Capítulo 75 - Olhos frios.
Abrindo caminho por entre a relva alta, eles chegaram ao centro, onde o combate com o primeiro urso ocorria, ou ao menos era o que Eduardo pensava. Depararam-se, no entanto, com o grande cadáver vermelho do urso, caído sobre a grama amassada. A grande cabeça rubra, que estava separada do corpo, era segurada pelo cavaleiro, o qual olhava para os lados com uma expressão sombria.
Ainda era possível escutar sons de luta, vindos mais ao longe. Eduardo pensou em onde Caio poderia estar naquela confusão de gritos e mortes. Não o vira no centro, ou a direita, então só poderia estar à esquerda. O lugar de onde vinham os gritos que escutava.
Mas não era nele que sir Alóis parecia prestar atenção, e sim no que estava adiante. No espaço coberto pela grama que separava as vintenas do centro com os poucos homens juntos de Eduardo.
Em volta dele, ocorria um verdadeiro pandemônio. Homens gritavam desesperados enquanto se compactavam em uma formação defensiva, em um espaço livre de grama, o qual provavelmente havia sido derrubada sobre os seus pés durante a luta. Eles espetavam a grama ao redor com as lanças.
Vês ou outra um deles gritava e caía, desaparecendo dentro da vegetação.
— Prestem atenção ao nosso redor. Besteiros, na retaguarda. O que vimos antes com certeza está por aqui — alardeou o tenente. Ele ainda segurava uma lança, não demonstrando qualquer intenção de ter a haste de volta. Eduardo continuou a carregá-la.
As pouco mais de três dezenas de homens que seguiram o comandante junto de Eduardo lançaram olhares nervosos para os matos. Outro grito soou e Eduardo viu três soldados segurando outro para que este não fosse arrastado para dentro da grama. Outros dois espetavam as lanças no que quer que estivesse lá.
Mesmo sendo segurado por três homens, o guarda foi puxado para a grama e seus gritos se tornaram mais altos e desesperados.
Enquanto observava, Eduardo viu algo grande se mover entre a grama próxima. Outros homens ao redor também, ficando alarmados com a velocidade da criatura.
Ouviram um som vibrante e gutural. Uma longa apareceu por cima da folhagem, balançando até se abaixar e uma cabeça comprida e escamosa surgir. Seus olhos frios pareceram fitar os homens à frente, um por um.
— Basilisco — gritou o tenente. — Reúnam-se.
Os guardas se uniram em uma massa de couro, lanças e medo. Eduardo apontou a haste na direção da criatura, percebendo um movimento à sua esquerda. Um momento depois, um homem ao seu lado caiu, sendo arrastado para dentro da grama. Eduardo pulou para o lado esbarrando em outro homem, que o empurrou de volta. Uma dor atravessou suas costelas e ele quase caiu, se equilibrando com o apoio da haste. Pôde ouvir os gritos agonizantes do homem arrastado. Gritos de gelar o sangue.
A cabeça do primeiro monstro desapareceu e Eduardo viu movimentos na grama, em mais de uma direção.
— Acalmem-se! Mantenham-se unidos! — gritou o tenente.
Um dos homens não pareceu ouvir. Ele correu, adentrando a grama e se afastando do resto dos guardas. Outro o seguiu, correndo em direção oposta. Eduardo os observou se afastarem, gritando para voltarem. O segundo homem soltou um grito e desapareceu, sendo sugado pela vegetação. O primeiro continuou a correr. Havia soltado sua lança, movendo-se rapidamente. Pareceu a Eduardo que ele poderia fugir. Até algo saltar por sobre a grama.
Eduardo viu um corpo esguio com mais de um metro e meio de comprimento da cabeça a longa e sinuosa cauda, garras longas e curvadas, e uma boca repleta de dentes pontudos, que abriu antes da besta cair sobre o homem, o derrubando. A cauda do monstro balançou no ar como um chicote a estalar e então desapareceu na grama. Apenas os gritos de agonia do homem puderam ser ouvidos. Eduardo apertou o cabo da haste com mais força.
— Gowber, depressa, reúna seus homens conosco — Bradou sor Alóis, ainda segurando a grande cabeça do urso carmim com uma mão, enquanto brandia a grande espada prateada com a outra.
— Manter formação, vamos nos aproximar de sir Alói — gritou o tenente, tirando Eduardo do estado de choque.
Os homens se mexeram temerosamente. Eduardo sentia cada passo pesar mais que o anterior. Queria dizer a si mesmo que não tinha motivos para ter medo. Lutara e sobrevivera ao urso. Mas a dor lacerante nas costelas o faziam lembrar que fora por pouco. Recebera apenas um golpe, forte o suficiente para quase o tirar daquele mundo e mandá-lo novamente para o rio.
