Capítulo 7 — Gostoso e low-profile, como todo homem tem que ser!
Rodrich quase saltou em direção ao fogo quando aquela voz grave e calma atingiram seus ouvidos. Sua reação, como a de todos ali ao redor da fogueira, foi instintivamente olhar para a origem daquelas palavras, ansiosos.
Iluminado pela luz das chamas em meio a um céu escuro e estrelado, Huan Shen residia ali em pé, observando-os de volta. Quando Melissa disse que ele era grande, não era hipérbole. Sua altura quase atingia os dois metros, algo que deixava Rodrich um tanto frustrado, por ser quase trinta centímetros menor. Ele usava uma regata branca completamente marcada em seu corpo, delineando seu peitoral liso.
Seus braços não eram brincadeira também. Grandes, bem torneados e repleto de tatuagens. Suas mãos eram enormes, capazes de envolver completamente o rosto de uma mulher. Embora sua calça fosse um pouco larga, era possível ter os vestígios de uma perna bem trabalhada, capaz de realizar golpes tão poderosos quanto um machado.
Seu rosto não era bonito como o de um príncipe dos livros ou de um modelo com o rosto simétrico, liso e claro para a alta sociedade. Era sólido, viril e um pouco carrancudo. Não tinha bigode e nem barba. Seus cabelos negros pareciam serem longos, ao ponto de alcançarem o seu esterno, embora estivessem amarrados em um coque na parte superior da sua nuca. Algumas mechas conseguiam fugir, como uma do lado da sua orelha esquerda e a que saia do canto direito da sua testa e residia pendurada em sua orelha direita.
Sua pele não era tão clara, possuindo um tom natural levemente bronzeado. Seus olhos tinham um tom de azul diferenciados. Eram escuros como as profundezas do oceano, vítreos como o gelo profundo e perigosos como a hora mais escura da noite.
“Esse pessoal tá me encarando sem dizer absolutamente nada tem uns trinta segundos…”
Em silêncio, ele se sentou ao lado de Rodrich, que instintivamente se afastou após se lembrar que aquele homem tinha passado a mão pelo seu corpo enquanto estava inconsciente. As moças, com exceção de Lilian que estava quase caindo no sono mais uma vez, tentavam evitar o contato visual sempre que possível.
— C-como assim de um ponto de vista lógico? É o que você está fazendo, é isso? — perguntou Rodrich, nervoso.
Em suas mãos, Huan Shen carregava uma sacola de pano. Ao abri-la, estava cheio de sanduíches embalados. Possivelmente vieram de alguma lanchonete de Santa Marília, já que não pareciam ser tão velhos. Todos os encaravam com bastante dúvida, se perguntando o que ele iria fazer. Encostando um dos sanduíches embalados em sua narina, seguido por uma breve olhada na parte de trás do pacote.
— É, tudo certo com a validade.
Ele jogou um sanduíche embalado para cada uma das pessoas ali. A princípio, todos se entreolharam entre si por alguns segundos, mas não demoraram para ouvir os instintos da fome que os consumiam. Rodrich tirou peito de peru com requeijão, Melissa recebeu um frango defumado com molho parmesão, Lavignia ficou em dúvida entre carne moída ao molho branco ou atum ao molho tártaro.
— Merda, eu comia esse tipo de coisa no meu tempo de estudante — murmurou Lavignia.
Embora tivessem seus gostos particulares, aquele sanduíche parecia o manjar dos deuses depois de tanto tempo com fome. O que fez Huan Shen sentir pena, pois não conseguiam apreciar apropriadamente a combinação da carne com o molho. Algo que ele não poderia mais sentir. Dois minutos depois, ele estava distribuindo mais uma rodada de sanduíches.
— Eu teria guardado para depois, mas nunca se sabe o dia de amanhã, né? — disse Huan Shen, observando o saco vazio.
