Capítulo 29 - O Destino é o céu
Ponto de Vista de Noelle:
Recobrando a consciência, eu abri meus olhos lentamente, vendo Saki com sua cabeça deitada ao meu lado, dormindo como uma criança, babando uma parte do lençol. Em uma bancada de madeira do outro lado da cama, o livro da minha mãe estava seguro, com sua capa um pouco machucada.
Eu tentava reconhecer o lugar onde estava, uma tenda branca, repleta de aparelhos médicos ligados ao meu corpo.
— Há quanto tempo ela tá dormindo? — a voz de Akira soou abafada pelo outro lado da porta de vidro.
— 2 dias — Shosuke respondeu friamente, como sempre.
Ao se aproximarem, a porta se abriu automaticamente. Eu não conseguia ver os olhos de Shosuke por trás de seu cabelo, mas os olhos de Akira demonstravam sua surpresa, seguidos de um suspiro aliviado.
— Ainda bem, você finalmente acordou…
— É, parece que sim — eu abri um sorriso constrangido.
— Ela ficou aí esse tempo todo, só esperando você levantar — disse Akira apontando para Saki.
De forma adorável, ela apertava a cama com suas mãos trêmulas, mostrando toda a sua preocupação.
— S-Será que eu acordo ela? — perguntei confusa, meus braços não sabiam o que fazer naquela situação.
— Deixa ela aí! — rindo da minha confusão — Ela não descansa assim desde que chegamos aqui.
— Certo, então tá.
Todos aqueles aparelhos grudados em mim traziam uma incomodação profunda e comecei imediatamente a tirá-los.
— Ei, espera um pouco! — interrompeu Akira — A gente ainda não sabe se tá tudo bem com você!
— Eu me sinto bem, acho que não tem problema.
— Eu vou chamar Eco! — saindo da tenda rapidamente — Vê se deixa ela sair daí, bicho do mato! — exclamou para Shosuke.
— O único “bicho do mato” aqui é você… — resmungou baixinho.
Um silêncio constrangedor assolou o lugar no mesmo instante.
— Então… tem mais alguém aqui?
— Quando acordamos, um homem gigantesco e uma mulher demônio apareceram aqui.
Assim que me respondeu, consegui ver claramente a imagem de Galliard e Elena como um gigante e um demônio.
— Acho que sei de quem você tá falando… — segurei o riso o máximo que pude.
— NOELLE! — Galliard entrou preocupado, quase levando a porta junto com ele.
— Sr. Galliard? O que está fazendo aqui?
— Eu não estou aqui exatamente — enquanto verificava os computadores, Galliard foi explicando a situação — Eco está espelhando minha imagem com uma camuflagem avançada. Você o conheceu como “Projeto: Espelho”.
— Eu lembro disso! O senhor estava trabalhando nele há meses! — respondi surpresa.
— Exatamente — Eco moveu Saki desajeitadamente para o lado, mas ela continuou dormindo como uma pedra — Agora deixe-me examinar algumas coisas.
Confesso que o corpo de Galliard espelhado em Eco me deixou mais confortável e segura, mas ainda assim, todos aqueles exames me incomodavam. O tempo passou a medida que os resultados apareciam, Saki acordou logo após tudo ser finalizado.
— Uh? Noelle? — seu sorriso abriu instantaneamente — Você acordou! — Saki correu para me abraçar, mas Eco a impediu brevemente.
— Espere um pouco Saki, eu ainda não terminei.
O brilho em seus olhos foi apagado como um fósforo aceso na chuva.
— Tudo certo, não é? Eu estou bem! — ansiosa para livrar de todos aqueles fios.
— Sim, em geral, tudo está correto, mas… há algo estranho no nervo óptico direito.
— O quê? Mas eu não sinto nada — contestei.
— Como você já sabe, a mana flui por todo o corpo do indivíduo e isso não exclui os olhos. Bem, para resumir, uma assinatura de mana diferente da sua foi capturada em seu olho direito.
Ao ouvir o diagnóstico, um calafrio subiu pela minha espinha, meu corpo congelou por um momento, processando e lembrando tudo que aconteceu há dois dias.
— O quão ruim isso é? — Saki perguntou.
— Não parece fazer mal algum, mas é bom ter cuidado, sei que vai exigir um excelente domínio, mas peço que faça — até então, eu não sabia como reagir àquilo — além disso, seu corpo sobrecarregou e ainda está se recuperando, então não se esforce demais.
Eco saiu da tenda, retirando todos os fios que se conectavam a mim, finalmente me deixando livre. Assim que a porta se fechou, olhei para frente e pude ver a silhueta de Akira e Shosuke se escondendo, mas isso nem mesmo importava naquele momento.
— Noelle…
— Tsc… — suspirei fundo — E então? O que vamos fazer agora? — respondi com um sorriso.
