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    “As conexões que formamos, muitas vezes de maneira inesperada, são a base de nossa sobrevivência e crescimento. Elas nos lembram que, em meio ao caos, a verdadeira força reside nos laços que formamos, sejam eles de amizade, amor ou necessidade mútua.” 

    Fragmentos da Libertação, de Nostradamus.


    — Como pode ser um demônio, sendo mulher? — perguntou Harley, a voz carregada de incredulidade, enquanto olhava para ela com os olhos semicerrados.

    Ivana não respondeu de imediato. Seus olhos, fixos em algum ponto distante, pareciam mergulhados em pensamentos longínquos, talvez dolorosos. Havia algo intocável em sua postura, algo que as palavras do jovem haviam perturbado. 

    Lentamente, soltou a mão dele, como se aquele gesto carregasse o peso de uma verdade oculta, algo que não poderia ser compartilhado com facilidade. O ar ao redor deles parecia mais denso, carregado de uma tensão invisível. 

    Harley sentiu que havia tocado um ponto delicado, uma parte da alma dela que raramente emergia. Decidiu esperar em silêncio, observando-a à distância, enquanto suas próprias dúvidas se amontoavam como sombras ao redor de seus pensamentos.

    Ivana caminhava com a postura firme, mas havia uma rigidez em seus movimentos que não passava despercebida. Para ele, tudo que ela representava ainda era um enigma. A história que ela havia contado antes, sobre ossos de dragões e poder mágico, era fascinante, mas não conseguia desvendar a complexidade da mulher à sua frente. 

    O mistério que envolvia sua verdadeira natureza crescia a cada segundo, e agora, mais do que nunca, ele precisava entender o que realmente havia por trás daquela aparente frieza.

    Sem aviso, Ivana estendeu a mão e tocou a testa do jovem à sua frente, com a suavidade de uma brisa, mas o impacto foi imediato. Não era um toque comum. Era como se sua pele transmitisse algo muito além do físico. Era um compartilhar profundo de experiências vividas. 

    O mundo ao redor deles começou a desmoronar, as cores e formas se dissolveram, e Harley sentiu-se sendo puxado para uma realidade completamente diferente. Ele sabia que não estava mais no presente.

    Uma vastidão de escuridão o cercava, sem luz, sem forma. Ele estava suspenso em um vazio primordial, onde o tempo parecia não existir. As sombras ao seu redor não tinham limites, não possuíam fronteiras visíveis. Tudo era indistinguível. 

    De repente, Harley percebeu que aquelas sombras não eram inofensivas. Elas estavam vivas, pulsando com uma energia quase imperceptível, uma consciência antiga que existia antes de qualquer forma de vida. Eram os primeiros sussurros da criação, antes que o mundo tomasse forma.

    Ivana o conduzia por essa vastidão, mas não da forma convencional. Ele sentia suas emoções misturando-se às dele, uma troca de percepções que transcendia as palavras. A presença dela era forte, visceral, como se ela fosse parte daquela escuridão. 

    Então, a história começou a se desenrolar. Não era uma narrativa comum, mas uma vivência profunda, uma imersão completa em um mito ancestral.

    Harley viu, ou melhor, sentiu, o surgimento de algo extraordinário naquele vazio. Uma sombra, mais ousada que as outras, começou a se destacar. Não por sua forma, que ainda era indefinida, mas por sua vontade. 

    Havia nela uma força incomum, um desejo de romper com a uniformidade que a cercava. Essa vontade pura de se libertar deu origem ao primeiro demônio, uma criatura nascida do desejo de ser única em um mar de mesmice. Não era o mal como ele imaginava, mas algo ainda mais primordial: a fome por individualidade, por existência.

    A sombra começou a mudar, buscando formas em tudo o que encontrava ao seu redor. Imitava as rochas da caverna, os contornos vagos do mundo que começava a se formar. 

    Cada nova forma que adquiria era uma tentativa de se diferenciar, de ser mais do que as sombras ao seu redor. E assim, aquela criatura desprovida de forma começou a se transformar em algo grotesco, algo feroz. Animais terríveis, bestas deformadas, nasciam do desejo incessante daquela sombra por reconhecimento.

    À medida que o tempo passava,se é que o tempo existia naquele lugar, a sombra continuava sua evolução. E então, no auge dessa transformação, surgiu o dragão. Harley observava, fascinado, enquanto o ser alado tomava forma diante dele. 

