Capítulo 6 — Quem diria que temos outros personagens?
Fazia cerca de seis dias que Rodrich se encontrava longe de casa. Desde que foi golpeado e sedado enquanto estava voltando de um dia cheio de trabalho, sua rotina se resumia a estar preso em um lugar escuro dentro de uma caravana, sendo mal alimentado e constantemente apagado pelos seus captores. Nos poucos momentos de lucidez que tinha, checava se as três moças que o acompanhavam nessa viagem maldita ainda estavam vivas e com saúde. Fora isso, toda aquela jornada parecia um pesadelo cujo fim seria sombrio e trágico.
Porém, Rodrich acordou mais uma vez e a situação era estranha. Primeiramente, não estava fedendo a suor e urina, como de costume. Embora cheirasse a sabão neutro, o fato de estar conseguindo sentir o aroma de qualquer outra coisa além do próprio fedor já era um mérito. Não apenas isso, mas não sentia correntes em seus braços e pernas. Seu corpo estava deitado e coberto ao redor de uma fogueira.
— O que diabos está acontecendo aqui? — murmurou ele, sentando-se no chão.
O fato de não ter a menor noção do que estava acontecendo, ainda mais sendo um detetive, fez suas suspeitas se levantarem ao máximo. Quem quer que o tenha capturado, tinha recursos para poder viajar através das cidades sem ser notado ou incomodado. E adicionando o fator que a vigilância imperial sobre os bens de transporte eram rígidas, claramente existia algum tipo de corrupção entre os oficiais.
E aquilo era exatamente o que ele estava investigando. Uma organização misteriosa que crescia debaixo do nariz do Santo Império, com raízes e fundações em várias casas nobres e antigas.
— É bom vê-lo acordado novamente, Sr. Lamar!
Aquela voz feminina trouxe certo alívio. Uma mulher residia sentada ao redor da fogueira no seu lado esquerdo. Embora não tivesse muito tempo para conhecer um ao outro dentro da caravana, dava para saber facilmente que aquela moça não era alguém da nobreza, embora parecesse com uma.
Ela estava atingindo uma idade de bastante maturidade, possivelmente algo entre trinta e cinco e quarenta anos. Suas mãos eram bem cuidadas e pareciam macias, indicando que não realizava atividades manuais desgastantes. Seus cabelos loiros longos pareciam ser sedosos e ainda tinha vestígios de maquiagem em seu rosto quando se conheceram.
— Srta. Smith! O que está acontecendo? Onde estamos? E porque estamos fora da carroça?
Melissa deu um sorriso, balançando um copo meio vazio.
— Então é assim que costuma conduzir seus interrogatórios? Parece que não perdeu a prática.
— Perdoe-me, senhorita. Não quis enterrá-la com perguntas, só estou meio confuso com a nossa situação atual. Isso aí seria café em seu copo?
— Ah, não! É chá de raiz de ginseng. Ainda tem um pouco, quer? — respondeu ela, oferecendo o copo. — Ainda está quente.
Em circunstâncias normais, ele rejeitaria por cortesia. Mas a falta de disposição em seu corpo falou mais alto, então ele aceitou. Enquanto bebia, notou que as duas moças que acompanharam sua viagem estavam deitadas, dormindo em frente a fogueira. Elas também pareciam limpas, o que aumentava ainda mais as dúvidas que permeavam a mente do detetive.
— Então, Srta. Smith…
— Por favor, me chame de Melissa. Já nos conhecemos a tempo o bastante para evitarmos as formalidades.
— Certo, Melissa. Então, quer me contar o que ocorreu até agora? Porque quanto mais eu observo, nada faz sentido.
A moça pegou o bule próximo a lareira, enchendo um novo copo e o qual Rodrich segurava. Com seus olhos esverdeados encarando as chamas, ela começou a falar.
— Eu estava inconsciente como todos vocês, até que senti uma agulha em meu braço. De repente, estava acordada, com meus sentidos ao máximo. Depois de alguns segundos, retomei o meu normal, mas estava tudo escuro. Não havia mais correntes em meus braços e a grade estava aberta.