Ponto de Vista de Akira:
Vendo que Noelle ainda se mantinha forte, fiquei aliviado com sua reação. Logo em seguida, Shosuke e eu saímos, em uma distância considerável um do outro, fomos até Karayan, que ainda dormia com a barriga para fora, como um mero vagabundo.
— Tsc, ele ainda ta dormindo? — perguntei frustrado.
— Eu o vi andando pela ilha na noite passada.
— E o que vocês estão fazendo aqui, só vieram atrapalhar o meu sono? — levei um belo susto ao ouvir sua resposta inesperada.
— Você passou os últimos dois dias inteiros dormindo! — gritei enfurecido.
Karayan lentamente levantou uma parte de sua camisa, mostrando um ferimento grave ainda não cicatrizado em sua costela. Além do corte, algum tipo de infecção parecia se espalhar pelo local.
— Eu não posso fazer muita coisa com um ferimento desses.
— Mas… quando isso aconteceu? — eu estava em choque com aquela imagem.
— Um daqueles espinhos me acertou enquanto eu estava focado em outra coisa.
Assim que aquele maldito demônio começou a atirar espinhos para todos os lados, Shosuke e eu não estávamos conseguindo lidar com todos eles. Em um momento em que iríamos ser atingidos, Karayan surgiu das sombras rebatendo o espinho para longe. Assim que essa memória veio a minha mente, um grande culpa pesou sobre meus ombros.
— Merda… tanto faz! — saí dali revoltado comigo mesmo.
Shosuke foi embora, enquanto eu saltava entre os galhos das árvores mortas pela cidade. Durante toda a minha vida, pular pela floresta fazia o vento levar toda a minha angústia embora, mas dessa vez, eu me sentia cada vez mais culpado.
— Eu realmente sou patético… — resmunguei cabisbaixo.
— Pelo menos você reconhece — de alguma forma, Karayan estava bem abaixo de mim, apoiando suas costas na árvore.
— O que você tá fazendo aqui?
— Você é muito fraco mesmo…
— EU SEI DISSO! Se veio aqui só pra falar isso, pode ir embora!
— Sua postura é firme, seus golpes são criativos, parece que recebeu um ótimo treinamento, mas… tem algo que ainda te faz ser fraco.
— Talvez meu poder mágico seja bem abaixo do normal.
— Não. De fato, falta muito refino de seu ‘Ki’, mas seu nível ainda está próximo ao dos outros dois.
— Fala da Noelle e da Saki?
— A garota de cabelo roxo? Não mesmo, ela está em um nível completamente diferente.
— Sim… não faz nem um ano desde que ela chegou aqui e ainda assim foi capaz de abrir uma cratera daquelas.
— Eu não sei o que quis dizer com isso. O fato é: Você é fraco e sabe disso, mas não está fazendo nada para mudar esse fato.
— Não estou fazendo nada?
— Se lamentar e se culpar não vai te fazer ficar mais forte. Chegar ao seu limite não significa que não consiga continuar.
— Aonde quer chegar?
— Você é burro ou o quê garoto? — ele se levantou e começou a andar de volta para a tenda
— COMO É!
— Eu já falei demais por hoje, preciso descansar. Viu o meu cigarro por aí?
— Eles confiscaram seu cigarro, sabe que não pode fumar agora, não é?
— Tsc, que saco!
Eu não entendia bem o que tudo aquilo significava, mas o que ele disse estava certo, ficar se lamentando não iria me tornar mais forte.
Ponto de Vista de Noelle:
Saki e eu caminhávamos pelas ruas ensolaradas de Raven, que outrora já estavam tomadas pelo frio mórbido.
— Depois disso, eu segui o rastro de Karayan até vocês — disse ao terminar de explicar como derrotei o homem das lâminas de vento.
— Eu não sabia que era possível trocar de corpo dessa forma, mas até que faz sentido, ele mudava sua personalidade de um segundo para o outro nas vezes que nos encontramos.
— Me pergunto o que aconteceu com ele, ainda não pude voltar para terminar nossa conversa.
— Elena, quer dizer, Eco disse que não deveríamos nos aproximar do Gioll agora.
Um silêncio constrangedor se juntou à conversa e na tentativa de nos livrar dele, acabamos falando ao mesmo tempo, o que deixou o clima ainda mais constrangedor para mim. Saki ria dizendo:
— Aconteceu de novo — ela continha o riso.
— O quê?
— Falamos ao mesmo tempo. Isso também aconteceu na casa do Galliard.
— Você ainda se lembra disso? — por algum motivo, eu me senti feliz por saber que ela ainda se lembrava de algo assim.
— É claro! Você tava lá toda caladona e séria, nem parecia a mesma pessoa — o semblante alegre de Saki cobria todo o seu rosto enquanto falava.
— Sério? — perguntei surpresa — Eu não fazia ideia!
— O importante é que agora… — seu rosto se tornou vermelho como um tomate em segundos — Como é que eu digo isso… você parece até que brilha…
A cabeça de Saki exalava uma fumaça, ao mesmo tempo que ela desviava o olhar para o nada.