    Era imenso, majestosamente aterrorizante, a perfeita fusão de poder e mistério. O dragão não era apenas mais uma criatura; ele era o ápice do desejo daquela sombra. Representava tudo o que a forma original ansiava: poder absoluto, notoriedade indiscutível e a capacidade de dominar o mundo ao seu redor.

    A experiência de Harley era visceral. Ele sentia o calor das chamas que emanavam da boca do dragão, ouvia o rugido ensurdecedor que rasgava o silêncio do vazio. Era mais do que uma visão. Ele estava vivendo aquela realidade. 

    O mundo ao seu redor pulsava com uma energia indescritível, algo que fluía além do corpo físico. E no centro de tudo, os ossos.

    Os ossos eram mais do que simples estruturas. Eles eram recipientes de um poder antigo, quase inatingível para os mortais. Harley começou a entender que os ossos, tantas vezes vistos como meras relíquias de eras passadas, eram na verdade pontes entre dimensões. 

    Eles armazenavam a energia mágica bruta que fluía através das criaturas e do próprio universo, conectando o mundo material a algo muito maior e mais complexo. O toque de Ivana havia revelado isso a ele.

    A conexão entre os dois se aprofundava a cada nova revelação. As emoções de Ivana, que antes eram ocultas, agora transbordavam para ele. Havia dor ali, uma tristeza profunda, uma luta constante por identidade. 

    Ela não era apenas uma mulher ou um demônio; ela era uma fusão dessas realidades. O que antes parecia impossível, agora fazia sentido para Harley. Ivana havia transcendido sua própria natureza, moldada pelos anseios ancestrais de poder, beleza e controle. 

    O dragão, símbolo máximo dessa jornada, representava não apenas força bruta, mas também a capacidade de cativar, de subjugar pela beleza e pela tentação.

    Harley sentiu o peso dessa revelação. Era muito mais do que ele esperava. A conexão entre eles, antes tênue, agora parecia inquebrável. Ele não estava apenas testemunhando a história dela; ele estava imerso em suas emoções, absorvendo cada aspecto de sua essência.

    Mas mesmo diante de tudo isso, uma dúvida persistia em sua mente. A pergunta que havia feito antes continuava a ecoar, exigindo uma resposta que nem mesmo aquela experiência mítica conseguia apagar:

    — Como pode ser um demônio, sendo mulher?

    Ivana parou, ainda de costas para ele, sua respiração irregular. Ela não se virou imediatamente, talvez ponderando sobre a profundidade daquela pergunta. Seus olhos varreram o horizonte, como se buscassem uma resposta no próprio vazio ao redor deles. 

    Quando finalmente falou, sua voz estava mais baixa, mais contida, mas carregada de uma força interna que Harley jamais imaginaria.

    — Nossa espécie… — começou ela, hesitante, como se escolher as palavras certas fosse uma batalha em si mesma — …não é o que você imagina. A evolução não se limita às formas. A nossa… foi um desvio.

    Harley escutava com atenção, sentindo que a resposta que viria a seguir era crucial para entender não apenas ela, mas o mundo ao redor deles.

    — Nossa primeira ancestral — continuou — Rejeitou o grotesco. Ela não queria ser temida pelo medo da aparência, mas adorada pela beleza. Ela sabia que a verdadeira força não estava em monstros que rasgam carne, mas na capacidade de seduzir, de capturar corações e mentes. O que ela buscava era mais do que simples notoriedade. Ela ansiava por devoção… e loucura.

    Ivana parou por um instante, avaliando o efeito de suas palavras em Harley. Ele a observava em silêncio, aguardando o desfecho daquela confissão.

    — O dragão foi sua escolha — disse a mulher de olhos puxados finalmente, virando-se para encará-lo — Quem melhor para simbolizar a força absoluta do que uma criatura que voa entre mundos, e que ao mesmo tempo pode ser irresistível? E quem melhor para encarnar essa essência do que uma mulher, capaz de gerar vida, de subjugar com um simples olhar?

    Harley ficou paralisado. As palavras dela reverberavam em sua mente. Cada pedaço do quebra-cabeça começava a se encaixar. Ela não era apenas uma inimiga ou uma aliada temporária. Ivana era a personificação de uma força muito mais antiga e perigosa do que ele jamais havia imaginado.

    Ele deu um passo à frente, a voz saindo em um sussurro:

    — Por que está me dizendo tudo isso? O que você quer de mim? Será que… você se apaixonou?

    Ivana não respondeu imediatamente. Seu olhar penetrante permaneceu sobre ele, como se estivesse avaliando cada fibra de sua alma. E então, um pequeno sorriso curvou seus lábios.

    — Talvez… talvez.

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