Capítulo 11 – Culpa
Embora meu cérebro ainda insistisse em associar o pôr do sol dourado ao fim do dia, a realidade era que o relógio nem sequer marcava meio-dia. O crepúsculo perpétuo, que outrora fora uma fantasia, agora irritava meus nervos, acrescentando uma sensação surreal de limbo temporal.
Assistíamos de um passadiço, nossos braços cruzados em uma mistura de expectativa e inércia, enquanto as máquinas da Hammerstar realizavam as manobras da Peregrina. Uma sinfonia de aço e engrenagens que lidavam habilmente com o trabalho pesado.
Enquanto isso, Cirakari, aproveitando o momento de tranquilidade, decidiu nos atualizar sobre as intrigas e conspirações que fervilhavam nos bastidores.
— …e então, eu liguei para o Grão-Almirante Baraka e expliquei toda a situação — concluiu ela.
— Que belos filhos da puta! — acrescentou Gulliver, com sua tradicional graça.
— E como Baraka reagiu? — eu perguntei.
Cirakari fingiu rir e balançou a cabeça. — Ele me disse para fechar o acordo, disse que era melhor ter munição em Fillandril do que não ter munição alguma.
— E quanto ao restante da Almirantado? — continuei perguntando. Eu não entendia nada sobre a geopolítica de Vielovento, mas queria ajudar de alguma forma. — Eles já souberam dessas negociações paralelas?
— O Almirantado é composto por cinco nações — ela começou a explicar. — Xīn Tiāntáng é a maior e mais influente, depois vêm Lilone e Delcroix, ambas democracias com boa envergadura militar. As outras duas nações com assentos na Almirantado estão lá por razões estratégicas; Fillandril por causa de nossas academias e tradição no combate espacial, e Uzoil por seus estaleiros orbitais, foram eles que construíram a Broodmother.
— Certo… Mas isso não responde realmente à minha pergunta — eu disse, ela sugeria que deveria haver algum padrão a ser entendido na explicação, mas eu havia falhado em entendê-lo.
— Devem já estar negociando com Xīn Tiāntáng — interveio Tài. — O Grão-Almirante Lánhuā deve ter ordenado que limpassem os estoques.
— Eu não teria tanta certeza — Cirakari descartou o alarde de Tài. — Eles podem estar procurando gente grande no acordo, mas acho muito mais provável que tenham procurado a Grã-Almirante Drika…
— Não me lembro dela — interrompi.
— Drika é a Almirante que representa Uzoil — acrescentou ela. — A cidade-estado de Uzoil é estratégica, estável e tem a capacidade de reconstruir nossa frota se a Aliança conseguir perdê-la.
— Mas isso não faz sentido — tentei seguir a lógica. — Eles disseram que estão interessados em vencer a guerra e vão fazer isso se aliando a duas cidades-estados que mal conseguem formar uma flotilha? — Eu tinha aprendido recentemente que o termo significava um pequeno grupo de embarcações leves.
— Eles são empresários. Para eles, tudo se resume a risco contra retorno do investimento — disse ela, dando de costas para as máquinas que trabalhavam ao fundo. — De acordo com Baraka, eles estão apostando em um cenário onde ambas as frotas, a da Aliança e a dos Overseers, se destruam mutuamente. Se isso acontecer, terão garantido uma aliança com Fillandril e Uzoil, as duas nações capazes de reconstruir a Frota da Aliança, ou o que quer que assuma o vácuo de poder deixado por ela.
— Vocês já sabem o que penso… — Gulliver lançou com sua clássica expressão de sabe-tudo.
— Juro que se você falar de rendição de novo, eu te tranco do lado de fora da nave e uso você como armadura — disse Cirakari, séria e franzindo a testa. Todos começaram a rir enquanto eu permanecia ali, perdido na piada.
— Na verdade, eu ia dizer que já é hora do almoço e o pessoal da Hammerstar está só enrolando.
— Verdade… — disse Cirakari, checando seu relógio e fazendo algum cálculo mental. — Bom, vamos almoçar então, à tarde desmontamos a câmara de descompressão e carregamos toda essa tralha.
Caminhamos para o refeitório, localizado próximo ao hangar. Enquanto nos acomodávamos, os motores da torre que sustentava a Peregrina ganharam vida com um rugido, vibrando com um zumbido vigoroso. Diferente dos motores a diesel tradicionais ainda usados em máquinas pesadas na Terra, aqui predominavam motores elétricos. O petróleo nunca se formou na superfície estéril de Vielovento.
— Eles devem estar fazendo isso só para nos irritar… — disse Gulliver com a boca cheia.
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Com o estômago cheio e o relógio marcando meio da tarde, Tài e eu nos preparávamos para o próximo passo da operação: desmontar a câmara de descompressão da Peregrina. Sentia o peso do equipamento de rapel nas costas, uma sensação familiar que me lembrava das escaladas que fazia na Terra. A gravidade de Vielovento era mais amigável que a da Terra, mas ainda exigia cautela e precisão.
