O interior do armazém estava em pedaços: paredes tingidas de grandes manchas de sangue, destroços de porta-paletes espalhados pelo chão de concreto, mercadorias perfuradas por tiros, e as lâmpadas penduradas que ainda estavam inteiras, piscavam constantemente em consequência do disjuntor danificado.

    Os canos de água, enterrados nas paredes brutas e cinzas, foram perfurados por balas e inundaram o armazém até a altura dos pés. A água foi tingida por um leve tom carmesim devido ao sangue e tripas dos cadáveres dos soldados jogados por todo o armazém. Era como um cemitério onde não se enterravam os mortos.

    O ambiente poderia estar mal iluminado, mas era o suficiente para Kenji Hayashi visualizar a figura medonha segurando uma mulher nua, rasgada ao meio. E diante dos cascos da criatura, havia vários soldados pisoteados a ponto de serem irreconhecíveis; as costelas saltaram para os lados, as mandíbulas estavam afundadas, as colunas separadas do corpo, e alguns estavam sem o torso, permitindo que os órgãos vazassem e boiassem pela água rasa.

    A besta se assemelhava a um centauro carmesim, robusto e forte, mas no lugar de sua cabeça, estava uma desproporcional pirâmide invertida de carne. Em cada lado da pirâmide, havia um olho cinzento, como o de um cadáver.

    Essa era a primeira vez em que Kenji viu uma besta-fera tão anormal. Entretanto, um sorriso se abriu em seu rosto! Não havia medo ou hesitação, apenas uma confiança inabalável estampada em sua face. E ele disse consigo mesmo: — Eu consigo!

    No instante em que a criatura avançou, Kenji largou o fuzil e sacou um parafuso de aço do bolso! O antebraço da besta, grosso como um tronco, o acertou com toda força, o arremessando a vários metros pelo ar. A criatura, convencida que o matou, rapidamente perdeu o interesse nele.

    O corpo de Kenji colidiu contra algumas das portas-paletes que ainda estavam de pé até finalmente atingir o chão, quicando algumas vezes antes de usar a ponta dos dedos e das botas para frear a queda.

    Intacto, com apenas alguns arranhões, ele se levantou, mantendo o sorriso confiante, quase sarcástico. Preparando-se para enfrentar a besta-fera mais uma vez, entrelaçou os dedos e os estalou.

    “Vamos lá, Kenji.”

    Depois de sua autoafirmação, disparou em direção à besta com toda a velocidade que tinha! O som de suas botas se chocando contra a água ensanguentada ecoou, atraindo mais uma vez a atenção da criatura. Seus olhos, posicionados em cada lado do triângulo invertido que formava sua cabeça, se voltaram para Kenji.

    Todo o armazém e seus arredores eram território da besta-fera, e o cheiro estranho que perturbava as narinas de Kenji, enquanto ele atravessava a “piscina” de sangue, era provavelmente o de seus feromônios. Ela estava furiosa com os invasores, especialmente com Kenji, que resistiu ao seu ataque.

    Agora, diante da besta que, apesar de não ter boca ou qualquer orifício que pudesse emitir som, Kenji Hayashi teve certeza de ter ouvido um grito de agonia e um relinchar agressivo quando a criatura ergueu os cascos dianteiros para esmagá-lo. No entanto, ele foi mais rápido! Saltou e rolou para debaixo dela! Usando as mãos como impulso, deu um chute com o calcanhar nos testículos de cavalo.

    Em resposta imediata pelo ataque covarde, mas inteligente, a besta usou seus cascos dianteiros para dar um coice violento em Kenji que tentou recuar, desviar jogando seu próprio corpo para trás, mas sem sucesso.

    O porta-palete com que seu corpo se chocou, caiu, acorrentando em um efeito dominó com as demais prateleiras. A visão turva de Kenji rodopiava, tudo o que ele podia ver era um cenário embaçado e completamente destruído. Agora, não havia nada além de escombros formados por barras de metal, papelão, mercadorias destroçadas, e uma enorme piscina rasa e imunda.

    Todo o armazém se afundou em um silêncio obscuro, a água escorrendo dos canos cessou, apenas a tênue luz das lâmpadas continuou a piscar. E no exterior do armazém havia alguns soldados, tensos e ansiosos, e em frente a eles, o capitão de barba volumosa, fitando ao longe os portões do armazém.

    A besta caminhou lentamente até a saída, seus cascos negros como carvão arrastavam as entranhas que flutuavam sobre a água. Seus três olhos encaravam os portões fechados, mas, de repente ela hesitou, pois seu olho situado atrás da pirâmide invertida avistou uma silhueta.

    Kenji Hayashi segurava um cinto tático de granadas, e o canto de seus lábios se torceu em um sorriso eufórico.

    — É isso!! — Arrancou o pino de uma das granadas com os dentes caninos.

    Sem esperar por nem mais um segundo, arremessou o cinto no ar no instante em que a besta reagiu para confrontá-lo novamente.

    Um clarão seguido por um estrondo estridente estilhaçou grande parte das janelas do armazém, e os portões foram rompidos com a onda de choque. O ar denso carregava poeira e lascas de fragmentos queimados. O capitão e seus homens haviam recuado instintivamente quando a luz da explosão inundou as janelas que foram estilhaçadas abruptamente, o que causou uma súbita chuva de vidro.

