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    Continente-das-Terras-Esquecidas


    A pergunta que atormentava Harley Ginsu não era simples curiosidade, era obsessão que corroía sua sanidade: Por que a Biblioteca das Marés permanecia intocada quando todo o resto do território havia sido devastado pela guerra? 

    Os dedos tremeram imperceptivelmente enquanto ajustava um volume sobre estratégia militar. Enquanto seus parentes eram vendidos como escravos de combate, passando de jaulas de treino a jaulas de submissão, por que ele fora confinado não em ferro, mas entre livros ancestrais?

    O cheiro de pergaminho antigo e tinta desbotada havia se tornado sua atmosfera pessoal, impregnando suas roupas, sua pele e seus sonhos. Três anos trabalhando na biblioteca pertencente ao clã Dragões de Sangue. Mil e noventa e cinco dias catalogando os mesmos volumes empoeirados, respirando o mesmo ar carregado de segredos proibidos. 

    O jovem de dezessete anos se movia entre as estantes milenares à semelhança de um fantasma de si mesmo, cada gesto medido, equilibrando o peso da servidão com a tensão da rebelião interna.

    A ironia corroía mais que qualquer cicatriz deixada no corpo. Ele, descendente da “linhagem mais pura da Adaga Arcana”, reduzido a organizar o conhecimento de seus captores. 

    Suas mãos, treinadas para empunhar lâminas desde os cinco anos, agora serviam apenas para virar páginas que ele nem podia ler livremente. Odiado pelos sobreviventes de seu clã na condição de traidor e ignorado pelos Dragões de Sangue que o mantinham vivo sem jamais aceitá-lo.

    Nem peixe, nem carne. Nem livre, nem verdadeiramente prisioneiro.

    Ao redor, as prateleiras de madeira escura guardavam muito mais que textos amarelados. Abrigavam segredos ancestrais capazes de alterar o curso de impérios, técnicas de combate perdidas que faziam mestres chorarem de inveja e rituais que prometiam mudar o equilíbrio entre vida e morte. 

    Conhecimento suficiente para reconstruir seu clã ou destruir seus inimigos, se apenas pudesse tocá-lo sem que os guardiões percebessem.

    Poder ao alcance de suas mãos que também era a corrente mais forte que o mantinha prisioneiro.

    Naquele momento, enquanto subia na escada de madeira para alcançar um tratado sobre forja bélica, seus músculos gritaram em recusa. Não pela altura, e sim pela memória muscular de movimentos de combate que seus braços imploravam para executar no lugar daquele gesto vazio de domesticidade.

    Dez anos. Aqueles olhos azuis infinitos do Vigilante ocupando o espaço, transformando-o em um buraco negro emocional.

    A lembrança chegou não em forma de flashback, mas através de pancada física que quase o fez perder o equilíbrio na escada. O peso da lembrança o puxou de volta, tornando-o uma criança de dez anos diante daquela presença avassaladora, sentindo-se simultaneamente visto e completamente insignificante.

    “Ainda não é o momento.”

    Embora carregassem perda, as palavras vinham envoltas em aparência de esperança.

    Momento para quê? A pergunta martelava em sua mente há sete anos, cada repetição desgastando um pouco mais de sua sanidade. Naqueles fragmentos de tempo que pareciam escapar, Harley sentira que finalmente encontraria seu propósito, que seguindo aquele portal dimensional poderia ter uma vida diferente e digna do nome que carregava.

    O Vigilante via em Harley algo que ele próprio ainda não conseguia perceber.

    E ali estava ele, aos dezessete anos, ainda organizando volumes empoeirados em vez de forjar seu próprio destino. A amargura não subia mais pela garganta, havia se fixado, um gosto metálico impossível de ser lavado pela água.

    O livro em suas mãos começou a tremer.

    Não pelas mãos instáveis. Mas porque a frustração havia se tornado entidade viva dentro de seu peito, chama alimentada por anos de humilhação sistemática que agora consumia oxigênio suficiente para alimentar um dragão.

    Ele havia sido treinado por Julius Ginsu, moldado pelos métodos ancestrais mais rigorosos do Clã Adaga Arcana. Cada cicatriz em seu corpo era mapa topográfico de lições gravadas na carne: geografia dolorosa de uma educação que prometia transformá-lo em lenda. 

    Cada movimento aperfeiçoado através da dor controlada, cada gota de sangue derramada no pátio de treinamento foi um investimento em sua formação enquanto guerreiro.

    Investimento que nunca rendeu dividendos.

    “A dor é sua professora mais honesta.”

    Julius havia dito isso enquanto observava o filho de sete anos tentar se levantar após o quinquagésimo tombo daquela tarde. Embora não admitisse fraqueza, a voz revelava algo mais: uma tensão quase imperceptível, como se as próprias palavras o machucassem. 

    “Quando aprender a ouvi-la sem medo, será verdadeiramente digno da linhagem que carrega no sangue.”

    Julius desaparecera na manhã seguinte.

    Sem palavra. Sem carta. Sem explicação que amenizasse o abandono brutal de deixar uma criança acordar para um mundo onde seu único protetor havia sumido, esvaindo-se na primeira luz do dia.

