Capítulo 30: Falta de Tudo (I)
— Ele está bem. Estou dizendo que sim, Marcus. — Dante abriu os olhos pela terceira vez depois de ter desmaiado. Estava começando a ficar irritado consigo mesmo por não conseguir se manter acordado por tanto tempo. — Apenas converse com eles. Deixe que eu tomo conta das coisas aqui em cima. As crianças vão me ajudar.
O céu estava escuro. Já era noite? As estrelas diziam que sim. Uma noite sem lua tão escura. Até mesmo os pontos brilhantes distantes pareciam piscar mais fortes.
— Fico feliz que tenha acordado. — Clara ficou mais perto, sentando na cadeira em frente a cama. — Foi um pouco complicado te trazer para cá, mas tivemos bastante ajuda dos colegas do Marcus.
As costas não doíam mais. Ele curvou-se para frente e soltou um arfar bem aliviado.
— Onde estou agora?
— Nossa base temporária.
Era bem alto, um prédio com grades para todos os lados, uma imensa plantação disponibilizada bem ao fundo, mas não tinha luz o suficiente, apenas uma lamparina que Dante supôs ser feita de óleo, iluminando os pequenos brotos que nasciam na terra.
— Obrigado.
As palavras dele pegaram Clara desprevenida.
— Por que está agradecendo? Foi você quem se arriscou por mim.
— Estou falando de tudo. — Ele colocou os pés descalços no chão. A pedra era fria, mas essa sensação trouxe a sensação de que estava realmente vivo. — Por ter me ajudado ficando do meu lado no meio da lama. Eu não sei como se lavou, mas eu preciso dessa dica. Estou imundo.
Clara soltou uma risada leve.
— Está apenas um pouco fedido porque caiu onde fica a bosta dos Felroz, mas isso é de menos. Seu cheiro não me incomoda nenhum pouco.
— Fico contente pelo menos por isso. — Dante coçou o rosto e sentou-se ficando ao lado dela. — Eu ainda estou tentando assimilar isso tudo, então me desculpe se fui um pouco mal-educado antes. Esse lugar… eu não sei como posso voltar para casa, nem mesmo sei onde estou. Desculpe.
— Você agradece e se desculpa em momentos errados, sabia? Um homem como você não deveria ser tão pessimista. Eu conheço muitos que não teriam a mesma sorte que você teve. — Clara fez uma pausa na mesma hora. — Não. Não conheço alguém que teve a mesma sorte que você teve.
— Sorte, não é?
A palavra não soava tão incrível quanto parecia. Ser mandado para um lugar qualquer, sem saber quanto onde estaria a Capital, sem saber como seus pais estavam. Sem poder encontrar com Talia e abraçá-la depois que chegasse da Balsa.
Esperava que sua irmã estivesse bem junto dos Oficiais. Que não fosse maltratada, nem chamada de Estrangeira.
Ainda sentia certa raiva por Radius ter dito aquilo, mas… era passado. Seus problemas agora eram outros.
— Por que aqui é tão escuro? — perguntou a Clara. — Não possuem luz?
— Luz? — a palavra saiu da boca dela como se fosse uma risada com deboche. — Lá na Capital, o lugar que veio, vocês tinham eletricidade?
— Sim, a cidade inteira era iluminada. — Dante virou o rosto. A cidade inteira estava apagada. Nada além de barulhos guturais lá embaixo podiam se ouvir. — Vocês não possuem luz…
— Lembra da regra que eu disse? Se move de dia, se esconde de noite. Aqui em Kappz, nós não podemos simplesmente caminhar de madrugada.
Clara esticou uma garrafa de água pela metade.
— Na verdade, nós não temos quase nada. Temos praticamente cem pessoas para alimentar, mas não temos como caçar de dia porque a área onde os animais correm tem a mata bem fechada. — Clara apontou para um canto escuro, a esquerda. — Daquele lado, nós temos uma base pequena onde fazemos vigia na antiga torre de rádio, eles esperam um alce ou um javali aparecer, mas faz semanas que não saem da toca. E daquele lado — apontou para a direita, onde uma sombra mais escura tomava forma no fundo — tem uma base onde fazemos a coleta de água semanalmente. Então, não tomamos banho todos os dias.
— Vou ficar fedendo assim sempre?
Clara deu uma risada.
— Seu senso de humor no meio da escuridão me conforta bastante.
Dante riu baixinho em resposta a ela.
— Eu tenho que ser otimista. Estou num lugar sem conhecer nada com pessoas que eu não conheço, então, prefiro ter um pouco de esperança que, pelo menos, um bom banho eu possa ter.
— Ah, eu queria que fosse tão fácil assim. — A expressão de Clara mudava sempre que o assunto trocava. — Durante o dia, a água fica com uma coloração esverdeada, então não podemos fazer a coleta. E quando a água fica boa para fazermos a coleta, bem durante a noite, os Felroz aparecem. Eles ficam lá até amanhecer.
A sensação que sentia dela era de derrota completa. Sem comida, sem água, sem suprimentos, vivendo escondida em cima dos prédios, não fazendo barulho durante a madrugada inteira para que pudessem sobreviver durante os dias claros.
Os moradores da Capital não sofriam desse mal. E nem no vilarejo dos seus pais. Ele nunca precisou se esconder durante as madrugadas.
Existiam outros povos, outros lugares que não tinham nada que a Capital possuía.
— Eu não sei ir embora, Clara — disse Dante cortando o silêncio. — Não sei nem por onde começar, na verdade. Você diz que eu posso estar em qualquer lugar do mundo inteiro, e a Capital pode ficar do outro lado. Mas, eu aprendi muito quando estava na Capital, conheço bastante sobre os Felraz e sou bom batendo neles.
— Marcus ficou bem surpreso com isso.
Os dois riram.
— A última parte é verdade. Antes de vir parar aqui, eu lutei contra mais de trinta deles de uma só vez, mas agora. — Ele tocou a própria barriga e depois o peito. — Se eu fizer muito esforço, posso ficar mais quebrado ainda.
— Não vou pedir que faça nada para nós. Sei que quer, mas as pessoas não te conhecem.
— Espero que enquanto eu estiver por aqui, eu possa pelo menos conseguir ajudar a coletar remédios ou água. Não vai ser difícil.
Clara levantou e olhou para um lado bem escuro da cidade. Dante se esforçou para ficar de pé e viu uma luz amarelada piscar duas vezes bem mais alto do que estavam. A luz piscava e apagava, e depois acendia novamente.
— É o Marcus — explicou Clara. — Nós sempre nos comunicamos dessa maneira para que todos que estejam espalhados possam entender que tudo está tranquilo durante a noite. Ah, sobre você buscar água e ajudar, eu posso deixar Marcus com você para isso?
— Sem problemas. Ele só apontou uma arma pra mim umas três vezes ontem.
Ela realmente estava se divertindo com as palavras de Dante.
— Dizem que o número três é o da sorte.
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