— Bullying?

    — Sim, senhor Heartz. Recebemos uma denúncia anônima especialmente contra a sua filha.

    Eram três homens conversando na mesma sala, tingida de branco. O ambiente era bem arejado, com duas janelas dispostas paralelas uma à outra. Em uma das extremidades da sala preenchida por quadros decorativos e relatórios grudados em uma placa, tinha uma prateleira de madeira nobre que enaltece alguns troféus dourados e prateados, ornamentados com jóias. Na outra extremidade, próximo da porta, estava disposta uma mesa com três poltronas acolchoadas e de material de primeira classe.

    O primeiro homem estava sozinho do outro lado da mesa. Suas mãos cobertas por luvas brancas organizavam alguns papéis. O ar-condicionado da sala batia bem sobre sua cabeça, balançando suavemente seu curto cabelo preto e seu uniforme azul. Possuía insígnias fixadas no uniforme na região do peito, com a mais notável com uma estrela no centro. Ainda na mesa, uma placa de madeira proclamava seu nome com propriedade: “Diretor-Chefe, Oda”.

    O segundo homem era bem esguio e alto, sentado em uma das poltronas do lado oposto. Seu cabelo castanho-escuro era milimetricamente separado em partes iguais, retocado por gel. Seu terno era da mesma cor da madeira da mesa, alisado perfeitamente, como se vestisse um manequim. Aquele homem parecia ter saído de uma alfaiataria. Os sapatos pretos lustrosos batiam repetidamente contra o chão, ecoando por toda a sala. Suas sobrancelhas arqueadas e sua pose faziam bem seu papel em expressar sua inquietação. Suas maiores características eram as orelhas e o nariz pontudos como se fossem flechas.

    — Está mesmo dizendo que a minha Yunni é responsável por atacar alguém? — ele ergueu a cabeça, encarando o diretor. — Nossa família preza pelo pacifismo! Ousa dizer que uma garota tão jovem e pura como Yunni, educada pelas minhas mãos, forjada a partir do meu sangue e de minha santa esposa, cometeria qualquer agressão? Está claro como o dia que o que você chama de declaração não passa de inveja acumulada pelos colegas da minha filha e os senhores não enxergam algo tão simples. Isso é uma ultraje, quase blasfêmia!

    O terceiro homem estava sentado paralelo ao diretor e ao lado do elfo. Seu sobretudo vermelho só não chamava mais atenção do que sua altura e o seu broche que revelava sua patente: tenente Alucard.

    Os dois escutavam aquele homem sem mexer um músculo. Ele cruzou olhares com o diretor por milissegundos; sabiam o que estava por vir.

    — Veja bem, senhor Lux Heartz, na minha posição como dire—

    — Quieto, humano! Preciso lembrá-lo da situação na qual se encontra? — Oda não esboçou nenhuma mudança de expressão. Apenas parou de arrumar os papéis sobre a mesa e repousou suas mãos. — Esta instituição pode ser estatal, mas como CEO da corporação Heart e membro do Parlamento, tenho dinheiro meu em cada mísero tijolo deste prédio! — ele começou a salivar, depois de aumentar o tom de voz. — Sem os investimentos e a parceria com a empresa, acredito que a Coroa teria tempos difíceis para conseguir lidar com tantos gastos, entende o que quero dizer?!

    — Sim, senhor Heartz… — as palavras de Oda saíram curtas e grossas, mais como uma obrigação do que por vontade própria.

    O tenente permaneceu calado.

    — Espero que uma ofensa como essa jamais seja direcionada a minha família novamente. — o homem-manequim se levantou abruptamente, resmungando. Ajeitou seu terno de forma milimétrica e com o nariz empinado, lançou um último olhar para os outros dois. — Passar bem! — e se retirou da sala.

    O silêncio permaneceu entre os dois homens por alguns segundos, até que Oda finalmente soltou um longo suspiro.

    — Mais um pouco e ele te furava com o nariz dele…

    O comentário do tenente tirou uma risada do diretor.

    — Quase. Céus, sinto que esse homem me faz envelhecer um ano a cada minuto que passo com ele. — o diretor levou a mão ao pescoço e girou-o, tentando tirar o desconforto.

