Capítulo 109 — O Sagrado
O que é o vento?
Para a ciência, uma agitação no ar proveniente de movimentos massivos de alta pressão para regiões cuja pressão atmosférica é inferior, capaz de criar perturbações violentas e correntes capazes de transformar um mar calmo numa tempestade.
Para os mitológicos povos antigos; uma vontade divina, a capacidade de alterar o espaço e despejar sobre eles a fúria, ou benção divina.
Para Theo, além da explicação científica, foi a forma que o mundo encontrou para se adaptar ao universo.
Astrônomos estudaram por séculos, mas, até hoje não encontraram um local no sistema solar que indicasse a presença dos ventos. Isso porque, para Theo, o vento seria a forma de agitar a atmosfera e sinalizar ao universo: “Existe vida nesse mundo”.
Pode parecer algo fantasioso e fora da lógica, mas, a forma com que Theo trata o vento como o elemento absoluto e guardião da vida, é o que torna sua ligação tão gloriosa.
Essa é a diferença do Jovem Mestre Lawrence para todos os controladores e dominadores do vento: a forma de tratar seu elemento como prioridade.
Além disso, o vento, para Theo, seria uma extensão da sua própria mente. Uma forma de compreender o mundo: a liberdade através da vida.
Tendo isso em mente, esse combustível de liberdade foi o que fez Theo avançar contra um espírito do vento. Contudo, a sua liberdade não foi o suficiente para engolir os objetivos de um espírito primitivo.
A mandíbula de Khun se materializou como presas de energia, cujo se fecharam contra Theo e causaram sua primeira derrota no Horológio de Boreas.
Depois que foi derrotado de uma maneira frustrante — com apenas um golpe — Theo despertou repentinamente no mundo físico. Vendo Artur, Malcolm e Carl sentados e debatendo alguns metros à frente, Theo buscou acordar para a realidade.
— Não, caraí. Tô te falando — persistiu Artur.
— Absolutamente — confirmou Carl.
— Nunca parei para reparar nisso… — resmungou Malcolm. — Mas, e daí? Vamos, loirinho.
Theo arregalou os olhos, Artur, por sua vez, se surpreendeu; nem ele tinha notado o despertar de Theo, sendo que estava virado de frente para o rapaz, ao contrário de Malcolm, que estava de costas.
— Não vai comer?
— Tô sem fome — retrucou.
— Certeza?
— Absoluta…
— Ótimo, então está descansado — disse Aidna, zombando da situação de Theo. Embora fosse o mais saudável, estava notoriamente abalado por dentro. As orelhas denotavam sua situação precária.
— Aidna…
Os ombros de Theo caíram quando notou a druida em um estado físico bom, acordada e tão alegre como sempre. Porém, seu temperamento não estava condizente.
— Levanta daí e vem comigo.
☽✪☾
O vento frio e esnobe da floresta entrelaçou pelo espaço que distanciava Theo e Aidna. O rapaz pensou que o estresse estava direcionado para ele, mas, a realidade estava para o lado oposto.
Aidna estava irritada pelo que Nora a obrigou a fazer; vestir roupas formais e nada elegantes para ela. Uma roupa completamente preta e militar, com emblemas de estrelas para todos os cantos e entalhes de esmeralda. Seu vestido verde e completamente cheio de decotes tinha sido trancado no guarda-roupa da própria general, agora, estava usando uma roupa que cobre totalmente seu corpo.
A druida estava irritada por esse motivo.
— Onde está seu traje? — perguntou Aidna.
— Que traje?
— Não te entregaram??!
— Não.
Uma veia saltou de sua testa.
“Aquela puta, vadia, desgraçada!” xingou mentalmente, pensando em Nora esbanjando um sorriso esnobe.
— Para onde estamos indo? — perguntou Theo, tentando escapar da indignação de Aidna.
A druida se manteve em silêncio, buscando por todos os lados uma árvore em específico.
— Me disseram que está por aqui… — resmungou Aidna.
— O quê?
Aidna continuou olhando para todos os ângulos, espiando entre as brechas da floresta enquanto seu falcão voava pelos céus buscando o mesmo objetivo; a árvore sagrada.
— No druidismo, a cultura de meu povo, o carvalho é a árvore sagrada. Uma ligação entre os mundos, pois é do mesmo material que a Yggdrasil.
