Índice de Capítulo

    Ponto de Vista de Elena (19 anos atrás – 32 Anos)

    Após centenas de anos de guerra e mais quase uma década tentando reerguer todo o continente, enfim pude respirar por um momento. Deitada na grama, no topo de uma montanha em Shyrne e logo abaixo de uma árvore com flores de cerejeiras, eu apreciava o momento de paz que conquistamos.

    — Finalmente um descanso, não é? — Galliard se aproximou.

    — Por pouco tempo. Já, já vou ter que voltar ao trabalho.

    — Querida… ainda com essa ideia de uma escola de artes marciais?

    — Existem pessoas por aí piores do que eu. Com uma mana fraca, e dependem demais da magia.

    — Você fala isso como se não fosse uma das pessoas mais fortes do mundo — disse enquanto gargalhava.

    — Eu diria que atualmente estou no top 5. Não é suficiente.

    — Sabe que estamos em momentos de paz, não é? — sentou-se ao meu lado, deitando suas costas no chão — Não precisa se preocupar com esse tipo de coisa.

    — Aquele velho idiota já disse, expulsamos os demônios temporariamente, Lilith ainda não se enfureceu o suficiente.

    — Você é pessimista demais, mesmo que Lilith emerja das “profundezas do inferno”, juntos conseguiremos derrotá-la.

    — Você que é otimista demais! É justamente por isso que não posso ficar parada. Não podemos contar com as outras grandes capitais, sabe o quão podres algumas delas podem ser.

    — Antares que o diga…

    — Exatamente… — suspirei cansada — sem contar que, do jeito que estou agora, tudo que posso fazer é passar um legado adiante.

    — Um legado?

    Me levantei rapidamente, com um olhar inquietante, apoiei-me em meu joelho flexionado, olhando para o céu avermelhado do pôr do sol.

    — Acima do céu… Tudo é nosso.

    — Então… está em busca de um aprendiz?

    — Terei que deixar essa responsabilidade para outra pessoa. Farei o possível para que as estrelas sejam conquistadas pela pessoa certa. Alguém… louco o suficiente como ele.

    — Viollet terá outro filho… — respondeu despretensiosamente.

    — O quê? Já não bastava aquele moleque arrogante que ela achou no meio da estrada?

    — É, mas parece que dessa vez ela é quem vai dar à luz. Irônico, não?

    — Fala sério, com quem essa garota tá se envolvendo?

    — Vai saber. Ela consegue ser mais imprevisível que você.

    — Não enche…

    Pensar sobre o futuro fazia minha mente se inundar de dúvidas, ao menos, a brisa suave da montanha conseguia me acalmar enquanto ficava presa em meus devaneios.

    — E como estão os outros?

    — Elliot está ajudando as pessoas na Floresta dos Macacos, faz quase duas semanas que está morando lá com eles.

    — Não é lá que fica a maior base de pesquisas de Shryne? Por que você não foi?

    — Bom, alguém tem que cuidar da nossa casa, não é?

    — Hm…

    — Agora que Melissa se tornou rainha, quase não nos falamos, então é difícil saber o que ela tá fazendo.

    — Às vezes a vejo pela cidade — comentei — e agora ela é responsável por reerguer a capital e as cidades vizinhas, deve estar exausta.

    — Duvido muito, graças ao vigor quase infinito dela, conseguimos vencer a guerra sob sua liderança.

    — Ela é impecável em quase todos os aspectos, de fato, mas todo mundo tem um limite.

    — Ela vai ficar bem, tenho certeza — também se levantou, cruzando suas pernas — Por fim, o Sr. Nakamura enviou mais um espírito mensageiro.

    — Qual foi o da vez?

    — Um filhote de dragão da montanha.

    — Esse é novo. O que disse?

    — Vai nos enviar uma criança.

    — Como é? — berrei surpresa.

    — Parece que nossas vidas ficarão agitadas! Hahahahaha!

    — Nem vem! Eu não vou ser babá de ninguém!

    Puta da vida, deitei novamente, esperando o vento me acalmar.

    — Bem, vou deixar você descansar — Galliard se levantou, pronto para ir — Jantar pronto às 20:00, beleza?

    — Estarei lá.

    Aproveitando a calmaria da montanha, com a brisa suave cantando sob a árvore, eu dormi tranquila, pela primeira vez em anos.

    — Elena? — vozes conhecidas ecoavam em minha mente.

    — Elena! Elena!

    Ponto de Vista de Elena (Presente):

    — EEEELEEENAAAA! — reconheci a voz da minha aprendiz.

    — Ela não quer acordar…

    — Pois é, até monstros como ela dormem de vez em quando.

    Eu abria meus olhos lentamente.

    — Ah! Ela acordou! — o garoto exclamou.

    — Bom dia, flor do dia! — Saki deu com um sorriso debochado.

    — O que você quer?

