Capítulo 76 - Deinos sauros.
Os seis basiliscos se lançaram de diferentes direções contra a primeira linha de lanceiros. Os homens enfrentaram-nos, erguendo as pontas das lanças. No entanto, os monstros demonstraram agilidade e flexibilidade aterradoras, desviando de todas as investidas, para então contra atacar com suas garras curvas. Olhos, pescoço, articulações, os enormes lagartos pareciam mirar em qualquer lugar que julgassem vulnerável. A primeira linha fora desfeita em questão de minutos.
Em pouco tempo, os que estavam à frente recuaram, temerosos. Acabando por se espremer contra os que fugiam dos basiliscos no centro da formação, que naquele momento pareciam se banquetear com o medo dos besteiros.
Eduardo viu duas criaturas brigarem por uma cabeça que uma terceira arrancara do pescoço de um infeliz soldado. O quarto erguia a cabeça afunilada para o céu, emitindo seu trêmulo som gutural.
Alguns besteiros reagiram, apontando-lhes as bestas. Porém os monstros se moveram antes que eles tivessem a chance de disparar, e logo os gritos se alastraram pelo meio da formação.
— Malditos sejam todos as criaturas de Hewl — resmungou o cavaleiro. Olhou para o tenente, e então para Eduardo. — Gowber, vá para a vanguarda e ponha ordem nesses putos que não conseguem segurar o próprio pau. Matador, você vem comigo. Você, você e você também — disse, apontando a dedo aqueles com quem falara. — Vamos mandar aquelas crias de Canae para o inferno de onde não deveriam ter saído — Concluiu, erguendo a espada em direção ao centro.
Eduardo o seguiu, pondo força nas pernas para que se movessem. Sentia resquícios do terror de outrora.
“Elas usam o temor e o medo”, relembrou a si mesmo, “não pense, apenas mate qualquer coisa que não usar nossas cores”, relembrou as palavras do velho Debret.
Continuou atrás do cavaleiro contra o apertado fluxo de homens que se afastaram da luta. Poucos metros os separavam dos mortais lagartos.
— A todos os homens de manteiga: afastem-se — bradou o cavaleiro enquanto trombava, vermelho de cólera, com os que fugiam e então se lançou contra os monstros.
A espada alva riscou o ar com um zumbido audível. Eduardo viu apenas o borrão da lâmina a se mover com um arco horizontal em direção ao pescoço do basilisco.
A criatura se curvou em um ângulo impossível, e a espada continuou seu giro até os braços do cavaleiro terminarem seu movimento, errando o alvo. Então ela, com a flexibilidade de uma serpente, inclinou seu corpo delgado para trás e então impulsionou-se para frente – abrindo seus dentes e estendendo suas garras – contra o flanco do cavaleiro. Este, no entanto, moveu-se ainda mais rápido. Girou seu braço direito, o qual estava mais próximo do monstro, e acertando a cabeça do basilisco, que soltou um gemido de dor semelhante a um chocalho, antes de ser lançado para o lado pela força do golpe.
O cavaleiro então deu passo para o lado, a tempo de escapar da investida de outro dos monstros. Girou sua espada, acertando um de seus braços finos. Sangue escorreu, rubro como os vinhos antigos da adega do avô de Eduardo. A criatura saltou para trás e recuou.
Eduardo assistia a cena admirado até que um homem trombasse contra ele, fugindo de uma das criaturas, que decidiu-se por mudar de presa e atacou Eduardo.
Ele girou sua arma. A lâmina da haste fez um arco diagonal da direita para a esquerda, errando o monstro, que se arrastou pelo chão como uma cobra antes de avançar contra os pés de Eduardo. Ele saltou, escapando das garras curvas do basilisco, se pôs em uma posição basilar e então estocou com a ponta da haste. Ela atravessou o ar com força, errando mais uma vez a criatura em sua frente, que descreveu um círculo ao seu redor, dessa vez movendo-se como um lagarto, afastando-se alguns metros de Eduardo.
Os homens pareciam ter aberto espaço para aqueles que tivessem coragem ou loucura lutarem. Além de Eduardo, outra dezena de homens continuava a enfrentar as criaturas que atacaram a linha de frente, enquanto o resto se aglutinava em uma massa de medo que se formara entre o centro e o que antes fora a primeira linha.
Eduardo voltou a sua posição basilar, observando o monstro. Estranhamente, não sentia o mesmo temor que antes. Talvez por conta do discurso do cavaleiro, talvez por acreditar que poderia derrotar o monstro em um campo mais aberto. Não importava. Não precisava pensar nisso.
A criatura avançou. Correu por dois longos passos e saltou no terceiro. Eduardo ergueu a haste, na esperança de acertá-la no ar, porém algo o puxou pelos pés. Ele caiu, sendo arrastado por outra criatura. Viu de relance a que havia saltado contra ele atravessar o ar, passando acima de sua cabeça, como também sentiu as garras da que a havia puxado apertarem contra a caneleira.