Pela primeira vez em quase uma semana, Melissa estava tendo um orgasmo alimentício. Aquela combinação de pão branco de quinze centímetros, com picles, tomate, cebola e pasta de alho, seguido por um pedaço generoso de frango defumado e mais uma camada de requeijão cremoso que chegava a escorrer pelo canto da boca, fazendo seus olhos se revirarem.
“Eu vi o que você fez aí, autor desgraçado.”
Quando já estava na metade do segundo, percebeu que a única pessoa que ainda não tinha comido era o que forneceu comida a todos. O que a fez sentir um pouco de pena, pois apesar de ele claramente ser uma máquina ambulante de matar, ele parecia tão imerso em seus pensamentos olhando as chamas, como uma criança que se distrai na hora do jantar.
— Você não vai comer com a gente? — perguntou ela.
Ele balançou a sacola vazia, dando de ombros.
— Eu dou um jeito depois.
De repente, Huan Shen sentiu a mão do detetive sobre seu ombro direito. Ao virar o rosto na direção dele, percebeu o semblante sério de Rodrich. Não tinha medo, apesar da idade e da diferença de tamanho. Aquele era um homem que parecia ser respeitável.
— Já vivi muito e não sou do tipo que fica fazendo rodeios. Quem é você e o que quer da gente?
Um silêncio se estabeleceu entre todos ali. Até mesmo Lavignia, que estava apenas comendo na sua enquanto acariciava os cabelos de Lilian, parou para prestar atenção. Dependendo da resposta dele, poderia no mínimo tirar o sono de todos que estavam lá.
— Eu sou apenas um viajante. Servi um tempo no exército, consegui uma dispensa honrosa e me pediram para me livrar de alguns bandidos no meio do caminho. Dei sorte que eles estavam na minha rota e agi. Agora, estou aqui com vocês, rumo às terras do Santo Império.
Rodrich era um detetive experiente, capaz de achar verdade no meio da mais intricada mentira. Para ele, aquele homem claramente não estava falando todos os seus objetivos, mas não parecia haver mentira em suas palavras. Porém, embora falasse o idioma imperial com perfeição, havia traços de sotaque em suas palavras, indicando que ele não era nativo do Santo Império.
— Eu não quero nada de vocês — continuou Huan Shen. — Se quiserem me acompanhar amanhã até Santa Marília, está tudo bem para mim. A partir de lá, acho que podem se virar.
Aquilo aqueceu os corações tanto de Rodrich, quanto o de Melissa. Mesmo que ele não tivesse expressado diretamente, era perceptível que aquele homem não os deixaria perdidos em uma floresta desconhecida.
— E você sabe onde estamos? Aliás, qual o seu nome? — perguntou Rodrich, curioso.
— Me chamam de Huan Shen (幻 神). Na língua imperial, seria algo como “Espírito Ilusório”.
— Seus pais eram realmente criativos — disse Lavignia, rindo.
— Não é o meu nome de nascimento, mas é assim que fui chamado e é assim que prefiro continuar sendo. De qualquer forma, estamos dentro da Selva de Concreto. Bem dentro dela, aliás.
Imediatamente, um silêncio se estabeleceu entre todos ali. As duas pessoas mais velhas pareciam assustadas, como se estivessem acabado de escutar sobre a presença de algo horrível.
— Selva de Concreto? Sr. Shen, por favor, me diga que isso é algum tipo de brincadeira! — respondeu Melissa, horrorizada.
Rodrich permaneceu em silêncio, ligando as pontas na sua cabeça. Ele tinha notado o solo mais esbranquiçado que o normal, o cheiro dos emissores ligados, a chama na fogueira anormalmente azul e o cheiro ruim de enxofre pelo ar. Mesmo assim, a ideia de estar na Selva de Concreto era absurda para ele, já que ninguém entraria ali sem motivos de força maior.
— Receio não ser uma brincadeira, Melissa — disse Rodrich, encarando as chamas. — O que me faz pensar, quem nos odiaria tanto a ponto de nos colocar nesse lugar?
