Capítulo 14: Ordem e Voz
Crosu acordou levantando a cabeça apressado e bateu a nunca contra um pedaço de madeira, soltando um gemido dolorido. Tentou levar a mão ao lugar da dor, e seu braço nem se mexeu. Ali, naquele momento, percebeu que estava longe de ter sonhado que tinha sido derrotado.
O velhote era, sim, real. A batalha inteira em sua mente, a surra que tomou e não ter acertado um mísero golpe. No meio da noite ainda, tendo vantagem, o seu inimigo largou a arma e o bateu com os punhos. Foi a pior derrota que já tinha recebido desde que desafiou Hugo. O seu braço de ferro não movia direito também. Por que?
— Acordou só agora. É lento até pra isso.
Ele virou rapidamente a cabeça. Liana estava ao seu lado, presa por correntes avermelhadas contra um pedaço de madeira. Ela tinha o pescoço erguido, num olhar orgulhoso, mas o encarou cheio de raiva.
— Era só ter matado um cara só. — Seus dentes pressionaram um contra o outro. Era quando ela estava com mais raiva. Sempre fazia aquilo quando não tinha mais onde esconder seu ódio. — Conseguiu estragar até um plano simples.
Crosu piscou os olhos algumas vezes. E depois encarou ao redor. Foram presos em uma casa com apenas três paredes. O teto estava bem acima, tendo um segundo andar, e pessoas usando aquelas nojentas fardas brancas andavam para lá e pra cá. Ele viu o dia lá fora, estava quase no meio do dia. Isso indicava que estava desacordado por mais de 10 horas.
— Eles vão nos interrogar — disse Liana enfiando os dedos nas correntes e recebendo uma queimadura nos dedos. Ela parou de mexer, fazendo uma careta de dor. — Merda. Não fale nada, entendeu?
— Sei disso.
Crosu respirou fundo e olhou para frente. Merda nenhuma. Ele estava ali? Dante estava com os braços cruzados, sentado em um caixote de madeira, com a cabeça jogada para trás. De olhos fechados e soltando alguns roncos de tempos em tempos.
Alguns Oficiais passaram, comentando.
— Como ele consegue dormir com esse barulho todo?
Outro deu de ombro, sem se importar.
— Ele faz parte do Esquadrão da Oficial Dalia, é normal que sejam todos estranhos. Ouvi falar que ela foi uma das poucas pessoas que bateu de frente com o Alto Comando, e não teve punições.
Os comentários foram se arrastando, se tornando apenas falácias e suposições. Crosu descobriu o nome do velhote, era Dante. E ele não tinha nenhum atributo especial. Dava para sentir a energia dele, era fina, rasa.
Liana sentiu desgosto ao saber que o velhote quem tinha ganhado de Crosu.
— Como perdeu para alguém tão fraco, idiota?
— Duvido que teria ganhado dele também.
Liana ergueu a cabeça. Um homem estava parado, recostado na madeira que ambos foram aprisionados, e sorriu vendo Dante dormindo.
— Muita gente acha que as pessoas estranhas tendem a ser colocadas em patamares ou prateleiras altas. Mas… — o homem apontou para o velho — aquele ali é uma pessoa bem comum usando da experiência pessoal para ganhar um pouco de dinheiro para salvar os pais. Acreditam nessa história?
— Por que um velho faria isso? — Liana perguntou e se deu conta de que respondeu a pergunta. — E que se foda ele e vocês. Não quero saber a história de ninguém desse lugarzinho imundo.
O homem deu dois passos à frente, bem descontraído, e abriu os braços.
— Deveriam querer saber quem acabou com o plano de vocês, mas acredito que não devam gostar muito disso já que estão com raiva. — O Oficial suspirou e sentou na cadeira, ficando de pernas cruzadas. — Eu nem queria saber quem são vocês, mas sou obrigado, sabe? Minha vontade era só degolar vocês e ficaria por isso. Usava o Cubo de Frequência e conseguia comunicação com os seus pares e rastreamos pela Alta Frequência. Infelizmente, não sou quem manda.
Ele falava a verdade, Crosu sentia. A intenção assassina daquele homem estava alarmada. Se ele sacasse sua espada e o cortasse em pedaços, seria intencional e pessoal. Dava para sentir, mesmo com aquele sorriso na cara, que a verdadeira intenção era retirar suas cabeças dos corpos.
— Sinto que quando estamos perto da morte, revelamos um pouco da nossa personalidade mais emotiva — continuou o homem. — Me chamo Rutteo. E quero dizer que virem até meu acampamento foi a ideia mais idiota do mundo. Um plano ruim, eu até entendo o lado de vocês. Tentam a sorte no mundo aqui fora, sendo perseguidos pelas criaturas e tentando fazer um pouco de nome no lugar que chamam de casa. E sou muito sincero quando digo que não gosto de vocês ou da atitude que tiveram. Sou um homem honesto. Amo algumas coisas e odeio outras.
— Você fala demais — comentou Liana. Num movimento brusco, cuspiu no chão, bem diante dos pés de Rutteo. — Esse lugar, essas pessoas, ninguém aqui vai sobreviver se não voltarmos. Ele vai vir, no meio da madrugada ou durante uma tarde, uma imensa cortina de fumaça vai tapar isso tudo e vão ver seus piores pesadelos se formando.