— E-Eu espero que brilhe bastante — eu respondi sem nem mesmo saber o que estava dizendo.
— É claro que é!
Naquele momento, enquanto falávamos coisas sem sentido, eu senti como se nós duas tivéssemos morrido por dentro e no fim, acabamos voltando para a tenda sem dizer uma única palavra.
O dia virou e eu ainda não havia dormido, apesar de ainda estar em recuperação, não conseguia descansar e assim passei a noite inteira em claro, lendo as anotações da minha mãe. Havia tanto conhecimento dentro de um pequeno caderno que eu não conseguia acreditar que tudo aquilo era real.
Pela manhã, Eco (como Galliard) entrou na tenda que me abrigava, fazendo mais uma vez o seu check-up diário.
— Tudo certo? — perguntei.
— Sim, continue suprimindo a mana nos membros superiores, o nervo óptico direito parece não rejeitar o “Selo”, mas não relaxe por conta disso.
— Selo?
— A assinatura de mana detectada se assemelha com o Selo de Yin, é algo extremamente complexo de ser estudado e analisado, então ainda não posso dar mais informações.
— Sigh… — eu suspirei angustiada.
— Não precisa se preocupar, apenas foque em sua recuperação, seu corpo ainda está cheio de eletricidade que precisa ser descarregada.
— Deve ser por isso que eu não consigo dormir…
Eco saiu rapidamente, voltando para a tenda principal em nosso acampamento. Assim que ele passou pela porta, Saki apareceu em seguida.
— A situação tá melhor do que imaginei — afirmou ao sentar-se ao meu lado.
— É, mas… quanto tempo será que isso vai durar?
— Pra quê essa pressa? É como Eco disse, foque em se recuperar, ninguém quer que se machuque de novo.
— Claro…
— Vem — Saki se levantou — tenho que te mostrar uma coisa.
Nós fomos até o outro lado da ilha, em uma área, onde a água do oceano preenchia um buraco enorme, que antes já havia sido uma grande parte de Raven.
— O que foi isso… — eu estava em choque, completamente perdida, sem ideia do que teria acontecido.
— Aquele desgraçado… ele disse, eu deveria encontrar uma tal de Lilith e devolver o que eu roubei. Ele disse que iria acabar com cada canto desse lugar caso eu não fosse, mas não acho que isso envolva apenas essa ilha.
Uma ameaça cruel e fria, digna de um demônio, naquele momento eu senti como se estivesse conversando com a pessoa que tinha o destino do mundo em suas mãos. O caos e a destruição estava por vir, mas a troco de quê?
— Ela quer algo de volta, mas… o que exatamente ela perdeu?
— Esse é o problema, eu não tenho ideia do que roubei — ao falar comigo, as palavras de Saki soavam mais como um desabafo — Sendo sincera, a cada segundo que eu passo nesse mundo, menos eu sei. Eu não sei o porquê de eu estar aqui, eu não sei o que é o meu poder, eu não sei como essas pessoas me conhecem e o pior de tudo é que… eu estou começando a duvidar do meu pai…
Como eu poderia compreender seus sentimentos? Mesmo sem saber de nada, era nítido que um fardo pesado estava sobre seus ombros.
— Saki… — eu respirei fundo, tomando coragem para falar — Eu vou te ajudar! Não importa o que seja — com o maior sorriso que pude dar.
— Hã? — mesmo confusa, ela riu.
— O-O que foi? Eu disse algo estranho? — a vergonha atingiu meu rosto com todas as forças.
— Você realmente é uma pessoa estranha! Hahahaha! — Erguendo o seu rosto para mim e voltando com sua expressão confiante, ela estendeu seu punho para mim — Nem vem com essa, eu já tinha dito isso primeiro! Se vai ser assim, não posso deixar de cumprir o que disse!
Ainda quando estávamos em Shryne, as palavras de Saki que ainda me marcavam ecoavam em minhas memórias. Ela foi a primeira pessoa que me ajudou e foi a primeira pessoa que disse que me ajudaria. Então, ao tocarmos nossos punhos, firmamos nossa promessa de ajudarmos uma à outra.
Enquanto nossos punhos se tocavam, o constrangimento voltou à tona.
— Caralho, você realmente brilha!
— É-É o quê! — eu tentava esconder meu rosto envergonhada a todo custo — para com essa conversa! — rindo.
— Tô falando sério!
Depois do tamanho constrangimento, voltamos para o acampamento, a noite já havia chegado e então, antes que o sono viesse com ela, peguei o livro de capa preta que recebi e o abri na segunda página, logo após a dedicatória. Eu comecei a lê-lo e descobri que existe um caminho que preciso percorrer, a “Jornada do Céu” o caminho para se tornar uma Bruxa Celestial, iniciando sua rota em Eryndor, um continente distante, dito no livro como “um lugar para se fortalecer e refinar suas capacidades”. Assim, meu próximo destino estava decidido.
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