    Por que partiu sem explicações? A pergunta havia evoluído ao longo dos anos: de curiosidade infantil para desespero adolescente, e finalmente para essa raiva fria e calculada que agora ocupava espaço permanente em seu peito. 

    O abandono plantara semente venenosa de inadequação que crescia a cada dia de cativeiro, alimentada pelo fertilizante diário de humilhações pequenas e grandes.

    A cicatriz ritual em sua palma direita formigou subitamente.

    O formigamento não era sensação física, era alarme primitivo e instinto ancestral gritando que algo se aproximava. Aquela marca ancestral pulsava com intensidade que fazia seus dedos tremerem, cada batida sincronizada com seu coração acelerado. 

    Energia Dimensional? Harley fechou o punho com força suficiente para deixar marcas das unhas na palma, forçando a sensação incômoda a recuar para onde quer que habitasse quando não estava tentando destruir sua vida.

    Não agora. Não quando três anos de sobrevivência dependiam de manter as aparências de servo obediente, domesticado e inofensivo.

    A atmosfera da biblioteca não mudou gradualmente, foi como se alguém tivesse sugado todo o oxigênio do ambiente de uma vez.

    O ar tornou-se mais denso, cada respiração exigindo esforço consciente enquanto tensão palpável transformava o santuário de conhecimento em arena de predadores. Harley reconheceu aquela sensação imediatamente. Durante três longos anos de confinamento, desenvolvera um sexto sentido para detectar certas presenças antes mesmo que suas pegadas ecoassem pelos corredores de pedra.

    Sergio Romanov.

    O nome sozinho era suficiente para fazer sua cicatriz queimar com intensidade renovada.

    Passos múltiplos se aproximavam pelos corredores: coordenados e deliberadamente intimidadores. Mas não era apenas o som, era a qualidade do silêncio entre as pegadas, carregado de expectativa maliciosa. 

    O som metálico ecoava com regularidade hipnótica, cada batida marcando o tempo feito tambores de guerra que anunciavam execução pública.

    O filho do líder do clã Dragões de Sangue sempre caminhava como se o mundo lhe devesse desculpas por existir antes de sua chegada.

    O jovem Ginsu reconheceu o padrão sem nem precisar olhar: Sergio Romanov e seus dois lacaios eternos. Formação triangular que eles haviam aperfeiçoado ao longo de meses de caças sistemáticas. Geometria da crueldade que maximizava intimidação enquanto bloqueava qualquer rota de fuga.

    A cicatriz voltou a latejar, da mesma forma que fizera apenas uma vez, sete anos atrás, quando energia dimensional atravessara sua carne. Harley passara anos acreditando que cada vibração seria o anúncio de um novo encontro com esse poder, ainda que não fosse. 

    A reação vinha de Sérgio. A cicatriz pulsava não por causa de portais ou fendas, e sim por algo mais profundo que ele carregava consigo como aura invisível. O jovem Ginsu cerrou os dentes, forçando músculos faciais a permanecerem relaxados enquanto organizava os livros com movimentos que pareciam naturais, mas eram, na verdade, coreografados pela necessidade de sobrevivência.

    Não podia demonstrar fraqueza. Não podia dar ao filho do líder do clã Dragões de Sangue a satisfação de detectar medo.

    Mas principalmente: não podia deixar que sua raiva transpirasse, porque três anos lhe haviam ensinado que Sergio se nutria das emoções alheias tal qual um parasita faminto cravado na carne.

    Droga.

    A palavra ecoou em sua mente não como praga, e sim como reconhecimento tático. Percebeu que havia se encurralado na seção mais remota da biblioteca, onde as estantes formavam corredor sem saída e as sombras pareciam mais densas. Erro de amador que Julius jamais teria cometido. Sempre manter uma rota de escape e sempre controlar o terreno.

    Os passos se aproximavam com inevitabilidade cruel, e Harley podia praticamente saborear a antecipação sádica que Sergio trazia impregnada na própria pele.

    Aquela era chance que o herdeiro Romanov jamais deixaria passar: seu inimigo sozinho, encurralado e sem testemunhas que pudessem interferir.

    O filho do líder do clã Dragões de Sangue surgiu na penumbra, não feito simples figura se aproximando, mas como energia densa que parecia pesar sobre tudo ao redor.

    Cabelos negros impecavelmente arrumados caíam sobre os ombros em ondas que pareciam desafiar a própria gravidade, contrastando com a crueldade fria que habitava seus olhos escuros. O quimono negro com detalhes dourados não era apenas vestuário, era declaração de guerra social, uniforme que gritava superioridade antes mesmo que ele abrisse a boca.

    Apenas os membros mais privilegiados do clã tinham direito àquelas cores específicas. Sergio ostentava os símbolos, servindo de armadura que o protegia de consequências, lembrando a todos, especialmente ao prisioneiro Ginsu, exatamente onde cada um ocupava na hierarquia implacável dos Dragões de Sangue.

    Os dois lacaios flanqueavam-no em posições que haviam ensaiado: um à esquerda, ligeiramente atrás, criando sombra intimidadora. O outro à direita, bloqueando o corredor com naturalidade estudada. Todos usavam a mesma expressão de diversão cruel. Predadores que finalmente encontraram presa indefesa em território favorável.

    ANEXO:

    lei-do-livro

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