Capítulo 95 - Companheiros na face da morte
“Quando se caminha lado a lado com o inimigo, não se pode esquecer que a traição é uma faca de dois gumes. Não há maior prisão do que aquela construída pelas próprias emoções.”
— O Código do Guerreiro Solitário, Verso 31.
Harley ficou em silêncio, absorvendo a resposta de Ivana. O “talvez” dela pairava entre os dois, como uma promessa vaga e inatingível. Ele não sabia ao certo o que esperar, se aquilo era apenas um jogo ou se havia alguma verdade por trás do sorriso misterioso dela.
Por um momento, a vulnerabilidade de Ivana pareceu quebrar a frieza habitual que ela exibia, revelando algo mais humano, algo que ela normalmente escondia.
— Ivana… — Harley começou, mas as palavras morreram em sua boca.
Antes que ele pudesse continuar, algo mudou na atmosfera ao redor. Um calafrio percorreu seu corpo, e o ar pareceu se tornar mais denso, como se a própria escuridão ao redor deles tivesse ganhado vida. Ivana deu um passo para trás, os olhos se estreitando enquanto olhava para um ponto logo atrás dele.
Foi quando ele percebeu a sombra. Uma figura sinistra, um guepardo de seis patas, emergiu como se tivesse sido moldado diretamente da escuridão ao seu redor.
Num salto predatório, a sombra do guepardo avançou com garras afiadas e dentes ameaçadores em direção a Harley, que permanecia alheio à presença do inimigo.
A velocidade e furtividade do ataque eram impressionantes, mas Ivana agiu rapidamente, lançando-se na direção do jovem e empurrando-o para longe da trajetória do ataque iminente.
Harley conseguiu escapar da investida, mas ambos caíram no chão com o impacto. Ivana, agora sobre ele, rolou para o lado, mantendo-se atenta à sombra que se virava para encará-los. Os olhos da criatura, repletos de uma energia sombria como um fogo negro encantado, fixaram-se nos dois adversários caídos.
— Você foi ágil desta vez! — Ivana comentou, ofegante.
A resposta veio de maneira inesperada, um riso distorcido da Guardiã Sombria reverberou pela boca da sombra do guepardo:
— Muahaha!
O próprio ar parecia estremecer, carregado por uma vibração de maldade pura, como se o ambiente ganhasse vida com aquela perversidade.
De súbito, seis novos guepardos sombrios materializaram-se, fundindo-se habilmente com as sombras circundantes. Suas formas escuras eram quase indistinguíveis, uma extensão perigosa da própria escuridão que os envolvia, prontos para lançar ataques furtivos e letais.
Os olhos penetrantes dos felinos fixaram-se na localização de Harley e Ivana, e com a descoberta de sua localização pela Guardiã Sombria, era inevitável que outras sombras logo se unissem à luta.
Ivana, apesar de sua condição debilitada, reuniu suas últimas reservas de energia. Sem hesitar, puxou Harley e lançou ambos para dentro da sombra ao lado deles. Uma sensação vertiginosa os envolveu, como se o mundo ao redor tivesse se tornado deformável, transportando-os para um lugar completamente diferente.
O ambiente mudou drasticamente. Agora, estavam em um área ainda mais árida, sob o olhar vigilante de três sóis, que continuavam irradiando uma temperatura sufocante.
A terra seca e rachada se estendia até onde a vista alcançava, uma vastidão estéril sem vegetação ou sinais de vida. Rochas ásperas e imponentes emergiam do solo, formando passagens estreitas e labirintos naturais.
Harley, ainda atordoado pela transição abrupta, se ergueu cambaleando, o olhar percorrendo o terreno hostil ao redor. O calor abrasador tornava cada respiração uma tarefa árdua, o ar denso e opressivo como se sugasse a energia de seus corpos.
Ao seu lado, Ivana permanecia desacordada, o rosto pálido contrastando com o brilho implacável dos sóis. Ela parecia ter despendido todas as suas forças naquele último salto desesperado, e agora jazia vulnerável, como se a própria paisagem drenasse sua vitalidade.
Harley observou-a por alguns instantes, um conflito interno crescendo dentro de si. Diante daquela situação, uma ideia sombria começou a se formar em sua mente: abandonar Ivana ali, deixá-la para enfrentar seu destino sozinha.
Afinal, a mulher à sua frente já havia sido uma inimiga feroz, alguém em quem ele não poderia confiar completamente. Se ele seguisse em frente, teria a chance de evitar complicações futuras.
No entanto, mesmo enquanto ponderava essa possibilidade, um peso inescapável pressionava seu peito. Harley já havia vivido tantas fugas, tantas despedidas amargas que o perseguiam como sombras.
Cada uma das pessoas que deixara para trás fazia parte de uma coleção de fantasmas, lembranças de sua constante tentativa de escapar das consequências de seus atos. Sua tribo, seus amigos, aqueles que o haviam seguido… Todos ficaram presos no passado.
Durante muito tempo, ele acreditara que a busca incessante por poder seria a resposta para suas fraquezas, que acumulando força poderia um dia retornar e redimir suas falhas.