    — Se continuar assim, vai ficar mais velho do que eu logo mais. — falou o vampiro.

    Os dois abriram um sorriso amigável.

    — A esse ponto eu já vou ser uma relíquia de museu. — Oda pode tirar um pouco o peso dos ombros, mas logo retomou a face mais séria. — Você ouviu o que ele disse, certo?

    — Sim, é arriscado e ainda assim, sei que você não vai só obedecê-lo.

    — Uma denúncia continua sendo uma denúncia. Vou conduzir uma investigação cuidadosa. Farei isso sem que ele ou a família perceba. Claro, isso também incluirá o resto dos alunos e, por segurança, boa parte do corpo docente também… — Oda se levantou, abrindo calmamente a janela atrás da sua mesa. Ela dava para o pátio externo da escola, o pátio circular com a estátua no centro. — Essa escola existe para formar os futuros defensores da nação. Não posso permitir que uma disfunção social continue acontecendo por baixo do meu nariz. Seja apenas uma fofoca ou não, não vou ignorar. Além do mais, sabemos que se tratando do garoto que você inscreveu, a chance de ser só uma mentira é baixa.

    O tenente sorriu de canto da boca.

    — Nem mesmo a Escola de Defesa está livre de um comportamento assim. “Cabe aos adultos facilitarem o caminho para eles”, é algo que você diria.

    O diretor riu brevemente.

    — Algo assim. Vejo que realmente gostou do garoto.

    — Prefiro não comentar. — disse o vampiro de forma sarcástica.

    — Bom, agora que a vara-pau se foi, o que queria tratar comigo?

    Alucard assumiu um semblante mais sério, surpreendendo um pouco o diretor. De seu bolso interno, tirou uma pasta marrom com documentos lacrados e deixou sobre a mesa.

    — É a transcrição do processo interrogatório do Caçador que capturamos na semana passada, assim como os comentários da equipe. Minha capitã exigiu que eu entrasse em contato com os demais esquadrões. E você, mesmo atuando como o diretor dessa escola, ainda era o capitão do Leste. — disse o vampiro.

    — Águas passadas…

    Oda pegou o documento com cuidado e o abriu. A sala foi coberta pelo silêncio por alguns segundos enquanto os olhos do diretor corriam apressados pelas linhas de texto.

    — Isso… é mesmo verdade? — o diretor sabia que sim. Os interrogatórios de Nikuma tinham um alto grau de eficácia e não havia espaço para erros em seus relatórios.

    — Eu sei o que está pensando, mas isso só prova como a Ordem opera… Eles são capazes de criar Caçadores que mesmo sob as mais intensas ferramentas de interrogação e tortura da modernidade, não revelam informações. Acredite, eu presenciei uma das sessões e você sabe que a Frage não pega leve. O criminoso realmente não falou nada.

    As marcas de expressão do diretor ficaram mais visíveis pelas preocupação, enquanto ele fechava o documento.

    — Faz o quê? Onze anos desde o último ataque da Ordem?

    — Quase isso. — disse o vampiro.

    — Passou tanto tempo que nós achamos que estavam inativos… Tem ideia do por quê de atacarem logo agora?

    — Não. Eu e Aisaka não pensamos em nada, mas estamos fazendo o possível para ao menos nos preparar. 30% das nossas forças não enfrentaram nenhuma ameaça da Ordem antes, por isso estão sendo instruídos. Por último, Vossa Majestade liberou o comando para reforçarmos as fronteiras com um pelotão a mais liderados por um sargento especial.

    — Espero que seja apenas por precaução.

    — Todos nós esperamos…

    [ • • • ]

    [Campo de treinamento da Divisão Sul, 11:20h, três horas depois do mesmo dia]

    — Você quer realmente fazer isso? — o tenente do sobretudo vermelho estava repousado em uma árvore, observando o contraste entre os dois outros indivíduos dispostos num pequeno campo de grama e terra.

    De um lado, a capitã Aisaka Nobléte, de pé, com os braços cruzados. Não importava a circunstância, ela continuava imponente. Do outro lado, aquele que ela olhava de cima: o garoto de cabelo branco que cerrava os punhos, com um olhar empolgado.

