Capítulo 80 - O interior de um herói
“Ser um Mestre Arcano é enfrentar as sombras interiores com a mesma determinação com que se enfrenta os inimigos externos. É um caminho solitário, mas essencial para a verdadeira grandeza.”
— Sussurros das Sombras II, transmissão oral do Clã Adaga Arcana.
O anão percebeu que Harley tinha uma resistência formidável aos seus ataques mentais. As artimanhas para induzir a loucura ou criar um estado de paralisia emocional não tiveram o efeito desejado.
O jovem tinha permanecido firme, enfrentando cada ilusão com determinação e força interior. A vantagem do anão na manipulação da realidade se desvanecia diante da resiliência de seu oponente.
Diante dessa realidade frustrante para o anão, que agora se via impotente diante do inabalável oponente, uma decisão rápida tomou forma. Em um ato repentino, ele decidiu recuar da batalha.
Todas as artimanhas, as tentativas de usar a culpa, o medo, a perda, a desesperança, a solidão, a falta de sentido, a alienação, os erros e até mesmo a morte, não foram suficientes para atingir o objetivo de desestabilizar Harley.
O anão, então, começou a se transformar novamente, tornando-se uma entidade composta de energia mágica. Manipulando a realidade ao seu redor, o ser se confundiu com suas próprias criações ilusórias. Em um piscar de olhos, ele se desvaneceu da realidade, deixando para trás a sensação de que algo extraordinário tinha ocorrido e as suas últimas palavras:
— Nos encontraremos novamente neste torneio mortal.
O ambiente ao redor de Harley começou a se reconfigurar. As ilusões desapareceram, e a paisagem voltou a ser substituída pelo árido deserto, banhado pelo intenso calor dos três sóis. Ele, por um instante, sentiu o contraste da ilusão desaparecendo, deixando-o de volta à sua realidade conhecida.
O deserto, com sua vastidão e aridez, agora parecia mais palpável do que nunca. O sol escaldante, as dunas de areia intermináveis e o céu implacável se revelaram diante de seus olhos. Harley, ainda em posição defensiva, olhava em volta, cauteloso, mas consciente de que vencera essa batalha contra as artimanhas de seu misterioso inimigo.
O jovem permaneceu de pé, sua figura solitária se destacando no vasto deserto banhado pela luz dos três sóis. A batalha contra as ilusões tinha sido intensa, uma luta que transcendeu o entendimento daqueles que apenas observavam de longe. No entanto, ele não sucumbiu; pelo contrário, emergiu mais forte, resistente e determinado do que nunca.
Enquanto o calor do deserto continuava a envolvê-lo, Harley riu consigo mesmo, uma risada que ecoou pelo silêncio do ambiente vasto. “Como eu poderia sucumbir?” murmurou para si mesmo, relembrando as experiências que forjaram sua resiliência.
Cada desafio que enfrentou no presente era uma extensão dos testes cruéis e das perdas devastadoras que seu clã impôs a ele no passado. As cicatrizes emocionais eram tão profundas quanto as físicas, e Harley compreendia que nada acontecia por acaso. Cada potencialidade e insight não poderiam ser obtidos inesperadamente, fruto da sorte, mas sim que eram resultados diretos do esforço e treinamento passados.
O jovem em recordações revivia, como seu clã, para testar sua resiliência à perda de vínculos, matou seu animal de estimação que já estava a seis anos ao seu lado. A morte daquele companheiro leal foi um golpe profundo, mas serviu como um dos muitos ensinamentos brutais que forjaram sua força interior.
A memória mais dolorosa, entretanto, era a tortura e morte de Beatriz, uma amiga de infância que cresceu ao seu lado, destinada a ser sua esposa. Amarrado e impotente, Harley viu a vida dela se extinguir diante de seus olhos, uma prova cruel do preço da resistência emocional.
A separação de seu irmão, criado como rival desde a infância, também ecoava em suas lembranças. A rivalidade entre eles era alimentada por uma tradição que os destinava a disputar até a morte o privilégio de liderar o clã. Essa separação abrupta, no entanto, trouxe consigo uma perda que ele não estava preparado para enfrentar.
E agora, diante do deserto, o jovem percebia que seu clã, seu povo, e até mesmo seus familiares, não existiam mais. A tradição, os testes e as rivalidades foram varridos pelo tempo, deixando ele como o último remanescente de uma linhagem que um dia foi orgulhosa.
Apesar de todas as perdas e desafios, Harley permanecia de pé. O jovem sabia que seu ser puro e inocente havia sido substituído por cautela e a certeza da dor. Cada contato era encarado como algo estranho, uma potencial fonte de perdas. Caminhar sozinho tornou-se um meio de evitar reviver memórias que estavam trancadas e que haviam sido libertadas de seu cofre interior.
O jovem compreendia que essas experiências não eram apenas cicatrizes; eram os alicerces sobre os quais construiu sua resiliência e foi o que lhe deu a vantagem da vitória.