Mais uma vez, um silêncio se estabeleceu entre todos ali presentes. Huan Shen começou a pensar sobre o que tinha escutado sobre a Mão Sombria. Não tinha muita informação detalhada ou útil, mas o fato de todos ali serem seus prisioneiros e ainda não serem corpos para serem despejados, indicava que alguém não os queriam por perto. Que pudessem ser eliminados sem chamar atenção da comunidade local.
— Conseguem pensar em alguém que possa odiá-los a ponto de fazer isso? — perguntou Huan Shen, despretensiosamente.
Era impressionante como os habitantes do Santo Império eram adeptos dos segredos e do silêncio. Embora fossem bons em manter suas bocas fechadas, suas reações falavam mais por si do que poderiam imaginar. Rodrich tinha uma expressão de desdém, como se sua pergunta tivesse sido tola. Ele era um detetive, talvez um detetive imperial. Era óbvio que teria inimigos tanto fora quanto dentro da polícia.
Melissa, por sua vez, fechou seu semblante, como se algo estivesse a irritado. Aquilo parecia ser ressentimento, como se tivesse sido traída ou humilhada por alguém. Porém, como ela aparentava não saber quando foi levada, indica que o evento ocorreu antes do seu sequestro, possivelmente sendo o fator de ignição que levou a essas circunstâncias.
Mas Lavignia era um caso à parte. Ela era tão jovem quanto ele, não tinha vivido o bastante para ter inimigos mortais, mesmo aparentando ter a personalidade nada cativante. Seus lábios estavam trêmulos, seus dedos inquietos, ombros curvados para frente e um olhar distante e pesaroso.
Aquilo era culpa. Algo que ele entendia muito bem.
“Essa organização deve ter as costas quentes em muita gente grande para conseguir agir dessa forma. De qualquer jeito, não é problema meu. Assim que eu os entregar em Santa Marília, levo a garota a um médico e a mando para casa. Foi um trabalho bem fácil, até.”
— Já que todo mundo aqui é tão silencioso, espero que quando chegarem em uma delegacia de polícia amanhã, abram o bico e contem tudo o que sabem.
Apoiando-se em seus joelhos, Huan Shen voltou a sua estatura enorme mais uma vez.
— Foi um prazer jantar com vocês — disse ele, balançando a sacola vazia. — Eu vou tirar um sono em algum lugar por aí. Com sorte, vejo vocês de manhã.
Lavignia se levantou rapidamente, indignada.
— Como assim “até amanhã”? Você não vai ficar aqui com a gente, ajudando na guarda noturna? E se alguém ou alguma coisa entrar aqui?
— A entrada está barricada, os muros são altos e o lugar está cheio de emissores. As chances estatísticas de sermos invadidos são muito baixas.
— Mas não nulas! E se precisarmos de você e estiver longe? Como ficamos?
O emissário ficou encarando-a por uns três segundos, incrédulo com aquelas palavras. Foram resgatados, comeram, tomaram banho e agora tinham um lugar para dormir em paz, mas ainda não paravam de exigir coisas. Balançando a cabeça negativamente, ele deu as costas e seguiu seu rumo.
— Ei! Volte aqui! — gritou Lavignia, frustrada.
— Você vai acordar a Lilian desse jeito! — disse Melissa, repreendendo-a.
A jovem se sentou mais uma vez em frente a fogueira, bastante irritada.
— Isso foi muito desnecessário, menina! Já imaginou se ele ficasse irritado e resolvesse nos abandonar aqui? No meio da Selva de Concreto?
— Ah, que se foda! — respondeu Lavignia, furiosa. — Parece que eu não consigo ter sorte na vida nem mesmo uma vez sequer.
Sua fúria foi mais uma vez transformada em tristeza, fazendo com que ela se deitasse e formasse uma concha maior em Lilian, que estava completamente imersa no seu mundo dos sonhos. Embora relutasse, Lavignia sabia exatamente o porquê tinha ido parar ali e quem a mandou. E sabia mais do que ninguém que não tinha ninguém para culpar além de si mesma.
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