— Então quem…
— Um homem. Até agora não consegui ver o seu rosto direito, aqui é muito escuro. Mas ele era enorme, até mesmo para os padrões dos soldados imperiais atuais. Quando me dei conta, ele tinha você no braço esquerdo e elas duas no braço direito. Tudo que ele fez foi olhar para mim e dizer: “Eu não dou banho em mulher”, com aquela voz grave.
Rodrich se encolheu, percebendo que seu corpo tinha sido completamente vasculhado e esfregado por outro homem, além do seu pai na infância, enquanto estava inconsciente.
— O desgraçado ainda me vestiu como se eu fosse uma boneca de criança — murmurou, enquanto encarava as chamas em profundo pesar.
— Quando terminei de limpar, secar e vestir as garotas, ele carregou vocês para cá. Ele disse também para dar esse chá quando vocês acordarem, que nos ajudaria a recuperar nossas forças. Desde então, ele se enfiou naquela barraca e não saiu mais.
Rodrich ergueu uma sobrancelha e olhou para Melissa.
— Só isso? Ele não disse mais nada? Nenhum nome, afiliação ou propósito? Ou o porquê de ele ter feito isso?
— Olha ele com as perguntas de detetive — respondeu Melissa, bem-humorada.
— Perdoe-me, mais uma vez. É só que muita coisa não faz sentido. Onde é que estamos? Até onde me lembro, havia cerca de doze pessoas ou mais acompanhando essa caravana, onde elas estão agora? E a mulher que os comandava, será que ela fugiu? Muitas perguntas, preciso andar um pouco para reorganizar meus pensamentos.
Com certa dificuldade, o detetive que já tinha cruzado a linha dos cinquenta anos se pôs de pé, apoiando-se em seus joelhos. Sua visão estava um pouco embaçada, ainda mais sem seus óculos. Mesmo assim, seus instintos afiados não perderam o fio.
— Vê se não vai muito longe, detetive. Não acho que a entrada do acampamento está barricada à toa — disse Melissa.
Com um aceno de cabeça, Rodrich começou a analisar seus arredores. A primeira coisa que notou foi como aquele espaço era relativamente grande. Mesmo tendo apenas uma barraca e uma tenda enorme, tinham vários pontos de fogueira espalhados, indicando que várias pessoas se reuniam por ali.
O que era perturbador eram as marcas no chão. Ele já tinha percebido as várias marcas de sangue espalhadas, mas era em tão pouca quantidade, como se fosse o fruto de um conflito rápido e unilateral.
— O sangue não foi espirrado, ele escorreu até aqui, indicando que houve o ferimento primeiro e depois o sangramento. Possivelmente uma perfuração. Parece que os alvos foram perfurados com bastante intensidade e velocidade, a ponto de não conseguirem reagir. Mas não tem pólvora, então não parece ter sido causado por alguma arma de fogo.
Rodrich também observou várias marcas de algo pesado sendo arrastado em direção ao portão do acampamento. Algo tão pesado quanto uma pessoa adulta. E algumas das marcas estavam sincronizadas, como se estivessem sido puxadas ao mesmo tempo por uma pessoa só, já que havia passos entre as marcas.
— É muita força em uma pessoa só…
Como se isso não fosse peculiar o bastante, havia um círculo de terra queimada próximo a uma das toras. Nas proximidades, Rodrich encontrou o que tinha sobrado de uma kusarigama.
— Que arma esquisita…mas essas correntes parecem bastante fortes.
Não havia marcas de sangue ali, mas claramente havia sinais de luta. Ele estava prestes a voltar, quando seus pés pisaram em algo estranho. Ao conferir, os restos de uma granada incendiária chamaram sua atenção. O pino do seu detonador estava bem ali do lado, mas por algum motivo, não havia rastros de detonação. Ao olhar mais de perto, Rodrich viu algo que o surpreendeu.
— Gelo? Dentro de uma granada incendiária? Que diabos aconteceu aqui?