Rutteo ficou parado um tempo e deu uma risada, batendo palma. Todos ao redor pararam de se mexer para ouvirem. O Oficial balançou a cabeça, decepcionado, e balançou o dedo de um lado para o outro.
— Não, não. Eu não tenho mais esse negócio de misticismo. Nem de suspense. Sou uma pessoa mais dramática, mas odeio que sejam comigo. Por isso, quando eu falo, vocês escutam. E por escutarem, me falam coisas que normalmente contariam para outras pessoas.
Liana engoliu em seco. Não era possível. Hugo havia comentado sobre isso uma vez. Dentro da Capital, um soldado poderia fazer com que você revelasse seus pensamentos, seus sonhos e pesadelos sem ao menos perceberem.
Sua habilidade não era das mais fortes, porque a tortura poderia ser um método mais eficiente. No entanto, esse homem era extremamente perigoso.
— Você é Rutteo Rutga — disse Crosu, impressionado. — A ‘Voz Ativa’.
O Oficial abriu a boca, chocado, e depois deu uma risada.
— Sim, sou eu. Fico lisonjeado por me conhecer, garoto. Eu fico muito orgulhoso de mim mesmo por você me conhecer. E você, qual o seu nome?
— Crosu…
Crosu fechou a boca na hora e mordeu a língua de propósito. Liana viu o colega ficar irritado por ter respondido. Ela mesmo também o fez momentos atrás. Mesmo que o Oficial diante dela não fizesse nada para machucá-los, ainda sentia essa energia no seu peito, a fazendo querer conversar.
— Crosu. Crosu. — Rutteo batia no queixo, pensando. — Parece um nome bem comum. Não conheço. Bom, fico feliz que tenha me contado. E, por que vieram para cá, Crosu? Tem alguma coisa que pertence a vocês por aqui ou que tomamos?
Liana se debateu na corrente, tendo a pele dos braços queimada. E parou de se mexer.
— Olha, eu não quero que se machuquem. Parem com isso.
Crosu balançava a cabeça várias vezes. Se ele ouvisse a voz de Rutteo, conversaria com eles de forma automática. Não podiam… passar nenhuma informação.
Liana percebeu que todos os Oficiais estavam escutando atentamente, mas nenhum deles falava nada. Duvidava de que a habilidade era seletiva, então, se ela não respondesse, ele nada poderia tirar. Nenhuma informação. Nada.
Raramente, Liana tinha que se manter quieta. Engoliu o próprio orgulho de responder aquele fudido na sua frente. Não falaria nada. Nem que eles cortassem seus pulsos e os costurassem. Nunca mais. Nem que eles me matem.
— Vejo que vocês não gostam muito de conversar comigo — disse Rutteo. — Peço desculpas por isso. Só que hoje, literalmente hoje, eu não posso ser tão bonzinho assim. E digo mais, tiveram muito azar vindo aqui. Se tivessem atacado um dia atrás ou dia depois, poderiam ter alguma chance de sucesso. Porque se me conhecem como ‘Voz Ativa’, então devem ter mais medo ainda da pessoa que carrega a alcunha de ‘Ordem Viva’.
A pressão aumentou. No meio do silêncio, os passos daquela mulher ficavam mais altos, mais próximos. Quantas vezes ouviu sobre a demônio que habitava na Capital? Quantas histórias sobre a única Oficial que tinha uma habilidade considerada irreal, desleal? Quantas vezes no meio das aulas ouviu sobre a ‘Ordem Viva’? E que se houvesse alguém que não deveriam enfrentar, ela era.
O coturno preto, com a farda branca. Eles não queriam encarar a demônio nos olhos. Não queriam vê-la.
— Levantem a cabeça. Os dois.
A Energia Cósmica se misturou no meio dos seus músculos. Não queriam, e por isso seus músculos tremiam. A cabeça, pescoço e ombros chacolhando ao mesmo tempo que a pressão os obrigava a erguer seus olhos.
A mulher de face indiferente, de olhos cruéis e lábios rosados. Era exatamente como Hugo havia lhes mencionado. Nunca enfrentar a ‘Ordem Viva’.
— E por que, Hugo? — Liana perguntou da primeira vez que ouviu sobre ela.
— Porque vocês não vão sair de lá vivos. — Foi a resposta de Hugo. Dura e seca. — Nem mesmo eu a enfrentaria de frente. Por isso, não sejam pegos. Não por ela.
Praguejou sozinha. Liana odiava o tempo, odiava os planos, odiava aquele momento em específico. Um dia a mais ou um dia a menos, como o maldito do falador tinha dito. Se tivesse esperado só mais um dia, ela não estaria ali. E o plano teria sido um sucesso.
— Agora. — Dalia recuou dois passos e parou ao lado de Rutteo. — Vocês vão responder todas as perguntas dele.
A pressão em suas gargantas, e a torção nos músculos. Ao mesmo tempo, ambos responderam contra suas vontades:— Sim… senhora.
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