Índice de Capítulo

    A noite caiu sobre Tóquio. Era para ser apenas uma noite normal, como todas as outras — e era, até certo ponto. 

    A lua, visível no céu, com algumas nuvens negras cobrindo-a parcialmente, carregavam consigo uma estranheza, um peso desconhecido, como se estivesse antecipando uma tragédia ou um caos irreversível. 

    O mesmo podia-se dizer de uma caverna nas profundezas de uma das florestas dos arredores de Tóquio, um lugar onde a movimentação de pessoas podia claramente ser definida como suspeita em qualquer horário. 

    No fundo dessa caverna, centenas de velas pretas com chamas vermelhas tremulantes estavam em volta de uma criatura pálida, grotesca, que faria parte dos pesadelos de muitas pessoas. Ao redor das velas, pessoas vestindo mantos negros cobrindo todo o corpo da cabeça aos pés. 

    A primeira vista, ficava óbvio que faziam parte de alguma seita e ver como eles estavam reunidos e proferindo palavras inaudíveis que ecoavam pela caverna escura como sussurros, era seguro afirmar que estavam no meio de um ritual macabro.

    Alguns deles seguravam espadas ritualísticas, enquanto outros carregavam incensos contendo enxofre. Seu cheiro impregnava por toda a caverna, que já era úmida e fedia a mofo. Essa junção deixava uma atmosfera tenebrosa e arrepiante, como se aquele fosse um lugar dominado por tudo o que é mal e aterrorizante; um lugar onde cada centímetro era pavoroso. 

    Akagi sentia isso, embora mais levemente que o homem ao seu lado, que sentia calafrios constantes por todo o seu corpo. Eles estavam em uma parte mais elevada da caverna, assistindo ao progresso do culto às forças malignas. 

    O som de um tambor taiko ecoava em um ritmo lento e hipnótico, como se parasse a passagem do tempo e completasse as preces dos fieis, convocando uma força que não deveria ser chamada. 

    Mas esse era o trabalho deles. Como uma seita voltada para isso, eles estavam dispostos a convocar o que quer que estivesse ao seu alcance. 

    O motivo? Não precisava de um. Era como um hobby para os alucinados da Tengoku no Mon, um grupo secreto que conduzia rituais antigos em busca de forças que eles achavam ser as que os ficariam para algum lugar. 

    A cada segundo, o ar ficava mais denso, as vozes ficavam mais altas e o som do tambor batia em um ritmo mais frenético, anunciando que o ritual estava chegando ao seu ponto máximo.

    Vindo de algum lugar das profundezas, um vento misterioso soprou, e todas as velas foram apagadas num segundo. A escuridão tomou conta da caverna. Aquela pressão ficou muito mais forte como se dissesse “eu estou aqui.”

    De repente, talvez por forças malignas, mas velas reacenderam de uma única vez, e o que veio a seguir foi totalmente macabro: sem aviso prévio, todos os que carregavam a espada ritualística estavam caídos, com as espadas encravadas em seus pescoços. 

    Poças de sangue se formaram imediatamente e ninguém parecia ligar. Afinal, aquilo fazia parte do ritual e os que caíram não passavam de sacrifícios. 

    O som do tambor agora ressoava com mais força, assim como os sussurros medonhos, que pareciam clamar para alguma coisa. 

    Movido por algo sobrenatural, o sangue dos caídos se dispersou e começou a traçar um linha em volta das velas, rodeando o corpo do monstro pálido e irradiando uma luz carmesim, enquanto faziam desenhos estranhos e profanos. 

    Completando o círculo, o sangue começou a subir pelo corpo do monstro, tingindo-o de vermelho e penetrando sua pele como vermes famintos, abrindo passagem ferozmente. 

    O monstro despertou imediatamente e começou a urrar, como se centenas de vozes gritassem em agonia. Ele se debatia, tentando quebrar as correntes e sair daquele tormento, mas em vão. 

    Uma névoa negra e densa apagou as velas outra vez, mas os urros excruciantes continuaram na escuridão, chegando a abalar a caverna.

    Feridas horríveis surgiram no corpo do monstro, depois que o sangue penetrou totalmente sua pele, e depois de agonizar por vários minutos ele caiu por terra, totalmente em silêncio, tendo alguns leves espasmos. 

    O que restava dele foi substituído por algo ainda pior, mas ninguém percebeu, até que, num piscar de olhos, o monstro se levantou e, na escuridão, trucidou todos os fieis da Tengoku no Mon que estavam ali, devorando-os brutalmente, um por um. 

    Eles tentaram fugir. Levantaram sua voz em desespero, mas não tiveram sequer a chance de escalar; os dentes afiados e as garras monstruosas os alcançaram sem piedade. 

    O subordinado de Akagi caiu para trás, seu corpo completamente tomado pelo pavor, seus olhos tremendo freneticamente. 

    Akagi, por outro lado, começou a sorrir de forma doentia, enquanto observava aquele show de horrores ocorrendo bem na sua frente. 

    Os gritos desesperados, sons de ossos quebrando e carne sendo rasgada não o comoviam nem um pouco. 

    Cerca de trinta segundos se passaram e todos os fieis que estavam reunidos foram completamente despedaçados, deixando apenas uma enorme poça de sangue e restos mortais. 

    Depois de mais alguns segundos de silêncio, Akagi sorriu, eufórico, depois abriu sua boca em uma risada histérica, que ecoou tanto quanto os urros do monstro. 

    “Se-senhor?”

    O homem, ainda no chão, tentando voltar a si, olhou-o com um rosto apreensivo e assustado. 

    “Contate imediatamente a base. Vamos começar uma caçada. Não faço ideia do que possuiu aquela coisa, mas eu tenho certeza que vi um demônio sedento por sangue naqueles olhos.”

    “Um demônio, senhor…?” 

    O homem ainda sentia seu corpo arrepiar só de imaginar o que viu durante aquele tempo. Akagi com certeza tinha visto o mesmo que ele, mas como a opinião de duas pessoas podia ser tão diferente? Como Akagi conseguia sentir tanta euforia depois de tudo aquilo, que parecia ter sido tirado de um conto de horror?

    Eles não estavam vivos por não terem sido vistos. Eles foram percebidos pelo demônio, como Akagi disse. E naquela fração de segundo, que pareceu durar uma eternidade, ele pôde ver o caos e as trevas vagando naquele monstro. 

    “Talvez seja até pior que um. Anda. Eu tenho uma reunião importante daqui algumas horas. Quero estrear minha arma lá.”

    Akagi seguiu para fora da caverna, deixando seu subordinado para trás, que, relutante e apavorado, correu atrás dele, temendo até mesmo sua própria sombra. 

    “Ma-mas como vamos encontrá-lo? Essa floresta é muito grande…”

    “Idiota! Mesmo depois de ter visto tudo isso ainda pergunta? É óbvio que ele vai atrás de mais sangue e carnificina.”

    E o lugar mais próximo… era Tóquio. 

    ****

    Assim como o esperado, a criatura vagou faminta pelas árvores, correndo sob quatro patas, como se perseguisse uma presa há quilômetros de distância. Sua fome por carne humana era palpável. 

    Seu corpo enorme fora capaz de derrubar várias árvores que estavam em seu caminho, e ele prosseguiu como um lobo enfurecido, atravessando o Parque Nacional Nikko na direção de Adachi como se fosse um trajeto diário — eram mais de cem quilômetros entre ele e a cidade em questão. 

    Devido à possessão, seu corpo sofreu mudanças drásticas, como longos cabelos que cobriam parte de seu rosto, vários de seus ossos estavam expostos e um cheiro de carne podre emanava dele. Além disso, dois cornos projetavam-se de seu crânio para frente, como lanças prontas para perfurar o ar. 

    Em sua face dava para ver um misto de fúria e dor refletidos em seus olhos verdes que brilhavam de forma assustadora. Seus passos faziam seus ossos estalarem e o gemido de sua garganta parecia estar remoendo seu sofrimento constante. 

    Com uma velocidade anormal, ele alcançou a cidade em menos de duas horas e não hesitou em buscar pela vítima mais próxima. 

    Então, sem nenhuma hesitação, ele saltou sob um telhado qualquer, fazendo um barulho intenso e alto. Isso acabou despertando os moradores da residência, que, ao saírem para verificar, foram tragados sem piedade pelo monstro. Uma trilha de sangue foi deixada naquele lugar, onde uma família vivia até minutos atrás. 

    Porém, apesar disso, a fome do monstro ainda não estava saciada; ele saiu em busca de mais e mais. Isso, talvez, fosse influência daquilo que o possuiu. Yomotsu-Shikome, um youkai que refletia morte e decadência. Então ele seguiu seu trajeto, enquanto saboreava a carne das pessoas em seu caminho.

    Naquela madrugada, em um intervalo de duas horas e meia, já não dava para saber quantas pessoas tinham sido destroçadas e devoradas, e esse número só aumentaria se alguma força não tivesse intervido: os caçadores enviados por Akagi, que habilmente chamaram a atenção do monstro. 

    Com a ajuda de um rastreador implantado no corpo da besta antes do ritual, eles foram capazes de monitorar seus movimentos e perseguí-lo facilmente, já que o monstro parava para atacar alguma vítima, dando-lhes tempo para alcançá-lo, já na região de Adachi, em uma área residencial. 

    Com os corpos tensos e olhos trêmulos, eles prepararam suas armas para agir imediatamente, cientes do perigo oferecido pelo monstro. 

    Apesar de estarem com um pé atrás e prontos para fugirem a qualquer momento, ele agiram com profissionalismo e rapidamente contiveram o monstro com correntes e lâminas. Até porque o perigo que eles enfrentariam se deixassem o monstro escapar seria pior.

    Eram seis. Dois chamaram a atenção dele e os outros quatro deslizaram e saltaram por ele, envolvendo-o em correntes e prendendo-o, cada um posicionado em um ponto cardinal, segurando as grossas correntes com toda a força. 

    As correntes de Inconel estavam esticadas ao máximo, rangendo sob a tensão extrema, parecia que elas iriam se romper a qualquer momento. 

    A besta rugiu tão alto que fez os ouvidos dos caçadores zunirem. Um deles, com os dentes cerrados e os músculos visivelmente tensos gritava ordens para seus companheiros não perderem as posições, enquanto o monstro lutava com uma força descomunal. 

    Nenhum dos lados queria ceder. Os pés dos caçadores estavam tão firmes, que quebraram o chão quando o monstro fez um movimento brusco para se soltar. Até que, num golpe de azar, as correntes finalmente cederam. 

    Os caçadores foram arremessados com o impacto das correntes que os atingiram ao se romperem, batendo contra as paredes próximas e destruindo-as, assim como alguns de seus ossos — alguns desmaiaram imediatamente, enquanto outros ficaram com apenas resquícios de suas consciências. 

    “GROOOAARHH!!!”

    O monstro, agora liberto, berrou, fazendo o chão tremer. Os dois caçadores que estavam de pé estavam suando frio, paralisados. Um deles caiu de joelhos. No começo, pensou que teriam uma chance, porém, isso mudou e toda a esperança que existia se desvaneceu como neblina. 

    Hesitaram em aceitar o fim, mas não conseguiram fazer um único movimento de resistência. Eles seriam devorados.

    O monstro avançou. Prestes a serem estraçalhados, suas mentes entraram em choque. 

    A criatura saltou furiosa sobre eles, abrindo sua bocarra e exalando um odor podre de carne em decomposição. No entanto, antes que pudesse tragá-los em uma só mordida, uma espada gigante rasgou o ar e por pouco não acertou a besta, que saltou para trás ao perceber o perigo. 

    Mas ela não estava segura. Uma nova lâmina encurtou rapidamente a distância entre elas e arrancou um de seus braços antes que ela percebesse. 

    “GROOOAARHH!”

    Ela urrou ferozmente para seus agressores, posicionados a poucos metros dela. Eram cinco e estavam todos preparados para continuar o combate. 

    Diferente dos caçadores de antes, aquele grupo não parecia hesitante em atacá-la. 

    Perder um braço a fez perceber que não era o único perigo ali. Isso não significava que ela iria parar; pelo contrário, seus instintos estavam pulsando por carne. Ela só queria mais e mais. 

    O braço perdido se regenerou à custa de um pouco de sua energia. 

    Preparando-se para uma investida, ela encolheu as pernas e com um tranco furioso, começou a correr na direção deles. Chegando perto ela saltou e estendeu suas garras para tragar o alvo mais perto. No entanto, antes que ela fizesse isso, Millicent rapidamente se esquivou, jogando o corpo para trás agilmente. 

    Os chifres perfuraram o chão, abrindo duas crateras enormes.

    Se isso os atingisse, teriam de dar adeus às suas vidas imediatamente. 

    Os cinco, atentos aos movimentos do inimigo, se dispersaram e se posicionaram ao redor do monstro. Apenas olhar para ele os fez estremecer. Aquela aparência grotesca e assustadora, olhos que pareciam enxergar a alma, além de um som quase inaudível que parecia penetrar diretamente o cérebro. Não tinha como não ser paralisado por aquilo. 

    Sem contar que…

    “Credo! Que coisa grotesca… Que cheiro ruim—”

    Shidou tapou a boca, sentindo um refluxo devido ao cheiro forte de carne podre. Os outros também estavam na mesma situação. 

    “Aguenta aí, cara. Se ficar parado vai morrer, com certeza.”

    “Falar é mais fácil do que parece.”

    Suzuki, no entanto, estava com uma máscara de proteção, então ele era o que menos sentia aquele odor extremamente horrível. 

    “Tá, tá. Vamos focar aqui, vocês dois. O que vamos fazer, senhor Olhos azuis?”

    “Por enquanto”, respondeu, “tentem sobreviver.”

    Mayck mal terminou de falar e a criatura urrou novamente, dando sinais de atacar novamente. 

    “É sério isso…?”

    Edgar não conseguia acreditar que aquele seria o único objetivo do momento. 

    De uma forma ou de outra, todos começaram a se mover imediatamente. O monstro, com seus quase três metros de altura, continuou a atacar furiosamente com suas garras afiadas, as quais rasgavam o asfalto e os muros como papel. 

    Todos estavam se esforçando para contra atacar com suas armas e habilidades, mas não conseguiam superar o efeito de regeneração do monstro. Não importava quanto eles cortassem, o que havia sido perdido retornava quase instantaneamente. 

    Porém, por algum motivo, o monstro ficava mais lento. Seria devido à regeneração? Mayck pensou sobre isso. Talvez houvesse um custo grande para se regenerar tão perfeitamente. 

    Enquanto ele refletia sobre isso, seus companheiros também ficavam mais cansados a cada minuto, fugindo como pássaros ao ouvir um som estrondoso na floresta. 

    “Tá bom! Quando é que isso vai acabar?! Desse jeito quem vai morrer somos nós!” Shidou estava ofegante, mas não conseguia parar para respirar, pois ataques de garras gigantes vinham um atrás do outro. 

    “É, M-san! Você pode matar esse monstro a qualquer momento, não é?!”

    “…”

    Mayck não respondeu, sua atenção estava totalmente na criatura. O que ele planejava fazer era um mistério para todos os outros. 

    Mas não era bem assim. Não era como se ele não quisesse acabar com aquilo o quanto antes; muito pelo contrário, sendo um Ninkai, sua arma só precisava fatiá-lo, mas o garoto tinha um motivo para mantê-lo por tanto tempo. 

    Havia algo de errado com aquela criatura. 

    Isso não se devia ao fato de ele parecer mais consciente que outros Ninkais quando atacava ou desviava, usando movimentos calculados e precisos, mas, sim, porque a aura que ele emitia estava cada vez menos densa o que tornava tudo mais intrigante. 

    Quando chegamos aqui… ele parecia muito mais assustador. Mas agora ele parece ser apenas um Ninkai da classe Pesadelo. O que está acontecendo? 

    Poderia ser que eles apenas tivessem se acostumado a enfrentá-los, mas não parecia ser esse o caso. 

    O Ninkai avançou contra ele, mirando com seu chifres, mas Mayck saltou agilmente para trás. 

    Seus olhos se encontraram em um momento. 

    Além disso… os movimentos que ele está fazendo é como se quisesse nos despistar…

    Uma ideia surgiu em sua mente e ele acabou arregalando os olhos. 

    Enquanto todos estavam atacando o monstro, que revidava com toda a sua força, Mayck gritou:

    “Todos, recuem!”

    Imediatamente, seus colegas pararam os golpes que estavam desferindo contra o monstro e se afastaram rapidamente. Mayck também fez isso, abrindo passagem para a criatura, que não hesitou em correr por ela depois de urrar com força. 

    “O que é isso?!”

    “Por que parou a gente?!”

    Os quatro estavam perplexos com a mudança de decisão do garoto e não hesitaram em questioná-lo.

    “Qual é o seu problema, idiota?!”

    Até aquele momento, não dava para saber se Mayck queria matar a coisa ou usá-la.

    Apesar dos pesares, ninguém hesitou. Um segundo parado e aquelas garras cobertas de sangue rasgaram seus corpos assim como fez com o solo abaixo deles. 

    Os cinco saltaram para as casas ao redor, colocando-se no telhado. O monstro imediatamente começou a correr, vendo seu caminho livre. 

    “Não viemos aqui para matar essa aberração?! O que foi isso agora?!”

    Millicent reclamou em alto e bom som, pondo a dúvida de todos os outros em palavras. 

    Mayck estava olhando fixamente para a direção que o monstro seguiu, e então falou:

    “Nada demais… Eu só pensei em uma coisa. Vamos atrás dele.”

    “Huh?!”

    “Ei, espera aí!”

    Os gritos de Shidou e Suzuki não chegaram a Mayck, que saiu correndo logo após o Ninkai. Sem escolha, os demais bufaram e seguiram logo atrás. 

    Mayck não estava fazendo tudo isso à toa. À primeira vista, pareciam ser apenas decisões aleatórias e irracionais, mas havia um motivo. 

    Edgar, correndo, se aproximou dele. 

    “Ei! Pra que isso tudo?”

    “Vocês não perceberam?”

    “O quê?” Ele franziu o cenho. 

    Os outros três também mostraram uma expressão confusa, perguntando-se do que Mayck estava falando. 

    Então, com os olhos ainda travados no monstro que saía pulando e correndo pelas casas e rua, ele disse, num tom sério:

    “Quando atacamos ele, tinha uma sede de sangue genuína em seus olhos. Mas, de repente, ele começou a ficar mais hesitante, como se estivesse com medo ou com pressa.”

    “E isso significa o quê, exatamente?”

    “Melhor, como você percebeu uma coisa dessas? Vai falar que é instinto?”

    Shidou e Suzuki provocaram, mas só receberam silêncio em resposta. Nem mesmo Millicent havia retrucado, isso porquê ela havia percebido essa sutil mudança no monstro e se perguntava a mesma coisa.

    “Ele parecia querer fugir. Até mesmo agora está indo para algum lugar, e isso não me parece apenas coincidência.”

    Era como se o monstro tivesse um destino em mente. Mas como isso seria possível para uma criatura irracional recém criada? Mayck lembrou do que Hina descobriu há um tempo sobre o soro: ele era capaz de causar mudanças drásticas no corpo, organismo e DNA de um ser vivo. 

    Em suma, aquele monstro, anteriormente, foi um ser humano. 

    Mesmo que pouca, ainda parece haver um pouco de consciência humana nele. Mas para onde está indo?

    Era quase uma aposta o que estava fazendo. Deixar o monstro seguir em frente apenas para descobrir do que ele estava atrás era muito arriscado. Poderia acabar fazendo mais vítimas no trajeto, mas Mayck estava disposto a correr esse risco. 

    Eles continuaram a perseguição por mais algum tempo, até que chegaram a uma zona residencial que Mayck conhecia bem. Não tanto quanto ele conhecia o lugar onde morava, mas conhecia. 

    Aqui é…

    Antes que ele completasse sua linha de raciocínio, o monstro percebeu a presença dos cinco e os atacou mais furiosamente que antes, urrando e erguendo suas garras que rasgavam o ar. 

    “Opa!”

    Eles recuaram. Estavam de pé diante da criatura, que se pôs em posição de ataque. 

    Millicent ergueu sua espada. 

    “E aí? O que fazemos agora?”

    “Descobriu o que queria M-san?”

    Mayck aguardou em silêncio por mais alguns segundos. O monstro não estava fazendo mais nada além de manter sua guarda alta para qualquer movimento brusco deles. Mas, além disso, tinha algo mais. Ele parecia estar protegendo alguma coisa. 

    O monstro urrou para eles, como se dissesse “fique longe”, em posição de ameaça.

    Seus olhos verdes reluzentes pareciam esconder alguma coisa. Sem dúvidas, aquele era o segundo monstro mais expressivo que Mayck já encontrou, apesar da aparência grotesca. 

    “Vamos fazer um teste, tentem se aproximar”, disse Mayck. 

    Embora desconfiados, eles fizeram isso e como resultado quase foram trucidados pela criatura que se recusava a deixá-los passar. Em seguida, como segundo teste, Mayck tentou fazê-la recuar com um <Canhão de eletricidade>. 

    Para a surpresa de todos, ela recebeu o ataque diretamente, sem se mover um centímetro dali. 

    Como eu pensei…

    Sua teoria foi confirmada. O monstro estava protegendo uma residência específica, a qual tinha “Goto” escrito na plaquinha. 

    Ei, ei… nem brinca com uma coisa dessas, ele pensou. Uma preocupação subiu a sua cabeça. 

    O monstro urrou com todas as suas forças. As feridas causadas pelo ataque de Mayck estavam sendo regeneradas rapidamente e ele já estava pronto para o combate mais uma vez, então avançou contra eles. 

    Suas garras se ergueram no ar e deslizaram rapidamente, deixando traços de plasma para trás, que atravessaram a rua como balas. Os golpes não cessaram por aí, ele continuou atacando e avançando agressivamente, e se um deles tentava se aproximar da residência ele recuava imediatamente. 

    “Essa porra tem habilidades de longa distância agora? Puta que pariu!”

    Shidou apontou sua arma para o monstro na tentativa de disparar, mas teve que interromper seu ataque para desviar de mais uma chuva de plasma que vinha das garras. 

    “Aguentem só mais um pouco. Eu vou pará-lo logo. Só preciso me aproximar.”

    “Então faça isso logo! A gente só tá nisso porque você não nos deixa matar ele. O que ele tem de tão especial assim, hein?”

    A Golden Society era um grupo poderoso. Mesmo um monstro como aquele não era um problema tão grande. Porém, eles estavam à mercê das ordens de Mayck, mesmo que odiassem isso, e a ordem foi de não matarem o monstro. 

    Mas estava perto de acabar, Mayck já tinha adquirido informações o suficiente. Dando mais uma ordem de recuou, diminuiu a distância entre ele e o monstro em uma fração de segundos. A garra do monstro também foi rápida o suficiente para chegar a poucos centímetros de seu rosto, mas parou por aí. 

    <Manipulação de alma> estava ativa.

    Eu já fiz isso uma vez, então devo conseguir novamente… Assim como fiz com Lorena, vou tentar ver a alma desse monstro.

    Em voz baixa, ele ativou <Moonlight Nightmare> e todo o espaço ao seu redor ficou distorcido. 

    Era uma paisagem cinzenta, cheia de árvores mortas, uma névoa negra na altura das pernas cobria todo o chão. Havia também uma luz desvanecendo no céu. Um mundo completamente sem cor. 

    Então essa é a forma de sua alma? Por outro lado…

    Mayck virou-se. Como se fosse uma separação bruta de espaços, do outro lado, havia uma paisagem caótica, vermelha, dominada por sangue e blasfêmia, um lugar profano, cuja vegetação e restos mortais pareciam curvar-se ao ser assentado sobre um trono feito também de restos mortais. 

    O espaço cinzento estava prestes a ser engolido pelo vermelho. 

    “Essa aparência… isso é um youkai, certo? Então invocaram essa coisa para dentro de você”, afirmou Mayck, para o homem de joelhos ao seu lado, enquanto olhava para aquela forma humanoide com cabelos longos que cobriam a maior parte do seu rosto grotesco.

    Os olhos sem brilho do homem encaravam aquela névoa negra. Não restava mais nenhuma esperança em seu ser.

    “Eu perdi… a mulher da minha vida”, disse ele, com uma voz falha.

    “Deve ter sido doloroso.”

    “Quero proteger… minha garotinha… não posso deixá-la para trás… Eu…!”

    Ele levantou os olhos encharcados. A vegetação cinzenta parecia decair cada vez mais, já que era o reflexo da amargura de sua alma. 

    “… Não quero perder minha filha… Mas eu não posso mais ser o pai dela. Eu me transformei num monstro… Aquela coisa me obrigou a matar muita gente… não posso encará-la assim.”

    “É, eu sei.” Mayck tocou o ombro do homem. “Eu vou te livrar de parte dessa dor. Então me prometa uma coisa: Você vai lutar para proteger sua família.”

    “Mas, como posso fazer uma coisa dessas? Minhas mãos estão cobertas de sangue inocente… Não resta mais nada pra mim… Eu não passo de um monstro agora…”

    “Mesmo assim você está aqui, arriscando sua vida para proteger alguém. Isso não é algo bom por si só? Eu não sou a melhor pessoa para falar de redenção. Também derrubei muitas pessoas até aqui, mas eu não posso perder de vista o que importa de verdade.”

    “O que importa…”

    “Você não merecia isso. Nem você nem sua esposa. A culpa não é sua por ter perdido ela. O único culpado é aquele que fez isso com vocês.”

    “Ele é o único culpado…”

    “E então? Dessa forma, o que você pode fazer?”

    “O que eu posso fazer… Eu tenho poder… eu preciso vingar a minha esposa… preciso proteger minha filha.”

    A névoa negra começou a se dissipar e o homem se levantou. Seus olhos recuperaram o brilho, a vegetação cinzenta começou a tomar uma forma mais concreta. Não perdeu sua cor, mas ficou mais aquecida. 

    “Isso é tudo o que você pode fazer agora, mas eu vou te ajudar.”

    Dizendo isso, Mayck deu um passo em direção ao plano vermelho. Instantaneamente, todos aqueles restos mortais se fundiram, tomando formas macabras, e o atacaram ao comando do monstro sentado sobre o trono. 

    Mayck não se moveu, mas inúmeros canhões se projetaram um atrás do outro, destruindo tudo o que vinha até ele. Parecia que nunca iria acabar. O monstro, vendo que não conseguia resultados satisfatórios, se levantou, emitindo um som estridente. Ele parecia irritado. 

    Saltou do trono e pegou uma coluna vertebral no chão, balançou ela e a usou como chicote. Mas suas tentativas de atingir Mayck eram inúteis. O garoto se esquivava como se estivesse se teletransportando. 

    “Você já brincou muito até aqui. É hora de parar.”

    O monstro berrou. Os restos mortais se encaminharam para ele e agora se fundiram a ele, transformando-o em uma criatura muito maior e mais grotesca. Pedaços de carne saíram de seu corpo como tentáculos e tentaram agarrar Mayck, mas nada acontecia.

    O monstro ficou furioso, então convocou uma chuva de ossos, que caía furiosamente. Mayck, no entanto, não teve problemas para evitar eles e até desviar alguns no caminho. 

    “Vamos acabar com isso logo. Algo como você, que só pertence à destruição e à morte, não tem o direito de ficar vagando pelas almas dos outros. Devolva o que não te pertence.”

    Num piscar de olhos, Mayck cortou os tentáculos com sua espada e parou diante do monstro. Sua lâmina foi posta na bainha a sua esquerda e ele abaixou o corpo. 

    Um som como o de um vórtice sendo carregado ecoou, junto a uma vibração intensa e as descargas elétricas da espada. Mayck fez um único movimento de saque, em um corte diagonal, e toda aquela eletricidade acumulada foi descarregada num corte limpo que rasgou todo aquele plano vermelho, assim como transpassou o corpo gigante do monstro, que foi dividido ao meio. 

    Caíram no chão, ossos e carne, assim como a chuva de sangue, e começaram a queimar com a luz que passava pelo corte criado por Mayck. Aquele plano foi destruído e se despedaçou aos poucos, dando lugar àquele plano cinzento. 

    O garoto guardou sua espada e voltou sua atenção para o homem, que o recebeu com um olhar estupefato, mal conseguindo falar.

    “Quem é você, garoto?”

    Mayck tirou a máscara de seu rosto.

    “Meu nome… é Mayck Mizuki. É um prazer conhecer você, Satoshi Goto”, respondeu calmamente. 

    “Você me conhece?.”

    “Bem, sim. Afinal de contas, você é pai de uma amiga minha.”

    Mayck sentiu-se hesitante em dizer amiga, mas foi o que saiu de sua boca e não parecia ser mentira. 

    Satoshi, dessa vez, abriu um sorriso genuíno. O cinza começou a dar lugar para as cores de uma bela paisagem de outono, reflexo de sua alma que tinha encontrado um pouco de paz depois de tudo. 

    Ele estava desesperado. Como poderia abandonar sua filha nesse mundo tão cruel e escuro que ele tinha acabado de conhecer? Foi puro azar. Era o seu aniversário de casamento, e só porque ele tinha planejado algo legal foi conduzido ao inferno junto a sua esposa. 

    Havia um final pior que esse? Ele perguntou. Mas não tinha nada a ser feito. Tudo o que ele podia fazer era engolir o choro e fazer o que pudesse antes de partir de vez. 

    Seus olhos já não mostravam tanta turbulência assim, seu sorriso era calmo e sua voz soava em paz. 

    “Entendo. Nesse caso, Mayck Mizuki-kun. Quero fazer um pedido a você. Proteja minha garotinha. Cuide de Rika por mim.”

    Mayck acenou com a cabeça, sorrindo levemente. 

    “Vou fazer isso.”

    Então, uma luz intensa tomou conta do ambiente e ambos foram levados para fora daquele plano espiritual, antes caótico, agora um lugar onde Satoshi poderia descansar em paz. 

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