    — Credo, essa é a primeira coisa que você me diz depois de dois anos?

    Ponto de Vista de Saki:

    Em sua casa, bem no meio da sala de estar, com decorações rústicas e entalhadas com madeira, Elena dormia estranhamente tranquila. O ambiente me trazia uma sensação nostálgica, que me lembrava dos poucos, porém bons momentos que passei naquele lugar. Mesmo já tendo toda a imagem gravada na mente, apenas o fato da minha mestra estar ali, já me causava estranheza. Não sabíamos que uma besta demoníaca como aquela poderia descansar tão pacificamente.

    — É raro ver a senhora fora do dojo! — afirmou Noelle.

    — Não me chame de senhora…

    — É isso mesmo, Noelle — estufei o peito, defendendo minha mestra — o mais adequado é velha! Se preferir, também pode chamar de múmia- 

    De repente, meu mundo ficou de ponta cabeça. Noelle e Akira ficaram distantes, com um sorriso divertido no rosto.

    — Você fala demais…

    — E você não mudou nada! — respondi enquanto me levantava no buraco que fiz na parede.

    — Pelo menos seus reflexos estão em dia — disse ao ver meus punhos vermelhos — mas o que é isso? A Manipulação do Caos não deveria brilhar assim…

    — Ah! Isso? Pelo que entendi, meu corpo modifica a magia elemental que recebo e a transforma dentro de mim. O problema é que não consigo controlar seus efeitos.

    — Espera — Noelle interrompeu — o que quis dizer com Manipulação do Caos?

    — Exatamente o que disse — Elena olhava para um relógio digital acima de uma estante e suspirou cansada — perguntem ao Galliard, ele vai responder tudo o que quiserem, agora tenho mais o que fazer.

    — Foi ele que nos mandou aqui! — respondeu Akira.

    — Então diga que eu os mandei de volta! — nos olhando com seus olhos enfurecidos e flamejantes.

    — Tá-Tá legal! — o coitado se tremeu inteiro.

    — Vê se não esquece de mostrar tudo pra ele, pirralha.

    — Vai na sombra, coisa ruim!

    — Cara… — Akira, ainda tremendo — essa mulher é um demônio…

    — Você se acostuma.

    Deixando de lado nossa calorosa recepção, fomos até o laboratório de Galliard, em uma pequena casa escondida no pé da Grande Montanha de Cerejeira. 1

    Chegando lá, contamos a ele exatamente tudo o que havia acontecido desde que partimos.

    — Isso não é bom — disse em um suspiro angustiante — perder o Enchiridion foi um erro grave…

    — Ele reagiu mais calmo do que eu esperava — comentou o meu amigo.

    — Não se deixe enganar, garoto — Galliard o respondeu com uma veia pulsando em sua testa — eu nunca estive tão desesperado como agora.

    Já exausto, encostou seu quadril em uma mesa, apoiando suas mãos trêmulas ao seu lado.

    — Sinto muito, Sr. Galliard. Eu protegi o livro com uma armadilha, mas não foi o bastante! — Noelle se envergonhava de seu fracasso.

    — Não, não foi culpa sua. Provavelmente as runas que gravou no Enchiridion foram transferidas para outro objeto — esfregando seus olhos cansados, continuou — sem contar que a ladra que encontraram na floresta foi capaz de desfazer as “Correntes do Decaimento” sem usar gestos ou runas. Com toda certeza, estamos lidando com indivíduos insanamente habilidosos.

    — Espera, mas isso é possível? Tipo, transferir runas ou selos de um lugar para o outro?

    — Não deveria, mas sim, é possível.

    — Nunca ouvi nada desse tipo — interrompi — em Antares, por conta da minha posição, eu escutava todo tipo de coisa pelos corredores, mas ninguém nunca cogitou essa hipótese.

    — De todas as pessoas que conheci durante meus 50 anos de vida, apenas uma delas seria capaz de fazer isso.

    Galliard respirou fundo, e mesmo escondendo o nervosismo, sua preocupação era nítida.

    — Ah… — resmungou — eu nunca esperei tanto estar errado, mas com tudo que vocês me disseram, aquele quem deve estar com o Enchiridion nesse exato momento, é um velho conhecido, Ego.

    — EGO? — gritei surpresa.

    — O que foi? O conhecem?

    — Se tá falando do cara que parece uma cobra pálida de olhos vermelhos, sim, nós conhecemos!

    — Foi ele quem nos levou até a capital Antares — Noelle completou.

    — Tsc! Então era dele que estavam falando… Que problemão…

    — Ele bem que parecia estranho, mas no fim nos ajudou.

    — Não se enganem — levantando rapidamente, se dirigiu a uma pequena escotilha no teto, um pouco atrás de onde estava a mesa em que estava apoiado.

    — Isso já tava aí? — perguntei.

    — Independente das ações de Ego, ele sempre irá se beneficiar — puxando a escotilha para baixo.