Contudo, agora, à medida que o calor sufocante da realidade ao redor o envolvia, Harley percebia que nenhum poder nunca seria suficiente para resolver todos os problemas e aplacar os fantasmas internos que carregamos.
O jovem olhou para Ivana, imóvel na terra árida. Ele tinha certeza que salvando aquela mulher ele traria complicações futuras ainda maiores, mas talvez esse fosse o momento em que ele poderia quebrar seu próprio ciclo. Talvez fosse hora de assumir responsabilidade e fazer coisas diferentes além de continuar lutando sozinho.
Com um impulso decidido, Harley ajoelhou-se ao lado de Ivana, ignorando o calor que queimava a superfície do solo. Sua mão pousou sobre o ombro da mulher, sacudindo-a levemente.
— Ivana… — sua voz saiu rouca, a garganta seca pelo calor — Acorde, precisamos sair daqui.
Ela não respondeu, a respiração superficial, os lábios ressecados. Harley passou a mão pelo rosto, tentando decidir o que fazer. Ele não podia simplesmente carregá-la, não por muito tempo naquele calor opressivo. Precisava encontrar uma forma de recuperar a força de Ivana, ou ambos pereceriam naquele lugar inóspito.
O olhar de Harley vagueou pelas formações rochosas próximas, procurando algum tipo de abrigo contra os sóis. Avistou uma fenda entre duas grandes rochas, um espaço que poderia oferecer alguma sombra e, com sorte, aliviar um pouco o calor que ameaçava esgotar suas energias.
Reunindo sua força, ele levantou Ivana, apoiando-a em seus ombros. O corpo da mulher estava leve. Ele avançou, determinado a encontrar abrigo. Cada passo parecia uma eternidade, mas finalmente alcançou a fenda na rocha.
Dentro do espaço apertado, a sombra proporcionou um alívio imediato. Harley deitou Ivana no chão, encostando-a cuidadosamente contra a parede de pedra. Ele se sentou ao lado dela, ofegante, com os olhos fechados enquanto tentava recuperar o fôlego. Precisavam de um plano, e rápido, antes que a Guardiã Sombria e seus servos os localizassem novamente.
Harley olhou para Ivana, as pálpebras dela tremendo ligeiramente, como se lutasse contra um sonho inquietante. Ele precisava descobrir uma maneira de despertá-la, de trazê-la de volta daquele estado de esgotamento profundo.
Foi então que ele se lembrou do que tinha experimentado antes – aquela conexão estranha e profunda, quando ela tocara sua testa e o levara ao passado. Talvez, se ele pudesse replicar aquilo de alguma forma, poderia restaurar suas forças.
Sem hesitar, Harley estendeu a mão, pressionando gentilmente os dedos contra a testa dela. Não tinha certeza do que esperar, mas sabia que precisava tentar algo. Fechou os olhos, concentrando-se na sensação, buscando aquela conexão.
Por um momento, nada aconteceu. O calor do deserto ao redor parecia se intensificar, e o silêncio era opressivo. Mas então, uma corrente de energia começou a fluir. Era diferente do que ele havia sentido antes, menos avassalador, mais… delicado. Era como um fio tênue que ligava sua mente à dela, uma troca de emoções e sensações.
Harley sentiu a dor de Ivana, a exaustão que a consumia. Mas havia algo mais – uma força escondida, enterrada sob camadas de solidão. Ele se concentrou, buscando aquela centelha de poder, tentando trazê-la à tona.
Gradualmente, ele sentiu a respiração de Ivana se aprofundar. Seus olhos se abriram lentamente, e por um momento, ela pareceu desorientada, o olhar perdido na fenda escura da rocha. Quando finalmente encontrou o rosto de Harley, houve um lampejo de surpresa em seus olhos, seguido por uma compreensão silenciosa.
— Você… não me abandonou? — a voz dela era um sussurro, frágil como uma folha seca.
— Não desta vez — respondeu Harley, um leve sorriso tocando seus lábios — Não mais.
Ivana fechou os olhos, respirando profundamente. A sombra ao redor deles parecia menos sufocante agora, como se algo tivesse mudado naquele breve momento de conexão. Ela assentiu lentamente, e quando voltou a abrir os olhos, havia algo novo ali – um brilho de determinação.
— Precisamos sair daqui — A voz de Ivana ganhou força, e ela apoiou as mãos na parede para se levantar — A Guardiã não desistirá. Mas nós também não podemos.
Harley a ajudou a ficar de pé, o olhar fixo no horizonte desolado do deserto. Eles precisavam sobreviver, não apenas para derrotar um inimigo em comum, mas para se provarem algo que até aquele momento tinham medo de aceitar: que eram capazes de mudar. Capazes de enfrentar seus próprios demônios, juntos.
O calor continuava impiedoso, os três sóis brilhando imponentes no céu, mas algo havia mudado entre os dois. O vínculo que se formara ali, no coração de um deserto implacável, era diferente de qualquer aliança temporária que tivessem feito.
Era uma promessa silenciosa de que, por mais que o mundo ao redor quisesse vê-los derrotados, eles continuariam a lutar, juntos.
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