    Quando a fumaça se dissipou com o passar dos minutos, o capitão entrou no armazém enquanto sinalizava para os soldados o seguirem. E eles viram o inacreditável: lá estava Kenji, de pé, seminu, e sujo de sangue queimado e poeira. Mas o sangue pertencia à besta-fera reduzida a inúmeros pedaços de carne.

    O único motivo pelo qual ele sobreviveu aos ataques da criatura e à explosão foi porque assimilou seu corpo às propriedades do parafuso de aço!

    De fato, a felicidade estampada em sua face era assustadoramente exagerada. Ele, de olhos arregalados e sorriso fechado, parecia um boneco de porcelana ensanguentado.

    O elevador sabia lentamente ao terraço. Era onde Sally Dakis e Kenji Hayashi se encontravam.

    — Eu preciso fazer uma ligação, então não se incomode, tudo bem? — Kenji disse casualmente com um sorriso amigável, como se já tivesse esquecido que estava com raiva dela.

    Sally ergueu uma sobrancelha, pois estranhou a gentileza repentina dele. Ela apenas o observou procurar o contato desejado, depois revirou os olhos impacientemente e permaneceu em silêncio.

    Com um suspiro pesado, como se estivesse se preparando para tomar uma decisão difícil, Kenji levou o telefone até o ouvido.

    — Oi, Yoki.

    Do outro lado da linha, Yoki disse: — Oi, Kenji. Como vai? E já que você ligou — exclamou alegremente — eu e minhas amigas vamos sair hoje à noite, você quer vir junto?

    — Me desculpe, mas… eu vou viajar hoje, para fora do Japão.

    — O quê?! — gritou, obrigando Kenji a afastar o telefone do ouvido por um segundo. — Você não pode estar falando sério! — O brilho em sua voz havia desaparecido, dando espaço para um tom rouco de nervosismo.

    — Ei! Não grita. Eu preciso de dinheiro para continuar pagando sua faculdade.

    — Kenji, isso não é motivo para ir tão longe! Você é retardado!? E que emprego é esse que precisa sair do Japão!!?

    — Yoki… Essa é a primeira vez que tenho a sensação de ser bom em algo. Vou conseguir dinheiro para sua faculdade! Não vê como isso vai mudar as nossas vidas?!! — Kenji exclamou, havia um pingo de desespero em seu tom, como se estivesse forçando em parecer animado com tal ideia. — Isso é o que eu mais quero! Sabe? Eu estou cansado de ganhar migalhas, de ser tão reciclável. Irmã, isso é por você! Vou mostrar para a mamãe que fiz a sua filha alcançar o seu sonho! Eu… não sou um fracasso. Eu consigo!

    Embora estivesse escutando a conversa pela metade, as palavras de Kenji causaram um efeito substancial no coração de Sally. Entretanto, ela não se moveu, não disse nada e suas feições permaneceram neutras, seus olhos apenas fitavam a porta do elevador.

    — Isso é baboseira! — exclamou Yoki com indignação e extrema preocupação. — Você só está confuso!

    — E não deixe a mamãe gastar tanto dinheiro com cigarros e bebidas. — Ignorou os protestos de sua irmã. — Cuide dela, okay?

    — Kenji…

    No instante em que Yoki novamente iria protestar, as portas do elevador se abriram e Kenji encerrou a ligação. Depois, caminhou até Sally que já estava o esperando no meio do terraço.

    O vento soprava bruscamente, trazendo um frescor exuberante. A cada brisa intensa que passava, jogava os fios de cabelo de Kenji para o lado. Por mais que estivesse a mais de 240 metros longe do solo, o ar parecia leve, trazendo conforto para seus pulmões.

    — O que estamos fazendo aqui? — ele indagou.

    — Logo vai descobrir.

    Sally tirou do bolso de seu terno um pequeno recipiente de vidro do tamanho de um dedo mindinho, guardando uma estranha areia azul neon. O abriu e derramou metade desta areia que, seguindo o vento, se espalhou por todo o terraço e circulou com tamanha naturalidade que Kenji apenas observou com as sobrancelhas caídas de tédio, apenas esperando ela dizer o que eles estavam fazendo no terraço de um prédio plenos 13h12.

    Contudo, ele, de repente, percebeu algo desenhado no terraço: um enorme selo semelhante a um pentagrama, brilhando em um forte azul-celeste com leves tons de roxo.

    Cada partícula de seus corpos se desfez antes mesmo de ele perceber que estavam sendo teletransportados. As partículas de ambos viajaram na velocidade da luz para um local desconhecido, e seus corpos foram instantaneamente reconstruídos.

    Kenji ofegou, soltando vapor pela boca trêmula, e seu peito doeu com o ar gelado que subitamente inundou seus pulmões.

    Suas pupilas se dilataram para o ambiente ao seu redor, seus olhos arregalados de descrença absorveram tantas informações que sequer piscavam. Ele caiu de joelhos. Ao seu redor, uma floresta gelada que se estendia por todo o vale, mas seu olhar pasmo se fixava apenas para o céu, onde centenas de lascas de pedra do tamanho de ilhas flutuavam entre as cordilheiras.

    Um estrondo ensurdecedor ecoava quando algumas dessas lascas se chocavam. Sendo a mistura dos sons de uma avalanche, terremoto e ossos se quebrando.

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