E nada desejava menos do que isso. Ainda mais da forma que vira aqueles homens morrerem. Garras longas e curvas. Dentes pontiagudos.
A coluna parou a pouco mais de dez metros da zona livre de vegetação. Algo se movia entre ambas.
Quantos havia? Eduardo se questionava. Dois, no mínimo. Mais do que isso, provavelmente. Não podia pensar, relembrou. Se pensasse, teria medo. Se tivesse medo, morreria.
Eduardo ouviu o tenente praguejar e então gritar:
— Besteiros, disparar!
Os besteiros se posicionaram em seu típico ritual de “apontar, mirar e disparar” e então lançaram uma saraivada de dardos na vegetação à frente, onde movimentos podiam ser vistos. Ouviram berros esganiçados, e as formas se moverem, circulando a vintena.
O tenente ordenou para que os soldados se movessem em direção a unidade de sir Alóis.
Eduardo correu, ouvindo os sons vibrantes e guturais das criaturas atrás da coluna. Poucos metros o separava. Gritos agonizantes reverberaram em seus ouvidos. Eduardo olhou para o lado procurando por uma das criaturas, e então assustou-se, caindo para trás, quando uma delas aterrissou sobre o homem correndo à sua frente. O basilisco afundou suas garras no soldado, as pernas musculosas prenderam a cabeça e corpo no chão, enquanto os dentes se fecharam sobre o pescoço. O homem gritou enquanto o enorme lagarto arrancava sua traquéia, silenciando sua voz e o reduzindo a um corpo débil repleto de espasmos.
O basilisco levantou a cabeça. O focinho salpicado de sangue. Sua língua farejou o ar, e ele virou o longo pescoço encarando Eduardo com um enorme olho verde cinzento. A pupila diagonal se tornando cada vez mais fina.
Seu estômago se revirou, mas Eduardo forçou sua coragem a continuar dentro de si. Ele se colocou em pé e apontou a haste. O basilisco se ergueu. A cauda balançando enquanto o monstro se preparava para atacar, abrindo sua boca, contraindo pernas e esticando suas garras.
De repente um dardo o acertou no ombro e a criatura sibilou de dor. Alguns besteiros retardatários continuavam a atirar os dardos. Um deles se aproximou de Eduardo, que não desperdiçou a oportunidade, e estocou com sua arma. A ponta da haste foi em direção ao corpo do basilisco, que demonstrou uma flexibilidade espantosa ao desviar. O corpo delgado e escamoso da criatura se dobrou, fazendo a haste perfurar o ar. Ela se abaixou e rastejou pelo mato, se aproximando pela perna esquerda de Eduardo. Ele voltou a arma, rodando seu corpo e fazendo-a girar em um corte diagonal, que foi enfraquecido pela grama. Não acertou o monstro, que se afastou ainda mais, saindo de sua vista.
Então ouviu um grito a poucos metros e descobriu onde ele tinha ido.
— Vamos, matador, corra — falou o besteiro, batendo no ombro de Eduardo e se pondo em movimento.
Eduardo correu, alcançando finalmente o espaço livre de vegetação, onde os homens do cavaleiro estavam. Eles o saudaram apontando lanças trêmulas. Seus rostos assustados e pálidos suavam como latas geladas de refrigerante ao sol. Eduardo não podia culpá-los depois do que viu. Os ursos carmins, embora selvagens e fortes, não matavam com tamanha frieza cruel. O que causava um estranho sentimento de temor ao assistir tal cena.
Gritos desesperados dos homens caídos ainda podiam ser ouvidos. Mais homens saíram do matagal. O tenente entre eles. Eduardo percebeu que metade da vintena não havia saído dos matos.
— Gowber — Chamou sir Alóis, descendo do cadáver do urso carmim e abrindo espaço entre os soldados até o tenente, que estava ao lado de Eduardo.
— Meu senhor, o que faremos agora? — perguntou o tenente, arfando.
O cavaleiro riu, soltando a cabeça do urso sobre os pés.
— Quisera eu saber. A muito não luto contra basiliscos. E nunca tinha visto nenhum desse tipo. Muito estranhos eles são.
— O que quer dizer, meu senhor?
— Perdeu tua arma, Gowber? — Sir Alóis questionou, concentrando seus olhos em Eduardo, ou na haste que ele segurava.
— O rapaz mostrou bom uso dela, meu senhor. Confirmou sua alcunha a pouco — explicou Gowber.
