Capítulo 93 - Eu sou o demônio!
“A verdadeira força de um guerreiro não está apenas em sua arma, mas na conexão que ele tem com ela. O poder de um artefato é uma dualidade, sendo simultaneamente um fardo e uma bênção. Somente o Mestre Arcano pode compreender e suportar tanto o peso quanto a liberdade que esse poder confere.”
— Fragmentos da Libertação, de Nostradamus
Neste momento crítico, Harley sentiu uma intensa onda de energia percorrer sua adaga branca, como se o próprio artefato estivesse pulsando com vida própria. Era uma sensação única, uma confirmação de que a adaga havia evoluído, transformando-se em algo além do que ele jamais imaginara.
O poder mágico fortalecido que agora fluía através dela era quase intoxicante, a tentação de se entregar a esse novo poder era palpável.
Ele conseguia sentir que, com essa energia recém-adquirida, podia criar o dobro de paredes invisíveis, fortalecer suas defesas e até mesmo invocar mais cinco bonecos de energia para lutar ao seu lado.
A confiança que antes parecia frágil agora se solidificava dentro dele, como se as barreiras que criara não fossem apenas ao seu redor, mas também dentro de sua mente.
Não havia mais espaço para a vergonha das retiradas estratégicas do passado. O jovem guerreiro, por tanto tempo subestimado e forçado a fugir de inimigos mais poderosos, agora se sentia invencível com a adaga pulsante em sua mão.
Enquanto contemplava seu poder crescente, acreditando que poderia enfrentar qualquer coisa que se colocasse em seu caminho, Harley mal percebeu o cerco se fechando ao redor.
As hordas de sombras continuavam a emergir sem parar, e a Guardiã Sombria, ainda envolta em uma aura de fúria e desespero, convocava forças que ele jamais imaginara enfrentar.
A adaga brilhava cada vez mais intensamente, alimentando a ilusão de que, talvez, aquele poder seria a solução para todos os problemas. Mas a realidade gritava outra coisa.
As novas criaturas eram aterrorizantes. Não eram apenas guerreiros sombrios como antes; agora, bestas esqueléticas de quatro patas, com olhos ardentes de chamas negras, avançavam em suas direções. Espectros flutuantes, feitos de fumaça e dentes, moviam-se como sombras vivas, preenchendo o ar com seu murmúrio assombroso.
Guerreiros armados com lanças de escuridão sólida se posicionavam estrategicamente, fechando todos os ângulos de fuga. O campo de batalha parecia um pesadelo sem fim, e Harley começou a perceber que, apesar de todo o poder que agora possuía, havia limites que não poderia superar sozinho.
Foi então que Ivana surgiu ao seu lado, emergindo de uma sombra próxima e agarrando firmemente sua mão. Havia urgência em seus olhos estreitos e um tom de comando em sua voz que não deixava espaço para debate.
— Não consigo mais segurá-la. Meu poder está acabando. Vamos fugir — disse ela, puxando-o para as sombras.
Harley hesitou por um momento. A adaga em sua mão pulsava, o brilho crescente sugeria que ele poderia enfrentar tudo aquilo e vencer. Mas a realidade ao seu redor gritava que o número de inimigos era avassalador. Antes que ele pudesse responder, Ivana já o havia arrastado para dentro da escuridão.
Atravessar grandes distâncias pelas sombras era sufocante, um turbilhão de escuridão que deixava a mente girando em um caos vertiginoso, como se seu corpo estivesse sendo desfeito e reconstruído ao mesmo tempo. Era algo que o desconcertava, mas a urgência de Ivana não deixava espaço para que ele resistisse.
Com mais dois deslocamentos através das sombras, a distância entre eles e o campo de batalha aumentava ainda mais.
Harley, ainda atordoado pela fuga repentina, olhou para Ivana, que seguia em frente sem olhar para trás. Seu corpo se movia com determinação, mas ele sabia que estava sendo arrastado para longe da batalha contra sua vontade.
— A Guardiã Sombria deve ter espalhado todos os seus lacaios sombrios para nos procurar. Temos que continuar fugindo rápido — disse Ivana, sem olhar para trás, percebendo a hesitação do jovem.
— E se, juntos, tentássemos? Não poderíamos vencer? — perguntou Harley, sua voz carregada de relutância, mas com uma centelha de esperança de que talvez não precisasse fugir novamente.
Ivana não respondeu de imediato, e o silêncio aumentou a angústia de Harley. Ele precisava de respostas, de uma justificativa que fosse além da simples sobrevivência. Depois de um tempo, ele arriscou outra pergunta, dessa vez com um toque de ironia, embora houvesse uma curiosidade genuína:
— Você queria me matar e agora me trouxe junto. Você se apaixonou por mim?
Ivana lançou-lhe um olhar frio, mas havia uma ponta de algo mais — talvez cansaço, talvez frustração. Ela não sorriu, mas algo em seus olhos parecia quase divertido.