Chutou, acertando algo duro e repleto de músculos. Ouviu um som de dor parecido com um chocalho e então um peso subir por suas pernas. A haste ainda estava em sua mão. Ele a girou horizontalmente. A arma varreu o ar até acertar algo duro, e então Eduardo ouviu um chiado de dor. Talvez pelas garras do monstro estarem cravadas em suas pernas, este não teve tempo de desviar. A criatura se afastou aos saltos, soltando as pernas de Eduardo.
Ele tentou se levantar, mas uma enorme boca repleta de dentes se abriu acima dele. Teria se fechado contra seu rosto, caso ele não tivesse se protegido com o braço. Os dentes se prenderam nos braceletes. O monstro balançou seu pescoço e Eduardo foi sacudido de um lado para outro. As patas dianteiras da criatura alcançaram seu capacete. Ele ouviu o raspar das garras no aço desgastado.
Com força e extrema dificuldade, ele girou, tentando tirar a criatura de cima de si. Durante o movimento, o monstro abriu a boca e então a fechou novamente, afundando suas presas em uma parte desprotegida pelo aço. Eduardo sentiu os dentes adentrarem a carne de seu braço e então rasgá-la quando o basilisco os puxou.
Uma dor visceral percorreu o caminho feito pelos dentes da criatura. Eduardo gritou, como os homens de antes haviam gritado.
Ele rolou e se pôs de joelhos, girando a haste para afastar o basilisco, que rastejou a sua volta, fazendo menção de outro avanço. Eduardo se levantou sobre suas pernas. Tentou segurar a haste com ambas as mãos, mas não conseguiu apertar o cabo de forma firme. Faltava-lhe força no braço ferido.
A criatura parou seus passos, inclinou o pescoço com um olhar frio e sibilou em seu tom trêmulo. A memória desse movimento causou calafrios a Eduardo. Ele olhou ao seu redor, temendo outro ataque pelas costas. Porém não viu nenhuma outra criatura próxima. Então virou-se novamente, a tempo de ver as garras e as presas do basilisco atravessando o ar em sua direção.
Deu um passo para o lado, deixando a criatura passar por ele, então estocou a ponta em suas costas. Sentiu a resistência da pele escamosa contra o metal e sorriu. A criatura, no entanto, se afastou no mesmo instante. Girou a cauda fazendo-a bater contra o cabo, e pulou para longe.
Eduardo estalou a língua. Não tinha conseguido por força em sua arremetida, não perfurando a carne do monstro, que olhou para ele e sibilou, voltando a mover-se ao seu redor.
Olhou para o lado, escutando outro chiado de dor. Alguns homens pareciam atacar o basilisco que o puxara antes. Um fincaram sua lança no dorso da criatura, enquanto outro tentava cortar-lhe a cauda com um machado e um terceiro pulava sobre ele com uma adaga em mãos.
Eduardo não observou tempo o suficiente para saber como terminaria aquilo. O monstro saltou sobre ele mais uma vez. Dessa vez Eduardo não desviou. Virou o corpo para a esquerda e então girou para a direita, varrendo o ar com a haste.
A lâmina abriu a barriga da criatura, que continuou seu curso no ar, chocando-se contra Eduardo, que sentiu os pés se arrastando pelo chão, mas manteve-se em pé. Girou o corpo e lançou a criatura para o lado, amenizando o impacto. Ela caiu a alguns metros dele, soltando sons guturais de dor.
Eduardo então sentiu uma dor atravessar seu abdômen, como se suas costelas ruíssem tal vigas de um prédio em demolição, e se pôs de joelhos. Ficou assim até algo bater contra ele e jogá-lo mais uma vez no chão.
Soltará a haste.
O monstro – ainda vivo – voltara a investir contra Eduardo. Ele conseguira manter a boca repleta de dentes afiados afastada de seu pescoço. As garras, no entanto, rasparam seu capacete e peitoral, abrindo feridas nas partes desprotegidas. Eduardo esticou sua mão até a cintura, lembrando-se de algo que até aquele momento não havia utilizado. Todo guarda ou soldado as carregavam, embora apenas a usassem para cortar cordas e queijos. Ele pegou o cabo da adaga em seu cinto, encontrando dificuldades para tirá-la de lá. Não conseguia sentir ou impor força com a mão ferida, que parecia úmida. O monstro o pressionava com força. Eduardo podia sentir seu hálito quente e fétido emanar pelas fileiras de dentes pontiagudos – que Eduardo lutava para manter afastados.
Com dedos trêmulos, ele conseguiu retirar a adaga do cinto, e a levou até o corpo do basilisco, que soltou um som parecido com o de uma chaleira a ferver, e tentou abocanhar a cabeça de Eduardo, que a virou um instante antes dos dentes da criatura se fecharem sobre ele, esquivando-se. O monstro retornou seu longo pescoço e pareceu pronto para abocanhar Eduardo novamente. Mas este retirou a adaga da carne escamosa do basilisco e a fincou no pescoço delgado. Sangue rubro escorreu e o monstro se debateu sobre Eduardo, uma das garras adentrou o capacete, rasgando-lhe o rosto poucos centímetros abaixo dos olhos.