    — Claro! — Sora respondeu, balançando a cabeça sem parar.

    Aisaka sorriu. Alucard que estava de canto levou a mão à boca. “Ah, esse sorriso, eu conheço”, pensou.

    — Esse exame físico de amanhã, eu só preciso lutar contra todo mundo?

    — Isso não é exatamente um torneio, ao menos não ainda. — Alucard se aproximou um pouco mais, de braços cruzados. — Vejamos. Sora, o que você quer ser?

    Sora o fitou de volta. A pergunta pareceu repentina.

    — Um policial!

    — Só isso?

    — Eu quero ser da Força Sobrenatural de Defesa!

    — E esse é o objetivo de quase todos aqueles que ingressam na sua escola, garoto. São mais de 1000 alunos contando com todos os três anos. Acha que todos aqueles que começam no primeiro ano estão no mesmo patamar?

    Sora pensou um pouco. Ele olhou para si.

    — Acho que não. Digo, deve ter muita gente melhor do que eu.  — ele levou a mão até atrás da cabeça, pensativo. Seu olhar se voltava realmente ao próprio corpo.

    — É claro que tem. — Aisaka tomou a frente, cruzando os bracos. Honestidade era um ponto forte dela.

    — S-sim, a nossa capitã tem razão. — o vampiro relutou em concordar. Bem, ela sempre teve uma abordagem direta. — Mas poucos são os alunos que tiveram uma experiência real de combate antes mesmo de começarem as aulas, assim como você. Ainda assim, é necessário que suas condições sejam avaliadas. É para isso que serve esse exame.

    — Mhm, faz sentido! — Sora ouviu atentamente.

    Como parte de seu cronograma inicial, a Escola Militar de Defesa Sobrenatural de Nikuma realiza uma série de testes físicos com os alunos logo no início das aulas. Além de uma instituição de ensino, é também uma instituição militar. Todos os alunos devem estar preparados para seguir com tal carreira e usar de seus poderes de forma proativa e controlada para promover o bem comum. Esses testes são realizados para registrar o estado inicial das capacidades de cada estudante, analisá-las e, em resposta, implementar rotinas de treino personalizadas para cada um.

    — Ainda assim, Aisaka, isso não é trapaça? Tenho certeza que são poucos os alunos que treinam diretamente com um capitão antes desse exame. — Alucard questionou sua esposa, mas ao olhar para a face dela, percebeu a futilidade da sua pergunta.

    — Huh, aquela garotinha disse que o Sora trapaceou pra entrar na escola, não? Então vamos mostrar pra ela como se faz. Uma elfazinha não pode contar mentiras, certo? — um sorriso um pouco macabro se abriu no rosto da capitã enquanto ela dizia aquelas palavras.

    “Céus, o exemplo que o garoto está tendo…”, Alucard levou a mão ao rosto. “Sora contou tudo que aconteceu. Tenho certeza que ela se mordeu mais do que deveria. Sempre foi assim…”

    — Por isso vai me treinar, tia?

    — Isso. Pode levantar.

    Sora estava empolgado. Mesmo que fosse apenas um treino, ele iria enfrentar a segunda pessoa mais forte que tinha conhecido.

    — Nós temos pouquíssimo tempo. O exame é amanhã, então a única coisa que consigo fazer por você é ver como estão os seus punhos. Alucard me contou do soco que deu no fantasma que prendemos. Fez um bom trabalho. — Aisaka disse, seriamente. Sora, em resposta, abriu um sorriso bem largo com suas bochechas já rosadas. — Mas!

    — hm?

    — Duvido que passou pela sua cabeça que só acertou o soco porque o alvo estava parado. Pode ficar forte o que for, nada vai adiantar se não alcançar um alvo em movimento. Então nas horas que temos, vamos fazer você dar socos com a maior velocidade que conseguir e vai fazer isso me atacando. — a capitã sorriu de forma cartunesca, pegando, sem nenhuma dificuldade, de um saco no chão duas pulseiras, cada uma com o escrito “50kg” na frente.

    O queixo de Sora caiu.

    Alucard que não deixara de observar, suspirou. “É, isso certamente é trapaça.”

