Capítulo 0: Detentor da Terra
Ash bateu as costas contra a terra molhada e sentiu todo o peso daquela última hora sobre seu peito. Até respirar era difícil, contraindo as costelas para dentro e as pernas parecendo dormentes. Teve que erguer um pouco a cabeça e mexeu os dedos do pé. Ainda está ali.
A merda de uma batalha inteira tinha caído exatamente no seu próprio campo. As plantações queimadas, dava pra ver a fumaça no céu tapando completamente o azul e deixando apenas a chuva cair, como se aquele horizonte escuro pudesse ter criado uma água tão calorosa.
Até fechar os olhos era difícil, mas o fez, apreciando as gotas batendo contra seu rosto e pelos rasgos e remendas da couraça. Cabeça cansada, olhos pesados, respiração pesada. Faltava pouco para a dor levar sua mente…
— Ei, acorda. — Um chute na costela. Ash levantou metade do corpo na hora, se levantando e encarando o desgraçado ao lado. — Quem te deu permissão para morrer? Te vi lutando, e ainda não acabou. Levanta, Ash.
— Merda. Isso dói pra cacete, Melph. — A mão na costela não adiantava em nada. A dor continuava se expandindo para as costas e cintura. — Podia ter me acordado e só pedido para eu levantar.
Melph deu a gargalha de sempre, com os cantos da boca erguidos, e olhos pressionados, mostrando que o maxilar quadrado era sua característica principal, além dos cabelos grisalhos e um corpo extenso e meio parrudo.
— E eu perderia a chance de fazer você xingar? — Ele negou com a cabeça e apontou para Ash. — Ainda não está na sua hora, e parece que a minha também não.
Observando bem, a armadura de Melph era diferente, mais compacta do que antes, e também tinha lama e sangue espalhado até mesmo em seu pescoço. As marcas da batalha tinham sumido, como? Ash queria perguntar, mas viu seu colega de batalhão erguer o olhar para longe. As chamas estavam subindo o milharal, labaredas violentas balançando violentamente com o vento soprado para o leste.
Ash e Melph ergueram o olhar mais uma, dessa vez para uma imensa tela no céu. Um imenso ‘97%’ estava marcado em vermelho. E do outro lado, ‘3%’, contabilizando em azul. Melph deu uma risada larga pondo a mão na cintura.
— Parece que ainda temos chance. — Seu otimismo era contagiante. — Bom que somos nós dois, Ash. Imagina ter que lutar contra essas criaturas tendo um daqueles merdas que fugiu com o rabo entre as pernas?
Ainda sério, Ash ficou de pé. A dor da cintura foi convertida para uma raiva fria, encarando o terreno lamacento e cheio de sangue. Os corpos das criaturas jogados, suas cabeças largas cortadas ao meio, seus braços e pernas decepados escondidos entre pedras e lama. E as armas dos que morreram protegendo aquela terra ao redor, com o pouco brilho que tinham depois de terem seus mestres mortos.
— Eles não estão fazendo pouco da gente? — Melph ainda tinha as mãos na cintura. Ambos viam as criaturas saindo de dentro do milharal. Carcaças ossudas, com um tentáculo com espinhos e quatro braços. Sem olhos, o que deveria ser uma vantagem, se não fosse a audição incrível. Eram grandes, quase dois metros cada. — Devem estar achando que somos pouca merda, tenho quase certeza.
— E não somos?
Ash desceu um pouco da lama ainda com a mão esquerda na costela e abaixou com dor. Jogou a terra molhada para o lado e pegou uma das espadas no chão. Assim que levantou, o vento soprou com mais força e a Energia Cósmica ressoou por todo o seu corpo. A lâmina reagiu e sua cor cinzenta começou a clarear indo até o azul.
— Bom, está na hora — disse Ash abaixando o braço. — Quanto tempo temos que segurar eles mesmo?
Melph deu uma risada e pegou um machado jogado no chão, pondo em seus ombros:
— O quanto conseguir. Segure os da direita, vou pegar os da esquerda.
O antigo Capitão dos ‘Decaídos’ passou gargalhando. Era sua marca pessoal. Um homem que não tinha medo, sempre superando as estrelas e carregando o peso de todo o mundo nas costas. Esse era o admirável Melph Reis. Se não fosse pela sua grandeza, Ash nunca teria chegado até ali. Ash Outno Size, um nome comum, de uma família comum, mas chegando até o fim do mundo para salvar o que restava da humanidade.
Os números no alto declaravam que o terreno tinha sido conquistado cerca de 97% pelas criaturas. E aqueles poucos porcentos que ainda os mantinham com a ira erguida justamente postos a dois homens. Ainda tinha pessoas a se salvar, as cidades afastadas, os Baloeiros iriam levantar voo. E mesmo que aquele momento fosse apenas de um passo para a morte, ainda seria lembrado pelos grandes homens no futuro.
Quem leria uma história sobre dois homens que morreram tentando salvar 3%?
Ash ergueu o canto da boca e soltou uma risada triste.
— Morrer assim deveria ser uma dádiva, não é?
Melph o ouviu e virou o rosto.
— O que foi? Está se cagando de medo logo agora? Pare de resmungar e venha logo. Aqueles malditos não vão ser mortos sozinho. — O Capitão brandiu o braço, o chamando. — Temos uma última missão. E olha só, está chovendo. O grande ‘Senhor da Chuva’ não deveria estar otimista? Você tem essa alcunha por alguns motivos, e chover na batalha sempre foi um deles.
O sorriso de Ash morreu e ele deu seus primeiros passos. O silêncio que antes havia entre as duas partes foi selado. A Energia Cósmica liberado pelos dois humanos deixou os inimigos angustiados e irritados. Seus berros carregavam desdenho, raiva e ódio. O tremor do solo fez ambos darem uma risada.
— Parece que estamos no lugar certo e na hora certa mesmo — disse Melph Reis. Ele virou o rosto e encarou seu amigo. — Vamos fazer nossos 3% valerem a pena. Até o outro lado, Ash.
O rosto do seu capitão era sempre daquele jeito risonho. Dessa vez, no entanto, estava sério. Então, Ash abriu um sorriso para ele.
— Até o outro lado, Capitão.
Havia um conto, de que antes da humanidade cair, os Felroz, criaturas de nascimento desconhecidos, nunca tiveram receio de invadir as terras e dizimar as vidas, comer corpos ou beber sangue. Eram ferozes e implacáveis, nem mesmo os mais hábeis em conjurações ou na Arte das Armas puderam contrariar suas forças descomunais e instintos apurados.
A humanidade esteve a beira da destruição. E os Felroz conheceram o Senhor da Chuva e o Capitão de Reis.
A partir dali, a humanidade ganhou tempo. Não muito. Porém, o suficiente para que se armassem.
Essa é a história que leva o nome de ‘Velhos Punhos: Destino’..
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