é aprender a controlar a combustão, a estabilidade do ar, o estado líquido da água e entender a natureza. Se o rapaz falhasse em um desses fundamentos, seu núcleo iria implodir no mesmo instante.
Ele desobedeceu ao pedido de sua mentora temporária e fez um ritual de encantamento arriscado até para desviantes avançados. Sua preocupação com Theo havia crescido mais ainda.
Enquanto os agentes se preparavam para a invasão ao forte do Emissário do Mundo, em um saguão escuro, iluminado apenas pela pouca luz que adentra o portão principal, sentado num trono ao topo de tudo, uma silhueta contornada por uma aura verde os esperava em tédio profundo.
— Meu filho… — A presença do guardião havia desaparecido, assim como quaisquer resquícios de sua vida. — Foi derrotado.
Sua afirmação foi acompanhada por um tom pesado na voz, seguido pelo pequeno punho se fechando e cerrando os dedos.
Nota do autor: O volume 3 entrou em sua reta final! Preparem-se para os últimos dez capítulos e a maior luta da obra até o momento.
- “-fetz” é uma forma de tratamento honorífico dos druidas utilizado, no geral, para se referir aos soldados de elite mais prestigiados por todos os sete lordes. No caso de Nosehel, o maior da elite.[↩]
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