— Pensei que a Yggdrasil não fosse feita de algo tão simples…
— Simples? O carvalho é uma fonte sobrenatural de vida, poder, graciosidade… Não é apenas o material, mas o imaterial. Por que acha que os druidas vivem tanto e são tão poderosos?
— Hm… Os desviantes também são assim.
O orgulho de Aidna foi esfaqueado.
— Nós somos melhores.
— Serem expulsos do mundo por uma raça inferior diz o contrário…
— Tem algo a me dizer, gato?
Theo sorriu abafado.
— Tô só tirando sarro. Eu sei o que o carvalho significa para vocês, estudei sobre sua raça no ensino inicial. Mas, por que estamos atrás disso?
— Vamos usar para curar os ferimentos do Sor Glaciel e tentar ajudar aos defensores, que estão seriamente infectados com algo além do meu conhecimento. Iremos pegar algumas cascas para fazermos remédios, como a pasta.
Theo se surpreendeu, pois era a primeira vez que ouvia falar da pasta druida vindo de um membro daquela raça. Para as pessoas da atualidade, a maioria dos ensinamentos druidistas são mitos, já que ninguém consegue replicar como as lendas afirmam. Porém, se uma druida afirma, é um fato.
A mitológica pasta druida é uma fonte de energia retirada do próprio carvalho e utilizada para fins curativos. Ao entrar em contato com a pele do desviante, além disso, com a energia nas veias de chakra e com a própria energia psíquica, a pasta é capaz de acelerar o fator de cura humana em até dez vezes. As queimaduras de Jack estariam curadas em algumas horas graças a isso.
Depois que descobriu o objetivo de Aidna, o rapaz começou a ajudá-la em sua busca. Theo sacrificou minimamente sua energia, conduzindo por seus músculos para aumentar a velocidade enquanto criava breves impulsos de vento para se mover com precisão no meio da floresta.
Rastros de energia, tingidos por um verde-esmeralda, rasgaram a floresta por todos os cantos possíveis. Aidna, no entanto, permaneceu caminhando e procurando com calma, afinal, sua energia estava escassa e voltando de um processo perigoso.
A energia gasta não foi em vão, já que a eficiência da busca aumentou drasticamente; em apenas alguns minutos, Theo achou uma enorme árvore de carvalho. Uma estimativa para sua idade? Mais de cem anos.
Um sorriso bobo e alegre formou-se no rosto de Aidna, contudo, dissipou-se quando entrou em contato com o cenário, ao qual Theo também estava pasmo ao presenciar. De fato, uma bela árvore, mas, manchada pela morte.
O ambiente estava escuro, tendo o próprio carvalho como culpado por tapar a entrada do sol. O bosque cobria a região, mas, se ausentou durante vinte metros ao redor da árvore, deixando um campo de grama morta e lama pelo chão. A mana ambiente estava negativa, o que não incomodou somente a Aidna, mas afetou a Theo — mesmo que ele não conseguisse diferir perfeitamente a frequência da mana por ser um usuário de éter.
Pequenos buracos ambientavam o local, ao mesmo tempo que árvores caídas ao redor destacavam e anunciavam a presença de um combate.
Corpos de todas as idades estavam pendurados em cada galho do carvalho, desde crianças a idosos e mulheres despidas.
Cadáveres de alguns guerreiros, notável pelas roupas e armas jogadas nas proximidades, estavam empalados ao pé da árvore. Embora, provavelmente, aquela chacina tivesse ocorrido há algumas décadas, o cheiro de sangue ainda era presente na lama.
A frente da árvore sagrada, alguns metros diante de Theo, estava uma enorme cruz de quase três metros, suspendendo o corpo de um ancião com cabelos longos. Seus olhos estavam fundos.
Devido a sua longevidade, os druidas não envelheciam nem após a morte, já que seus corpos eram conservados por algumas décadas graças ao domínio da dimensão espiritual.
Aidna podia sentir que aqueles cadáveres pertenciam à sua própria raça. Theo podia sentir do mesmo, já que a energia emanada pelos corpos eram similares a que Aidna exalava por todos os cantos.
— Me perdoa… — disse Theo, mas foi interrompido.
— Você tem culpa do que, caralho? — Aidna puxou ar para os pulmões, notando a grosseria, ela se redimiu. — Desculpa, querido.