— Entendo, espero que a use tão bem contra esses bastardos — Os olhos do cavaleiro pareceram brilhar com uma cor diferente. Pôs sua longa espada em guarda.
Eduardo então percebeu algo inquietante. Os gritos cessaram e os gramados se tornaram silenciosos. A única coisa a ser ouvida era o soprar do vento, que fazia as relvas balançarem. Não viu os corpos das criaturas a se moverem.
— Quantos vocês viram? — perguntou Sir Alóis.
— No que consegui perceber, três ou quatro, meu senhor — Gowber respondeu.
Eduardo sentiu um tremor em sua espinha. Torcia para que fossem apenas dois.
Sir Alóis pareceu pensar em voz alta por um momento:
— Eles não pararam de nos cercar mesmo após a vossa chegada. Considerando o quão coordenados são, não duvido que tenham se dividido para atacar as duas forças ao mesmo tempo quando perceberam que seriam franqueados. Talvez sejam oito.
A cor dos soldados próximos pareceu perder a cor. Eduardo sentia seu estômago gelar e seu coração se espremer dentro do peito. Oito daquelas coisas… Era terrível demais para se pensar.
Escutaram gritos de aclamação distantes, e sir Alóis voltou a sorrir.
— O pequeno fedelho dourado conseguiu enfim — disse.
— Senhor, o que faremos? — perguntou um dos soldados. Era possível ver pânico transparecendo em sua face.
O cavaleiro suspirou.
— Não desejo ouvir de meu querido, condal e irritante escudeiro que ele me resgatou. O que o senhor seu pai pensará de mim se ouvir tal coisa?
Ele caminhou à frente dos homens, respirou profundamente e ergueu a voz.
— Homens do condado de Wallis. Homens da terra e do rio. Ouvem isso? Viemos exterminar os ursos, essas bestas malditas que mataram nossos semelhantes — Ele gesticulava e erguia a espada conforme falava. — Esse som é o som da vitória. Matei um dos grandes monstros vermelhos na vossa frente. Eduardo, desgraça de ursos, fez jus a seu nome, e pelo que ouvimos, o último monstro que permanecia em pé, caiu. Matamos três bestas selvagens que transformam os ossos de alces em migalhas e lobos em gatinhos. O que são esses basiliscos para nós, se não lagartos a incomodar nossos pés?
Os homens responderam com um brado de ânimo. Eduardo sentia uma adrenalina correr por seus membros e arrepiar os pêlos de seu corpo.
Olhou para o cavaleiro, percebendo que o brilho em seus olhos se intensificara.
— Coragem homens. Voltaremos para casa e com peles de urso para nossas mulheres, couro de lagarto para nossas notas e histórias heróicas para nossos filhos — Sir Alóis ergueu sua espada, fazendo a lâmina refletir o brilho do sol em toda a sua extensão. Uma luz de esperança era o que parecia.
Os homens gritaram, e Eduardo se viu junto do coro.
Então ouviram o sons dos animais. Vibrantes e profundos, como o ranger de uma velha engrenagem a girar após muito tempo. Cabeças surgiram através da vegetação. Longas e escamosas. Eduardo girou sobre os pés. Contou seis, cercados de todos os lados.
Os lanceiros apontaram as armas. Os besteiros se reuniram no centro e se preparam em seus protocolos. Alguns subiram no cadáver do urso. Eduardo imaginou se teriam melhor visão de lá.
Os basiliscos avançaram em ritmo compassado, com passos lentos. As cabeças balançando para frente e para trás, garras curvas à frente do corpo, e caudas balançando levemente.
Eduardo esqueceu-se de respirar por um momento. Suas mãos estavam trêmulas. A haste pareciam querer escorregar através delas. Toda a energia que reunira com o discurso parecia lhe abandonar naquele momento.
— Não tenham medo — A voz de sir Alóis lhe chegou ao ouvido. — Eles tocam as mentes de suas vítimas com esse temor antes de atacar. São criaturas diabólicas.
Eduardo recuperou o fôlego e empunhou a haste com mais firmeza, de alguma forma renovado após as palavras do cavaleiro.
— Oito — Ouviu Gowber sussurrar. — Aqui há seis, onde estão os outros dois?
Eduardo foi coberto por uma sombra repentina. Olhou para cima, vendo algo “voar” metros acima de sua cabeça e cair com um estrondo sobre os besteiros acima do urso. Um dos basiliscos. Notou depois que não foram apenas um. Quatro das criaturas rasgavam a carne dos homens com suas garras e presas no centro da formação.
Logo depois, os outros atacaram.
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