    Imediatamente, acoplada à escotilha, um grande recipiente desceu juntamente a ela. O recipiente continha um líquido transparente e viscoso, e continha dentro de si, um corpo magro e cadavérico, de cabelos loiros secos como palha.

    — Isso é — Noelle expressava sua surpresa com olhos arregalados.

    — Fiquei surpreso quando encontrei isso em Raven.

    — Não vimos esse cara quando entramos na simulação do Galliard? — comentei com minha amiga.

    — E em Raven também…

    — Sério? — sinceramente não entendia o que ela estava falando.

    — Encontramos ele na ilha antes que pudesse me juntar a vocês contra Samaell, mas pra ser sincera, sua aparência ainda me dá calafrios.

    — Foi apenas uma coincidência, mas a chance de Ego também estar envolvido nisso é grande.

    — Você parece conhecer ele muito bem — apontei, tendo em vista aos suspiros decepcionantes que Galliard soltava periodicamente.

    — Ah… — mais uma vez descontente — não me orgulho disso, mas é inegável que já trabalhamos juntos em Raven.

    — COMO É? — gritei juntamente a minha amiga. Akira foi o único que não havia expressado nada além de uma leve curiosidade.

    — Ego era um dos bruxos mais promissores da história, até ser exilado por criar e praticar inúmeros feitiços proibidos — Galliard respirou fundo, mostrando seu extremo desconforto ao tocar no assunto — Eu estudei o corpo dele — passando sua mão pelo recipiente — e não há dúvidas de que Ego está envolvido nisso.

    — Mas o que ele iria querer lá? Raven está completamente destruída, não havia mais nada lá! — Exclamou Noelle.

    — Não — interrompi — tinha algo no subsolo, abaixo da igreja. Era uma esfera esquisita, isolada pela terra ao redor.

    — O Fulgor do Confinamento.

    — Esse é o nome dele?

    — Sim, é um selo extremamente poderoso por dentro, porém frágil por fora. Viollet foi a única que conseguiu masterizar o feitiço, talvez tenha sido para aquele momento.

    — Ainda não faz sentido, o que isso tem a ver com o Ego e o Enchiridion? Além do que, encontramos ele do outro lado do oceano, não tem como ele ter viajado tão rápido.

    — É possível que ele tenha um encurtador assim como a gente? — Akira indagou.

    — Improvável. Como disse, ele foi exilado, é impossível que consiga entrar em Raven novamente, sem contar que a névoa negra o mataria — respondeu inquieto, vagando de um lado para o outro — Era pra isso que servia o cadáver, não tem como matá-lo. O mesmo deve ter sido programado para fazer algo em Raven. Libertar Samaell? Roubar artefatos? São tantas variáveis possíveis, não tem como saber qual é a certa quando se trata desse cara! No fim ele vai sair por cima e sabe lá o que ele pode fazer com o Enchiridion em mãos! O livro continua selado, mas quanto tempo precisa para ele descobrir como abri-lo? Anos? Meses? Talvez horas?

    — Ele tá enlouquecendo — eu ficava chocada com o seu desespero.

    — Ainda não retirei o selo base do livro, por mais que eu saiba como fazê-lo, a execução é extremamente difícil. A única forma dele descobrir como abrir seria lendo as anotações de Viollet que estão comigo. Também protegi o livro com uma armadilha e um novo selo por cima, mas ele já deve ter conseguido retirar o selo assim como fez com a armadilha. Se passaram mais ou menos dois meses desde que saímos de Antares, a essa altura é possível que o livro já tenha sido aberto… — Noelle não estava tão diferente quanto seu mestre.

    Ambos transitavam pelo laboratório, exalando fumaça sobre suas cabeças prestes a fritar.

    — Parece que somos os únicos normais aqui — virei-me para o único que ainda não havia perdido a cabeça.

    — Você com certeza não é normal — respondeu ironicamente.

    — … — o silêncio perpetuou por um segundo — você quer morrer é?

    Nós esperamos por longos minutos, vendo o desespero dos bruxos com tamanha problemática.

    — Você já falou da sua magia? — recordou Akira.

    — É mesmo, ainda tem isso — assim que pensei em contar para Galliard, lembrei de seu estado mental — é melhor deixar pra depois.

    Eles continuaram por vários minutos ininterruptos. Para passar o tempo, comecei a dar voltas pelo laboratório, até parar em uma janela e observar o movimento nas ruas da capital Shryne. Estranhamente, as ruas estavam praticamente vazias. Havia vários policiais espalhados pela cidade, todos pareciam muito apressados, como se algo os incomodasse. Aquilo ficou em minha mente, afinal, nunca tinha visto um único momento onde o som dos meus pensamentos estivessem mais altos que o barulho da cidade.

    1. A montanha onde o Dojo da Elena foi construída[]

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota