Capítulo 2 - Pilar do Leste
Kenji Hayashi se recostava confortavelmente no banco de couro, seus olhos fitavam as fachadas dos estabelecimentos e entradas dos prédios através da janela escura, ou talvez apenas seu próprio reflexo.
O motorista os conduzia silenciosamente, completamente desinteressado em trocar uma palavra sequer.
Mexendo em um celular de botão com a mão esquerda e fumando um cigarro usando a direita, a moça, separada de Kenji apenas pela posição central do banco traseiro, soltava um longo trago a cada minuto. A fumaça enchia a traseira do carro, e logo, o único cheiro que podia ser sentido era o de tabaco.
A dianteira e traseira do carro eram separadas por uma divisória bege, contendo somente uma pequena janela no centro que poderia ser aberta.
À medida que a fumaça e o cheiro de tabaco se intensificavam, Kenji lacrimejava e os músculos de sua garganta se contraíam, enquanto as pontas de seus dedos arranhavam levemente a superfície rugosa do banco.
“Eu odeio fumantes!”
Buscando ar fresco, fitou os vários botões no apoio de braço da porta e clicou desesperadamente em todos, mas parecia que somente o motorista tinha acesso ao controle dos vidros e às demais funções do carro de luxo.
Kenji limpou as lágrimas de seus olhos com a gola da camisa e olhou para a moça que já estava em seu oitavo cigarro e, no instante que ele separou os lábios, ela disse: — Cale a boca.
“Como é?! Mulher miserável! Maldita!!”
Por mais que estivesse a xingando em seus pensamentos, a sua expressão facial não passava de uma criança chateada e inofensiva.
“Porcaria de cigarro! Porca! Sua podre!”
Seu olhar de pobre coitado não se desviou da moça em nenhum momento, mas ela estava completamente alheia com isso.
Quando as portas se abriram de repente, Kenji notou que o carro já havia estacionado. Agora, tudo o que importava era sair o quanto antes do veículo. Retirou o cinto às pressas e saltou para fora, logo, se encontrando dolorosamente com o concreto da calçada com um tombo surdo.
Enquanto se levantava, tossiu várias e várias vezes e, após se recuperar, notou que estava sob a sombra de um enorme prédio bruto de sessenta e seis andares.
E a moça já havia descido do carro sem pressa antes de caminhar em direção à entrada do prédio. Ao passar pelo limiar da porta de vidro automática, ela jogou a bituca do cigarro por cima do ombro, que quicou por alguns degraus e pela calçada, até chegar aos pés de Kenji.
Ele encarou o cigarro por alguns segundos, em seguida, descontou sua raiva o chutando para longe.
— Droga de cigarro — resmungou, seguindo para dentro do enorme prédio.
Ao contrário da arquitetura brutalista, no interior do prédio havia cadeiras de espera luxuosas por toda a esquerda, várias luminárias de cristais presas no teto, plantas silvestres nas quinas das paredes, dois elevadores na direita e um tapete vermelho conectando a entrada e o balcão do recepcionista. E por incrível que pareça, não havia ninguém, exceto eles, é claro.
Kenji descansou suas mãos nos bolsos e seguiu a moça até o recepcionista.
Os olhos dela fitaram o relógio branco que adornava a parede atrás do balcão, marcando 12h59. A cima do balcão estavam dois computadores, várias cadernetas em desordem e um copo de canetas, mas sem canetas.
— Aqui está o garoto — disse ela, ajeitando a gola do terno.
— A Senhora Blanc os espera ansiosamente no interrogatório — informou o recepcionista de voz aveludada.
Kenji estava mais atento às coisas ao seu redor que a conversa de ambos, portanto, ele não prestou muita atenção no que estavam dizendo.
— O leve até a Senhora Blanc — ordenou a moça. — Eu preciso ir para Vistéria hoje mesmo. Não posso perder nem mais um segundo aqui.
— Sally Dakis, a Senhora Blanc disse com todas as palavras para você acompanhá-lo.
Mesmo alheio à conversa, após ouvir o nome da tal mulher sendo citando pela terceira vez, Kenji estreitou os olhos e sua boca se transformou numa linha.
“Senhora Blanc, Senhora Blanc, Senhora Blanc… Quem é essa mulher?”
Sally, de sobrancelhas franzidas, mordeu as próprias bochechas e puxou Kenji pela manga da camisa. Ela seguiu com passos rápidos em direção ao elevador da esquerda, e Kenji, espantado, encarava a mão dela o puxando sem nenhum esforço.
Ao apertar o botão do elevador para ir ao subsolo, soltou a manga da camisa.
— Bruta indelicada! — Kenji exclamou.
Ser chamada de bruta indelicada intensificou a carranca de Sally, no entanto, ela permaneceu em silêncio. Apenas optou em estrangulá-lo pelos olhos…
“Sério que a Senhora Blanc me mandou para esse fim de mundo por causa desse moleque?!”
As portas do elevador finalmente se abriram.
Sally tomou a frente pelo extenso corredor de arquitetura minimalista. O piso era feito de tábua polida, as paredes eram cinzas, adornadas de ambos lados por cópias de quadros de pinturas famosas, como, respectivamente: Mona Lisa, A Noite Estrelada, Meisje met depare, O Pesadelo, Inferno, El Aquelarre, Saturno devorando seu filho, Pirâmide de crânios, Uma marionete para a sobrinha, e entre outros. Havia também muitas outras pinturas de Francisco de Goya.
No fim, havia uma porta. Sally recuperou o semblante profissional e abriu a mesma, permitindo educadamente que Kenji fosse o primeiro a entrar — obviamente, ele a lançou um olhar desconfiado com essa gentileza repentina.
As paredes da ampla sala compartilhavam o mesmo tom cinza do corredor, assim como o piso de madeira polida. No centro, havia uma grande mesa oval e negra, cuja textura lembrava o carvão. Havia também somente duas cadeiras posicionadas em extremos opostos da mesa. E, sentada no fim da mesa, estava uma mulher vestindo um hanfu completamente branco, quase prata, provavelmente sendo a tal Blanc, com ambas mãos entrelaçadas postas sobre a mesa.
Entretanto, Kenji ignorou a presença dela durante alguns segundos, preferindo encarar somente Sally pelos cantos dos olhos, ainda bravo por ela ter o obrigado a inalar a fumaça de tabaco e ter puxado a manga de sua camisa.
Sally se moveu formalmente até Blanc e se curvou brevemente, dizendo: — Aqui está Kenji Hayashi, Senhora.
— Ótimo — Blanc respondeu, sem tirar os olhos safiras de Kenji que ergueu o queixo e uma sobrancelha, agindo defensivamente. Era claro que ele estava intimidado com a forma que ela o encarava, como se conhecesse todos os segredos dele.
— Por favor, sente-se — disse Blanc novamente. — Diga-me, por que escondeu o seu Dom?
— O meu o quê?! Está se referindo ao meu poder?
— Isso. — Ela entortou delicadamente os lábios para formar um sorriso. — Você deveria saber que os funcionários da Fundação que possuem dons, não estão autorizados a participar do esquadrão de extermínio.
— Eu matei aquela besta-fera, okay? — Kenji puxou a cadeira para se sentar e bateu os punhos sobre a mesa antes de apontar o dedo indicador para Blanc. — Eu mereço a minha grana!
Sally permaneceu em silêncio, com as mãos discretamente cruzadas atrás das costas. A atitude agressiva de Kenji não a perturbou nem um pouco, ela sequer o deu atenção, já Blanc, pareceu se divertir com sua agressividade.
— Quando contratamos um novo funcionário, sendo ele parte do esquadrão de extermínio ou não, o fazemos responder vários questionários com o intuito de descobrir se ele possui um Dom. Não foi diferente com você. Por que respondeu os questionários como um humano normal? — Ela colocou-se de pé.
Kenji cogitou em mentir, mas decidiu dizer a verdade após alguns segundos.
— Porque era dinheiro o suficiente! Era o que eu precisava. Talvez ter um cargo maior não iria permitir que eu ficasse junto com as pessoas que amo!
O sorriso de Blanc se alargou, seus braços se esconderam ao se cruzarem sob as mangas do hanfu. Ela caminhou lentamente até Kenji, fascinada, o examinando de forma astuta, como se ele fosse uma criatura mítica, e não um humano.
— Ao contrário de sua miserável mãe, querida irmã, e daquele seu amiguinho, você é especial, Hayashi.
Embora tenha sido elogiado em um tom de sussurro, mas com convicção, a mandíbula de Kenji ficou tensa e seus lábios se entortaram de raiva. Sua carranca se intensificou quando ela se posicionou bem atrás de suas costas e levou ambas mãos esguias e pálidas até seus ombros. As unhas dela, como pequenas garras, causaram arrepios em sua espinha ao deslizar pelo seu pescoço em direção ao topo de sua cabeça, na mais pura intenção de realizar um cafuné gentil. Por mais que este gesto tenha servido apenas para deixá-lo ainda mais irritado, havia algo o segurando para não se levantar de forma brusca e agredi-la por ter desrespeitado as pessoas mais queridas por ele.
— Você e a Sally irão para a Central do Pilar do Leste — dizia enquanto continuava o cafuné lento e preguiçoso — e quando chegarem, os aconselho a me esperarem pacientemente.
No instante que ouviu seu nome sendo citado, Sally arregalou os olhos em descrença. Em seguida, caminhou com relutância até ao lado do centro da mesa à medida que ajeitava sem razão nenhuma, a não ser pelo nervosismo, a sua gravata.
— A Senhora não pode estar falando sério, não é? Eu preciso ir para Vistéria.
— Vistéria? Não. Eu quero vocês dois na Central do Pilar do Leste.
— Mas…
— Obedeça.
O sangue de Sally gelou ao ouvir a ordem, a forçando a endireitar a postura sem qualquer hesitação.
— Sim, Senhora, como a Senhora quiser. — Sally curvou-se obedientemente.
Com um pequeno sorriso satisfeito, Blanc se retirou da sala, e Sally deixou seu corpo esmorecer logo após, sem acreditar que deveria acompanhar Kenji até a Central do Pilar do Leste. Já o próprio Kenji, soltou um bufo e apoiou o queixo na mão, suas sobrancelhas franziram em direção à parede, e ele resmungou internamente:
“Que droga. Por que eu fiquei calado? Deveria onfendê-la até sua quinta geração. Odeio mulheres de franja!”
“Bem, e talvez pertencer a um cargo maior ao do esquadrão de extermínio não seja tão ruim. Aquela besta-fera foi um pesadelo…”
-Um dia antes-
Debaixo da lua pálida, vários homens vestindo roupas militares e armados com fuzis, marchavam em direção a um grande armazém que exalava um cheiro esquisito misturado ao de sangue. Entre eles, estava Kenji Hayashi, que sorria com entusiasmo, apesar dos gritos e tiros que ecoavam do armazém, dos cadáveres de mulheres nuas, e dos homens desmembrados com os intestinos jogados por todo canto.
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