— Apenas sozinha não tenho chances contra ela. Se eu te deixasse lá, você também não teria chances. Aquilo não é todo o poder dela — disse diretamente como se tudo estivesse resumido a uma equação de forças e fraquezas.
Essas palavras caíram sobre Harley como um balde de água fria. O poder que ele havia sentido crescendo em sua adaga, a confiança que isso lhe dava, de repente pareciam insignificantes diante da realidade.
Eles haviam fugido não por fraqueza, mas por pura necessidade. A Guardiã Sombria ainda tinha mais poder guardado, e aquilo que já haviam enfrentado era apenas uma fração do que ela era capaz de liberar.
O jovem guerreiro olhou para a adaga que ainda brilhava intensamente em sua mão. A sensação de poder ainda estava ali, mas agora era acompanhada por uma compreensão amarga.
Ele não podia ser imprudente. A força recém-adquirida era incrível, mas havia limitações que ele precisaria entender. Sua arrogância quase o havia levado ao desastre, e a intervenção de Ivana o salvara de um erro fatal.
— Vamos continuar mais rápido? — insistiu Ivana, apertando a mão de Harley com mais força e acelerando a fuga.
Sua voz soava decidida, e mesmo em meio à tensão do momento, havia uma ponta de sarcasmo que não passava despercebida que se repetiu:
— Você me deve uma. Então, conto com sua proteção enquanto recupero minha energia. Depois que derrotarmos ela, espero que você se entregue sem resistência.
Harley riu, embora o momento fosse tudo, menos engraçado.
— Já sou comprometido, como já disse antes — ele retrucou, tentando aliviar um pouco a pressão com humor.
Eles continuaram a fugir, cada passo levando-os para mais longe do perigo imediato. A cada deslocamento, Harley sentia o peso de sua situação se intensificar. A adaga estava ao seu lado, brilhando como um farol de esperança, mas a realidade em torno deles mostrava que o poder sozinho não seria suficiente.
Por fim, emergiram em um vale isolado, cercado por formações rochosas imponentes. O cenário era drasticamente diferente, um contraste gritante com o caos que haviam deixado para trás.
O terreno árido e rochoso era inóspito, e o calor intenso, resultado dos três sóis que pairavam no céu, tornava o lugar ainda mais desolador. As sombras que se projetavam das rochas irregulares pareciam esconder segredos, mas não havia sinal de vida, nem de perigo imediato.
Harley sentiu a mão de Ivana soltando a sua. Pela primeira vez, ele olhou diretamente para ela, e viu a exaustão clara em seus olhos. A mulher, que parecia ser feita de determinação, estava se desgastando — e isso era um sinal do quanto aquela batalha os estava drenando.
— Para onde iremos a partir daqui? — ele perguntou, sua voz ecoando pelas formações rochosas. O vazio ao redor fazia parecer que estavam sozinhos, mas ele sabia que o perigo ainda estava próximo.
Ivana parou por um momento, refletindo. Ela sabia que não havia lugar seguro naquele mundo, e a única coisa que poderiam fazer era manter a distância da Guardiã até que pudessem se recuperar.
— Não existe um lugar seguro aqui. A única coisa que podemos fazer é nos afastar o máximo possível até que possamos recuperar nossa energia mágica. E torcer para não encontrar outros inimigos pelo caminho.
Harley observou-a de soslaio. Havia algo na forma como ela falava, algo que sugeria que Ivana não sabia o quanto a adaga dele ainda guardava poder. Talvez ela acreditasse que ele também estava esgotado.
Decidido a manter essa vantagem em segredo, Harley continuou em silêncio, mas sua mente não parava de processar o que estava acontecendo.
— Recuperar energia? — perguntou ele, tentando extrair mais informações.
Ivana soltou a mão dele e o observou com uma expressão indecifrável. Ela parecia ponderar se deveria ou não confiar naquele homem que, até pouco tempo atrás, era seu inimigo.
— Você sabe pelo menos o que são os ossos de dragão? — ela perguntou, observando o olhar intrigado de Harley. Ao ver que ele parecia não entender completamente, ela continuou — Existem ossos específicos que, quando destruídos, liberam uma energia mágica única. Nós absorvemos essa energia.
Ela fez uma pausa antes de continuar.
— Eu engoli um desses ossos. Todas nós, as mulheres que vieram da mesma Dimensão Sombria — a Guardiã, Sanguessuga, minha irmã e eu — somos assim. Somos inimigas lá, e continuamos inimigas aqui.
Harley encarou-a, surpreso. Ele precisava entender mais, mas agora não era o momento. O peso do que ela dissera ainda pairava no ar, e ele sabia que essa aliança era delicada, talvez até instável.
— É possível engolir ossos? — Harley perguntou, surpreso com o que tinha acabado de ouvir.
— Só os demônios conseguem fazer isso! E, por sinal, você não me parece um demônio. O que faz aqui? — inquiriu a mulher, estreitando os olhos, agora com um brilho de suspeita.
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