Rodrich Lamar era conhecido em Polimnia como um homem capaz de ver muito além das pistas. Com base no que tinha visto até agora, o sujeito em questão é alguém com um enorme porte físico, extremamente habilidoso com armas e que consegue lidar com vários inimigos ao mesmo tempo. Além disso, seus objetivos eram misteriosos e tinha a capacidade de fazer os outros o segui-lo através da sua demonstração de força.
Ou seja, um sujeito perigoso e nada confiável.
Voltando para a onde a fogueira residia, percebeu que outras tinham acabado de acordar. Ainda pareciam um tanto confusas e meio atordoadas, como era de se esperar. Naquele meio, ele era o mais velho, seguido por Melissa.
— Sr. Lamar! Onde é que nós estamos? — perguntou a moça de cabelos castanhos, enrolada em seu cobertor.
O detetive tomou um gole de chá para matar a sede.
— Em algum longe de casa, Lavignia. Ainda não consigo saber ao certo, mas eu darei um jeito de nos levar de volta.
Lavignia não era mais adolescente, porém não tinha avançado o bastante na maturidade. A sua idade era algo em torno dos vinte e cinco anos, com uma margem de erro de um ou dois anos. Seus cabelos castanhos ondulados atingiam a ponta do seu ombro e tinha sarda um pouco acima do nariz. Seus olhos castanhos eram afiados quanto a sua língua em determinados dias.
— E o que foi que aconteceu aqui? Por que estamos do lado de fora? Finalmente enviaram alguém para nos resgatar? — ela perguntou, bastante curiosa.
Rodrich e Melissa se entreolharam por alguns segundos em silêncio, deixando a moça confusa. Os dois passaram uns bons minutos explicando tudo que tinha acontecido naquele meio-tempo, sem poupar nenhum detalhe. Tanto Rodrich quanto Melissa já tinham vivido o bastante para saber como lidar com pessoas, mas esse não era o caso de Lavignia.
— Como assim ele não disse quem era? E vocês apenas confiaram nisso, assim de boas? — perguntou ela, indignada.
Melissa deu de ombros, evitando a todo custo perguntar retoricamente como ela conseguiria para um homem que poderia parti-la ao meio do mesmo jeito que se parte um graveto.
— Ele matou todas aquelas pessoas sozinhas, detetive? Todos aqueles bandidos, apenas com as próprias mãos? Como você garante que ele não é um psicopata que simplesmente quis nos roubar para seus próprios objetivos?
— Lavignia! Acho que você está exagerando um pouco — disse Rodrich, tentando acalmar a garota.
— Exagerando? O senhor ao menos sabe onde a gente está? Podemos estar em outro continente, numa hora dessas! Sem a menor chance de vermos nossas casas, famílias ou amigos! Meu deus, eu vou ter um troço!
— E essa garota? — Lavignia apontou para Lilian, que estava recostada em seu ombro. — Ela precisa de um nebulizador e dos seus remédios para tipo, ontem!
Rodrich respirou fundo. Embora fosse irritante, sabia que histeria era algo comum em situações complicadas como essa. Ainda mais que a mais jovem do grupo tinha um grau avançado de asma, a ponto de deixá-la completamente exausta a maior parte do tempo, sem forças até para comer direito.
— Eu tenho ciência da situação, como todos nós aqui. Mas não podemos perder tempo com discussões sem sentido, Lavignia. Precisamos descobrir quais são as intenções daquele homem e se podemos confiar nele! — disse Rodrich.
Melissa já tinha uma opinião formada. Ele os soltou, os limpou e ofereceu chá de ginseng, uma raiz rara e cara, que ela disponibilizava apenas nos melhores hotéis da rede que trabalhava. Embora não soubesse ao certo suas intenções, tinha o sentimento que elas não eram malignas.
— Até agora, eu sei que ele é um homem com a força, o treinamento e a capacidade de matar sem fazer nenhuma bagunça. De um ponto de vista lógico, e se eu concluir que ele é um assassino treinado, que ao perceber nosso valor como reféns, esteja pensando em nos usar como moeda de troca para conseguir mais dinheiro? — ponderou Rodrich, encarando as chamas.
— De um ponto de vista lógico, você estaria certo — respondeu Huan Shen.
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