    Horas e horas depois, o sol lentamente descia no horizonte, deixando como despedida um belo céu alaranjado que cobria o corpo do garoto estirado no chão. Seu cabelo branco característico estava encharcado de suor.

    — Acabou? — a voz afiada da capitã vinha das suas costas.

    — Nem…ferrando! Ainda não! — Sora gritou, pausadamente.

    Com esforço, o garoto levantou-se do chão e se virou, limpando o excesso de terra e grama preso na roupa. Mesmo arfando, ele já conseguia disparar socos na sua velocidade habitual com as pulseiras de 50kg. Aisaka, que agora o encarava de frente, continuava com seu uniforme em perfeito estado. Nenhuma gota de suor escorria pelo seu rosto. Parecia que nenhum segundo tinha se passado para ela. Alucard dormia sentado no chão. Algum desavisado poderia confundí-lo com uma pedra se não fosse sua vermelhidão.

    Sora avançou com um soco de direita para cima da capitã, mas assim como todas as centenas de tentativas anteriores, foi desviado com extrema facilidade. Ele estava acabado.

    — Sora, todos aqueles que estão na sua sala têm Mabda ou pelo menos uma capacidade biológica. Acha mesmo que golpes assim vão surpreender alguém que pode só tacar um raio em você? — a voz dela estava mais afiada do que nunca. — Reaja, ou só vai provar que o que falam de você é verdade!

    — Eu…eu sei disso! Mas…

    Alucard abriu um dos olhos, olhando para a cena e suspirando. “Que maldade…”

    Sora tentou mais um soco. A gravidade natural da pulseira acoplada ao seu pulso o puxou para baixo e quase o derrubou pelo cansaço. Aisaka não precisou fazer nenhum esforço para evitar esse último golpe. O garoto, frustrado, rangeu os dentes e bateu as palmas das mãos no chão, ajoelhado. Aquele gosto amargo que a impotência trazia consigo não era algo que ele queria provar de novo. Mas o que mais poderia fazer?

    — Você não tem nenhum poder! Então como pretende enfrentá-los?! — Aisaka gritou de novo.

    “A tia tá certa… Eu não tenho nenhuma arma. Nenhum poder, então…”

    Ele sentiu. Sentiu a terra macia escapando por entre os dedos das mãos. Ao descer o olhar, enxergou as pulseiras de peso que estava usando. Isso o levou à realização e ao nascer de um sorriso discreto.

    — Eu vou enfrentá-los…

    Subitamente, Aisaka sentiu uma mudança na voz do menino, levantando a sobrancelha.

    — usando tudo ao meu alcance! — disse Sora, atirando um punhado de terra na frente dos olhos da capitã.

    — Terra?! — Aisaka pulou para trás e dispersou a terra com uma das mãos, mas no fundo de tudo isso, ela escondia um sorriso.

    Por fim, o punho do garoto sem pulseira de peso, encostou no flanco direito da capitã. Não era forte o bastante para empurrá-la, muito menos machucá-la, mas isso não era importante.

    — Huh, isso. Era isso que eu queria. — ela o fitou com um sorriso, e com o mesmo gesto pelo garoto, foi encarada de volta. — Use tudo ao seu dispôr. O ambiente, as suas roupas, diferença de altura, não importa. Abuse dos sentidos do seu oponente, da forma como te subestimam! Absorva e use tudo que puder como uma arma.

    “Ele atirou terra para os olhos e avançou depois de arrancar a pulseira de peso. Uniu a distração da terra junto com o elemento surpresa do aumento de velocidade do seu punho para conseguir acertar o ataque”, Alucard enfim abriu ambos os olhos. “Muito bom… Em poucas horas já teve um aumento na sua agilidade. Graças a você Aisaka, ele pode conseguir alguma coisa amanhã. Mas se será o suficiente ou não, dependerá apenas dele.”

    [ • • • ]

    Os dois eram os únicos dentro da quadra, a dez metros de distância um do outro. Acima deles, um mar de gente. Alunos do terceiro ano, professores, coordenadores e o diretor. Mas para os dois, eram os únicos ali.

    Sora e Álli.

    Um que luta contra os valores do mundo.
    E outro que luta contra sua própria culpa.
    O embate começa agora.

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