— Pronto, Fred? — Tài perguntou, já começando sua descida.
— Sempre pronto — respondi, dando um puxão final nas cordas para me certificar de que estavam bem presas. — Bora lá.
Descemos até o meio da nave, que ainda estava na posição vertical. Em uma analogia com o corpo humano, a câmara de descompressão estaria na altura do umbigo. Era uma peça robusta, projetada para suportar pressões atmosféricas e variações de temperatura no espaço.
Cirakari e Gulliver já estavam posicionados dentro da nave, prontos para operar os controles que liberariam os trincos internos. Era um trabalho tedioso, demorado e procedural. A peça pesava mais de meia tonelada e tinha conexões com vários sistemas pneumáticos, hidráulicos e elétricos da nave.
— Tudo pronto aqui dentro — ouvi a voz de Cirakari pelo rádio. — Gulliver está checando os últimos sensores.
— Ótimo — disse eu, olhando para cima onde os operadores da Hammerstar estavam posicionando os guindastes para capturar a câmara assim que estivesse liberada.
— Você pode começar a afrouxar, Fred — disse ela.
Instruí Tài sobre quais parafusos e em que ordem precisava afrouxar. Enquanto isso, eu trabalhava nas conexões pneumáticas externas, investindo longos minutos nessa tarefa aparentemente simples.
Após a desmontagem inicial, entrei na câmara e, com ajuda de Gulliver por dentro e Tài por fora, completei o desmonte. Como o pouso do dia anterior, meu conhecimento sobre o desmonte da câmara de descompressão vinha unicamente das aulas teóricas do Dr. Xuefeng. Obviamente, não era possível pousar a nave ou abrir a câmara em órbita.
— Estamos prontos, a câmara está solta — anunciei pelo rádio.
O guindaste da Hammerstar desceu até o nível da câmara, e Tài fixou os ganchos do lado de fora. Permaneci dentro, fazendo os ajustes finais enquanto a moviam para fora, depois saí e esperei do lado de fora, suspenso pela corda de rapel.
— 3, 2, … — uma contagem regressiva veio pelo rádio.
A câmara começou a se desprender lentamente, e senti o suor escorrendo pela testa sob o capacete. Agarrei-me firmemente à corda, guiando a descida da câmara com movimentos cuidadosos, enquanto Tài fazia o mesmo do outro lado.
— Perfeito, Fred. Tudo desconectado aqui dentro — disse Cirakari, com uma voz calma e controlada. — Bom trabalho, equipe! — finalizou quando a câmara saiu completamente.
— Esta noite eu pago uma rodada para todos vocês — prometeu Cirakari. — Pelo horário local ainda é domingo — terminou rindo.
A operação foi um sucesso e, apesar do calor e do esforço, senti uma satisfação genuína. Procurava um lugar para descansar dentro da Peregrina enquanto o pessoal da Hammerstar terminaria o carregamento. Foi então que minha satisfação desceu pelo ralo.
— Fred — chamou Cirakari. — Agora que tudo está resolvido aqui, você pode fazer aquela inspeção no amortecedor de calor, não vamos decolar até resolvermos isso.
Levantei-me, contemplando o trabalho à frente. Mas eu já conhecia a resposta, só estaria adiando o inevitável, ou pior, procurando alguém para culpar. A grande verdade é que eu tinha cometido um erro, e quase matei toda a tripulação.
— Cira… — balbuciei. — Repensei os resultados da simulação, não acho que a inspeção física trará muita informação nova.
— Mas você tem um veredito então? Como resolvemos o problema? — ela perguntou ansiosamente.
— Eu… — gaguejei novamente. — Acho que fiz uma besteira.
Sua expressão se transformou de inquietação para descrença mais rápido que a reação em cadeia de uma bomba nuclear. — Que porra é essa, Fred — ela disse, agora também com notas de raiva. — Você achou que enrolar e agir como se isso não fosse seu problema era uma solução?
— É que eu… — tentei explicar.
— “É que eu” porra nenhuma, Fred! — ela gritou tão alto que até o pessoal da Hammerstar parou para ouvir. — Falei disso com Baraka hoje — ela reduziu o tom para um sussurro. — Disse sobre a suspeita de sabotagem e disse que o maldito colono que eu coloquei como engenheiro estava trabalhando nisso.
Eu fiquei atônito, esperava um esporro, mas não assim. Permaneci quieto; se havia algo que eu havia aprendido sobre a vida militar nos filmes, é que não se contradiz um superior enfurecido. Ela andava de um lado para o outro no pequeno espaço da Peregrina, praticamente caminhando sem sair do lugar.
— Você tem absoluta certeza de que esse erro foi seu?
Quando ela colocou dessa forma, percebi que não podia afirmar com certeza absoluta que era meu erro. — Não, poderia ter sido um problema com o software da nave também, ou pode realmente haver algo na inspeção física.
