Capítulo 33: Um Homem e uma Besta (I)
— Estou vendo o alvo — disse Marcus de cima da torre de rádio. A chuva batia em suas costas, o vento o pressionava para frente, mas ele apoiava no laço de ferro diante sua cintura, se mantendo intacto contra as forças da natureza. —Ele não parece ser um dos nossos. Está correndo para o Centro de Pesquisa, na parte Leste, dona Clara.
O rádio soou um pouco baixo demais.
— Consegue características físicas?
— Não. — O seu dispositivo facial marcava apenas o calor do corpo humano. Ele não conseguia identificar nada além de vermelho e amarelo no meio da escuridão. — Apenas que ele está se movendo na direção leste. É a segunda vez essa semana.
— Acha que é alguém vindo de fora?
— Também não, senhora. Esse cara fez o mesmo percurso, e no mesmo horário. Tenho quase certeza que sabe o que está fazendo e no momento que está fazendo. Tenho permissão de imobilizar?
Precisava de uma oportunidade. O vento, os pingos na sua capa grossa, até mesmo a luva encharcada tocando o ferrolho e a madeira. Sua ISE nem mesmo tinha sido erguida ainda. Marcus não levantaria uma arma na direção de um civil que não tinha feito nada de errado ainda.
Ainda.
A decisão tomada por Clara foi que ele se mantivesse observando calmamente. Depois de duas horas, o homem saiu pela porta do Centro de Pesquisas se arrastando, com uma perna bem machucada, quase tropeçou.
Ouviu no meio da madrugada os gritos dos Felroz se arrastando à distância.
Idiota, não deveria ter feito isso.
O homem caiu no chão e arrastou alguma coisa com a mão. Marcus assistiu lentamente o homem entrar em um bueiro enquanto as criaturas se lançavam em linha reta, em bando. A quantidade passava mais de cinquenta. Batiam contra as paredes, lojas e afundavam mais ainda o silêncio em uma disputa sem sentido e irracional.
Criaturas como os Felroz só eram perigosas porque andavam juntos. Marcus já tinha perdido a conta de quantos deles tinha abatido enquanto vagava pela cidade ao amanhecer. Pelo menos um desses demônios pretos ficavam vagando pelas ruas, sem rumo.
Atirar na cabeça era mortal para eles. Marcus, no entanto, gostava de acertar as patas para que sentissem o desespero de serem caçadas e abatidas.
Mais da metade da população foi morta por eles. Viu crianças sendo devoradas e idosos arrastados para dentro de lojas em noites sem luar. Ouviu o som dos dentes devorando a carne, e eles se alimentando. E alguns dos moradores de Kappz diziam que Marcus deveria ter misericórdia com aqueles bichos, como se eles fossem ter de volta.
Misericórdia é só uma palavra.
A trava da arma foi puxada lentamente. A ISE foi erguida, sua coronha recostada no ombro, e a bochecha recostada lateralmente no ombro. A respiração naquele dia liberava uma fumaça cinzenta carregada pelo vento e amordaçada pela chuva.
O cano metálico sempre carregava o cinza, só que durante a madrugada, o vermelho fomentava a raiva de seu atirador. Um pequeno ruído, sem um alto disparo, nem mesmo um único estrondo se libertou do cano da arma.
Como se fosse uma agulha tocando o vidro — o disparo havia sido feito.
Um segundo depois, um Felroz foi explodido em pedaços no meio da rodovia principal.
— Menos um. — Marcus puxou a trava para cima novamente. Abaixou a mão novamente para o guarda-mato, e passou o dedo no gatilho. — Sem hesitar.
Durante a madrugada, ouviu-se o grito de dezenas de Felroz pela cidade de Kappz. O motivo de seus berros doloridos? Ninguém soube realmente de fato.
Porém, havia um boato de que havia fantasmas vagando entre os prédios perto da Ala de Pesquisa e do Reservatório. Um fantasma que carregava uma lamparina amarrada na cintura e tinha o rosto todo coberto, apenas um olho no rosto, em uma tonalidade vermelha. Sangue, disseram, era o que escorria de lá.