Theo a consolou, abraçando a druida por trás e pondo seu queixo acima dos cabelos cinzas, enquanto Aidna segurou as mãos de Theo e processou melhor a situação.
Aquela região em específico era o principal campo de batalha entre as raças.
Os elfos enfrentavam os druidas que, por sua vez, tinham os desviantes como seus inimigos.
Druidas, elfos, anões, humanos, desviantes, fadas… Todos são uma mesma espécie, no entanto, com práticas diferentes e formas diferentes de enxergar o mundo, separando-se assim em sociedades que, nos dias atuais, são enxergadas como raças diferentes.
No fim, eles sempre lutaram para ganhar seu espaço no mundo, já que algumas raças eram tratadas como minoria. Porém, essa luta durou muito e, infelizmente, aquele povo pacífico do druidismo, os servos do verdadeiro Merlin, se tornaram extremistas ditatoriais que só viam um Deus acima de tudo. E era por esse Deus que eles estavam dispostos a queimar o mundo.
Aquela cena era o resultado de um conflito entre uma tribo druida e os elfos. Era notável graças aos ferimentos nos corpos; feitos por lanças específicas, encantadas com o efeito “Podridão”, original dos elfos.1
Aidna fungou.
Era doloroso ver uma cena daquelas, ainda mais vendo que eram povos pacíficos, possível interpretar desta forma graças a forma de vestir dos druidas.
As tribos mais simples e pobres eram as mais pacíficas, já que não recebiam auxílio do império, considerados desertores. Possuíam guerreiros para momentos como aqueles, mas, não adiantava em nenhum dos casos.
Vislumbres de um evento passado rodeou os olhos de Theo, similar a cena que estava presenciando no momento. Uma catástrofe local, onde uma gangue inteira havia sido massacrada e desfigurada por um único homem…
Liam Mason.
O sangue, a velha sensação do sangue escorrendo pelas pontas dos dedos; o odor da morte; a sensação de pisar em alguns membros dos cadáveres escondidos da luz; os resmungos daqueles que ainda estavam vivos ecoavam por sua mente, vagando junto das folhas ao vento.
— Eu até purificaria… — disse Aidna, rasgando completamente as memórias intrusivas de Theo e o trazendo para a realidade. — Mas… esse mundo não é da minha conta. Espere aqui, eu vou pegar um pouco do material…
Aidna se libertou do abraço de Theo e caminhou descalço pela lama, tentando ignorar aquele massacre. Theo, por sua vez, retornou ao seu estado melancólico.
Os únicos raios de luz que escapavam pelos galhos cessaram minuciosamente.
Theo se sentiu em um mundo escuro e plano, sem nenhuma deformidade. Para onde quer que olhasse, estariam manchas de sangue se arrastando até o horizonte.
Dessas manchas, o chão tomou a forma da mais perfeita escuridão, agarrando Theo e o puxando para o nada.
Não apenas o massacre da gangue Bluztes, mas, todas as mortes que Liam Mason não sentiu o peso em sua vida. Todas as mais de setenta mil pessoas afetadas pelo infame general Destroyer estavam murmurando para Theo. Com assobios e sussurros tentadores, propício ao inferno.
Aquele era o peso que Theo tentou evitar, mas infelizmente aquele fardo era dele agora.
Aidna o puxou pelo braço esquerdo, trazendo sua visão novamente para a realidade.
— Vambora. Já é o suficiente.
A druida carregava uma mochila em suas mãos, materializada por sua própria energia. Aidna escalou um pequeno morro e rastejou entre as vinhas locais para a estrada, esperando Theo acompanhá-la consequentemente.
Assistindo uma última vez aquela chacina, os olhos de Theo despencaram gravemente. Sua cabeça começou a latejar e os olhos arderem, a expressão em seu rosto estava como a de quem finalmente entendeu o peso de seus atos.
Todavia, ele já havia entendido isso há mais de uma década.
O que Theo realmente entendeu naquele momento foi que; não adiantava lamentar por tudo aquilo ou culpar-se por isso, ele tinha apenas que esquecer já que não tinha ninguém que pudesse o ouvir ou perdoá-lo.
Na realidade, ele não merece um perdão.
- este efeito faz a carne apodrecer na região que foi atingido. Se o indivíduo acertado não morrer no instante, passará o resto dos dias sentindo seu corpo apodrecendo lentamente.⤶