— Certo… — Ela disse, passando a mão pelo queixo. — Desça lá, abra tudo o que precisa ser aberto e verifique cada centímetro quadrado de tubulação. Você não sai até ter absoluta certeza de que o erro foi seu. Entendido?
— Sim, comandante — respondi, cabisbaixo. — E sobre a análise de software?
— Vou pedir para alguém fazer uma análise da Broodmother.
— Entendido, vou começar então — disse enquanto apontava para descer as escadas.
— Fred… — ela me interrompeu. — Sei que você não é militar, e você nem queria estar aqui, fui eu quem te arrastou para cá — ela cobriu o rosto enquanto tentava recompor-se. — Mas você não está mais na faculdade ou no mestrado. Se você cometeu, ou acha que cometeu, um erro, sou a primeira pessoa a saber.
— Entendido.
— Não há problema em cometer erros, todos nós cometemos, mas esconder isso? É imprudente e coloca a todos nós em perigo. Há muita merda acontecendo no alto comando por causa desse erro seu.
Eu estava cansado de repetir “entendido”, balancei a cabeça e continuei a descida. Apoiei-me na antepara traseira e comecei a soltar os parafusos. Estava imerso em uma espiral de raiva e vergonha pelo que acabara de acontecer. Realmente não queria estar lá, mas uma vez que o desafio tinha sido aceito, nunca poderia aceitar falhar.
Comecei a carregar as placas de alumínio; na gravidade de Vielovento, isso era muito mais difícil do que na ausência dela em órbita. Tài percebeu meu esforço e veio ajudar.
— Relaxa, cara — disse ele com um sorriso empático. — Você nunca se esquece da primeira mijada. Especialmente se for da Cira.
Não sei como, mas ele conseguiu me fazer rir. — Obrigado. Mas não vou deixar isso acontecer de novo.
— Ainda bem que você está em uma nave de Fillandril, se fosse em Xīn Tiāntáng você estaria ferrado — ele disse, levando a placa para o lado.
— Xīn Tiāntáng é tão ruim assim? — Fiquei intrigado. Tài era Tiāntángren, mas também era sempre o primeiro a jogar pedras em seu país.
Ele suspirou, balançando a cabeça como se ponderando a resposta. — Na verdade não, muito pelo contrário, se você olhar as taxas de criminalidade e índices de desenvolvimento verá que Xīn Tiāntáng é um dos melhores países em Vielovento — disse ele, de repente com um brilho de orgulho e patriotismo nos olhos. — Uma mentalidade defensiva sempre fez parte da identidade do meu povo; nunca atacamos, apenas protegemos o que era nosso — acrescentou, com orgulho.
— Mas por que você…
— Desde cedo sempre me senti como um estrangeiro — ele me cortou. — Meu pai era militar, e toda minha família queria que eu seguisse essa carreira também. Nunca quis, mas quando começaram os rumores sobre a Aliança, achei que seria uma oportunidade de deixar meus pais orgulhosos e ao mesmo tempo conhecer culturas diferentes. Assim que entrei, exigi não ser alocado em nenhuma nave de Xīn Tiāntáng, passei por uns três até chegar na Peregrina.
— Uau, deve ser difícil para você ter que servir em uma nave de outra nação — comentei, sentindo simpatia pela situação dele. Embora, a minha nação fosse de 150 anos atrás e provavelmente não existisse mais.
— Na verdade, não, eu gosto muito da Peregrina, e dentre todas as nações estrangeiras é a Fillandril com a qual mais simpatizo… — ele pausou, como se lembrando de algum detalhe. — Pelo menos em Fillandril você quase explode sua tripulação, passa o dia inteiro mentindo para a comandante, faz ela parecer uma idiota para a Almirantado e ainda mantém sua cabeça presa ao corpo — ele disse, tentando segurar o riso. Eu queria me sentir triste, mas vê-lo segurando a risada era algo incontrolável, explodimos em gargalhadas.
Continuei trabalhando, Tài me ajudou por um tempo, mas logo depois Cirakari o chamou para outras atividades. A noite chegou, de acordo com o relógio, pelo menos. Aquele maldito pôr do sol ainda me encarava, belo, perfeito, mas irritante e insuportável após quase vinte e quatro horas.
A tripulação saiu para beber à noite, Cirakari insistiu que eu fosse também, disse que seria bom para o moral. Permaneci enclausurado nas entranhas da Peregrina, jurando a mim mesmo que só sairia quando tivesse absoluta certeza de que a nave estava segura para decolar.
A tripulação retornou e foi dormir nos alojamentos da Hammerstar. Trabalhei mais algumas horas, remontando tudo, verificando três vezes, como o Dr. Xuefeng ensinou. Exausto, com o caminho até os alojamentos parecendo impossivelmente longo, dormi ali mesmo na antepara traseira da Peregrina, onde tudo isso começou.