Cada dor, cada sacrifício, moldou-o em um guerreiro implacável. Contudo, ele também percebia que, talvez, essa jornada o tivesse tornado insensível às perdas e à dor alheia, alguém que nunca experimentou verdadeiramente o que era amar.
Harley reconhecia que esse sentimento podia ser uma ilusão, uma utopia criada para cativar ou diminuir os anseios dos tolos. Como poderia correr ao encontro de uma ilusão como Lysandra, quando cada experiência boa ao lado de Beatriz estava impregnada com o gosto de sangue, o som de gritos e a lembrança de sua cabeça e olhos forçados a testemunhar cada ato até a morte?
Ele não desejava testemunhar novamente a morte de alguém querido, nem que para isso precisasse abrir mil portais e continuar fugindo ignobilmente. No entanto, Harley entendia que o contato, a aproximação e a convivência eram inevitáveis.
Respirando fundo, antecipando que a próxima perda estaria no futuro, ele recompôs-se. Trancou suas lembranças mais uma vez, escolhendo esquecer voluntariamente esses eventos dolorosos. E seguir adiante novamente, com determinação e resiliência.
O deserto, com seus três sóis inclementes, testemunhava o resultado dessa jornada de dor e superação. Ele olhou para o horizonte, seus olhos refletindo a determinação de alguém que enfrentou o pior novamente e emergiu mais uma vez não apenas vivo, mas mais forte do que nunca.
A sensação de vitória, mesmo que momentânea, aqueceu seu coração. Ainda havia um longo caminho a percorrer, desafios a enfrentar e mistérios a desvendar, mas, por ora, Harley permanecia firme no deserto, pronto para continuar sua jornada com uma nova perspectiva e uma determinação renovada.
Ele, acostumado a guardar suas dores e decepções em compartimentos internos, já direcionava seus pensamentos para outros horizontes enquanto contemplava o deserto diante dele.
O inimigo havia mencionado um “torneio mortal”, uma expressão que ressoava em sua mente como um eco enigmático. O que isso significava? Estaria Harley participando involuntariamente de uma competição pela sobrevivência, um torneio entre magos, dragões e talvez outros seres neste mundo inóspito?
Refletindo sobre seus encontros anteriores, ele tentava unir os fragmentos de informações dispersas. As palavras finais do mago Cedir ecoavam em sua mente: “Este mundo é um extenso teste de coragem, força e superação.” E ele se perguntava se cada mago, como Cedir, representava uma facção ou competição neste teste implacável.
As palavras de Astrid também ecoavam, lembrando-o da diversidade temporal entre eles, uma indicação clara de que suas origens eram distintas. Isabella parecia envelhecida, enquanto Sergio estava visivelmente mais jovem. Essa disparidade temporal criava um quebra-cabeça complicado que Harley tentava resolver em meio à confusão de suas próprias experiências.
Os relatos de Malachias adicionavam mais uma peça ao quebra-cabeça. O santuário oculto dos dragões, os ossos como chave para este mundo e a dualidade de propósitos: um reino que devorava invasores, mas também uma fonte de poder extraído das mortes dos dragões. Uma sinfonia de morte e magia dançava nesse santuário.
Harley, agora, estava em uma encruzilhada de narrativas contraditórias, cada uma contada por inimigos mortos. Em seus próprios pensamentos, ele refletia sobre a dualidade entre humanos e dragões, apontando para um destino forjado a cada confronto.
Nesse mundo, seria possível que todos os seus adversários estivessem aqui em busca de respostas, tentando criar explicações coerentes enquanto lutavam pela sobrevivência?
O desafio era distinguir o que era verdade, o que era uma ilusão e o que eram descrições subjetivas ou hipóteses sem confirmação.
Harley questionava a natureza de suas próprias experiências, ponderando sobre as lacunas inevitáveis entre a realidade vivida e as narrativas construídas posteriormente. Como poderia confiar nas palavras de seus inimigos quando todos estavam presos nesta arena de luta, cada um buscando seu próprio entendimento?
A sobrevivência, uma constante busca por respostas e uma luta pela supremacia em um reino impiedoso, agora pareciam conceitos interligados. Harley percebeu que, no final, sobreviver era o que importava.
A verdade poderia ser um luxo, uma miragem inatingível no calor do confronto. Os detalhes exatos poderiam se perder na bruma dos conflitos, mas a persistência em enfrentar os desafios era o que definiria seu destino.
Enquanto o deserto se estendia diante de Harley, ele sabia que mais desafios estavam por vir. Cada passo era uma escolha, cada escolha uma narrativa forjada em meio ao calor do torneio mortal que agora ele aceitava como sua realidade.
A incerteza pairava sobre o horizonte, mas a determinação ardia em seu peito, guiando-o através do desconhecido em busca de respostas que talvez apenas o tempo pudesse revelar.
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