I
— Bom dia, dona Clara. — Marcus passou bem distante dela e parou na bancada. Alguns parafusos tinha sido remexidos, e seu martelo fora do lugar. — Alguém mexeu aqui?
— Não que eu tenha visto.
De pernas cruzadas e respirando fundo, Clara ligava os dois braços perto da cintura, tentando encontrar um pouco de paz. Tentava meditar e orar pelas manhãs. Quando Marcus ou uma das crianças aparecia, eles não respeitavam muito o silêncio. Não se importava tanto pelo barulho, era o estilo deles.
A noite inteira sem se mexer para não atrair problemas fazia das pessoas um pouco ansiosas pelo amanhecer.
— Alguém mexeu aqui, sim — ouviu Marcus reclamar mais uma vez e sair batendo o pé na direção do outro prédio.
Alguns minutos depois, ele retornou com três pregos e sua escova. Irritado, sempre batia os pés quando andava. No fim, sua raiva ia embora quando se sentava na bancada e as alterações na arma o prendiam a atenção.
Não era difícil dizer que as pessoas tinham seus próprios passatempos. Simone gostava de ler para os mais novos, crianças órfãos que perderam seus pais durante algum momento da infância. Marcus tinha seu afeto pela carabina, a polindo sempre, alterando parafusos e modificando seus parâmetros. Clara gostava de orar durante a manhã. Estar ali, iniciando um belo dia de sol depois de uma noite com chuva e ventos fortes era recompensador.
Precisavam dessa dificuldade para poderem ver a beleza que aguardava após.
O único interesse em passatempo que adquiriu naqueles últimos três dias foi do velho homem usando a roupa avermelhada no meio da rua, sozinho. Caminhavam de uma ponta a outra, dando olhada em carros e caminhonetes destroçadas.
Parecia conversar sozinho, se enfiando entre as janelas do automóvel, e puxando pequenos objetos como canetas, cadernos e livros. Ele empilhava no capô o que achava, e depois descia para as lojas. Sumia dentro delas por longos minutos, mais do que realmente deveria.
— O que fez com o fez com os remédios, dona Clara? — perguntou Marcus da bancada. — E a água, alguma notícia?
— Tripho disse que tem outras dez análises na frente de outros grupos. Vai demorar para ele ver. Os remédios eu dei para Simone, ela conhece alguém que pode sintetizar o pó que acharam.
Ouviu o atirador resmungar e não perguntar mais nada.
Clara observava a loja que Dante havia entrado ainda, esperando seu retorno. De repente, a parede foi explodida e o velhote saiu arrastado para fora à força, com um braço preto e longo tentando agarrar seu pescoço.
Ela se ajeitou na hora. O Felroz brandiu o braço e Dante saltou duas vezes para trás.
Marcus se juntou a ela com sua carabina já pronta. Ele a levantou, mas Clara pediu com a mão para ele esperar.
— O velho ainda está meio quebrado, dona. Vai deixar ele se ferir de novo?
— Não, espere um pouco.
Os dois viram Dante segurar o primeiro braço da criatura, o quebrar numa torção. Desviar do segundo e socar secamente a parte debaixo dela. Um segundo depois, o Felroz parou de se mover. E Dante balançou a mão limpando o sangue preto que tinha escorrido do rombo que deixou no corpo.
Marcus fechou a cara na hora.
— Ele é uma besta, senhora.
— E um homem também — concluiu Clara, dando uma risada baixa. — Pode recolher os suprimentos que ele deixou nos carros, por favor, e levar para Simone?
— Como quiser.
Marcus saltou dali mesmo, tocando a parede com o pé e rolou quando tocou o solo, como se a distância não fosse nada.
Clara continuou observando Dante se mover para outras lojas e retirar mais e mais bolsas, colocando juntas. Marcus o alcançou e tinha dito algo fazendo o velho encará-la. Clara hesitou em levantar a mão, ainda estava sentada na beirada, mas Dante fez sem ao menos pensar duas vezes.
Um sorriso gratificante e um aceno como se nada ali embaixo estivesse em ruínas.
— Te invejo, Dante. — Clara acenou de volta, com o braço bem alto. — Te invejo por conseguir sorrir desse jeito tão honesto.
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