Eduardo martelou a adaga com a palma da mão, e empurrou a criatura, tirando-a de cima de si.
O basilisco agonizou no chão, tremendo e soltando seus profundos sons lamentosos, antes de cessar seus movimentos e finalmente morrer.
Eduardo observou o corpo, esquecendo de respirar por meio segundo, até ouvir novamente outro som gutural a sua direita. Outro basilisco investia contra quatro homens, três lanceiros e um besteiro. Sangrava de um largo ferimento em seu flanco. A criatura saltou sobre um, mordendo-lhe a cabeça protegida pelo capacete, movendo seu grande pescoço em um balanço violento. O homem caiu após sua cabeça ser revirada de uma forma não natural. O basilisco logo avançou sobre os outros dois.
Eduardo se levantou, ou ao menos pensou, até suas costelas relembrarem-lhe da dor que sentiam. Ele se curvou sobre si, pondo a mão sobre a barriga. O lugar em que o urso o havia acertado. Olhou para a sua mão, a que não sentia bem. Retirou a luva e sentiu o calor abandonar-lhe ao ver o tom carmesim em que estava coberta. Úmida de certo, com seu sangue que escorria do ferimento do braço – a qual não tinha coragem de olhar, nem tempo.
Virou-se para ver sor Alóis lutar de forma selvagem contra três das criaturas. Uma quarta estava sobre seus pés – corpo dividido em duas partes.
Eduardo, talvez por conta de sua dádiva, além de lutar de forma tão surpreendente, conseguia compreender formas e estilos de luta desde que haviam chegado àquele mundo. Percebera que Caio não levava jeito para espada ou lança. Que Carmen parecia habilidosa com ferramentas pequenas, tais como as agulhas que sempre tinha em mãos. Talvez também fosse com adagas. Que Lohan – o escudeiro – possuía um nível de perícia tão grande quanto sua autoestima. Maior do que os tenentes que seguiam Sir Alóis. E então, naquele momento, percebeu que nem mesmo todos eles juntos conseguiriam derrotar o cavaleiro.
Sir Alóis movia sua lâmina resplandecente de forma tão frenética que o brilho deixava rastros no ar. Escapava das garras, e mantinha a guarda aberta contra as emboscadas das criaturas, enquanto parecia as atrair até o alcance de sua lâmina.
Mesmo assim, os basiliscos desviavam, contorcendo seus corpos flexíveis, enquanto contornavam-no e realizavam fintas, tentando tirar seu foco e atacar no momento certo, como haviam feito tantas vezes com Eduardo. Os guardas cercavam-nos, mantendo-se afastados por alguns metros. Tinham medo da luta, provavelmente, e vergonha ainda maior em fugir.
Com os três lutando contra o cavaleiro, um cortado ao meio, aquele que Eduardo matara, e outro que os guardas enfrentavam, era possível contar seis monstros. Os que haviam atacado pela frente. Haviam ainda mais quatro.
Eduardo tentou se levantar mais uma vez, sentindo a dor aumentar à medida que seu corpo se envergava. Olhou para trás, onde o corpo do urso estava. Não via mais do que a confusão que já ocorria desde o início da luta, e um único basilisco se erguendo acima do corpo do urso, observando a tudo.
Um som à sua direita atraiu a atenção. O basilisco que os soldados enfrentavam havia caído empalado por quatro lanças, enquanto enfiava suas garras na barriga de outro soldado. O monstro caiu com um som de dor pavoroso. O soldado convulsionou no chão por alguns momentos e então também parou de se mover.
Os homens gritaram de estase, o que Eduardo achou por demais perturbador, observando o chão já enlameado de sangue.
Outro som foi ouvido. Um chiado gutural. O cavaleiro havia estocado a lâmina reluzente no flanco de um basilisco. Um outro pulou sobre suas costas, mas Sir Aloís virou-se rapidamente, girando o corpo e deixando passar no ar. No mesmo movimento havia retirado a espada do corpo do primeiro, e logo a fez cortar em um arco horizontal contra o basilisco. A criatura não conseguiu desviar, sendo cortada feito queijo coalho. O corpo continuou seu movimento no ar, caindo no chão como uma fruta madura.
Os brados se seguiram, e o cavaleiro avançou contra o último basilisco que restara. Parecia confiante de que mataria a criatura com um simples balançar de sua lâmina. A criatura se encolhera, sem fazer qualquer dos movimentos espalhafatosos de outrora. Então Eduardo sentiu um arrepio na espinha. Olhou para todas as direções, não sendo capaz de ver nenhum dos monstros.
Então virou-se para a direção do cadáver do urso. O basilisco olhava na direção do cavaleiro. Se distanciara alguns passos para trás e se encolhera sobre as pernas. Se preparava para saltar. Eduardo gritou, não conseguindo ouvir a própria voz devido aos sons do combate. Forçou suas pernas, ignorou a dor em suas costelas, apertando os dentes tão bruscamente que sentiu-os trincar.
Olhou para o monstro, desesperando-se ao ver o enorme lagarto se erguer a mais de seis metros do chão. As garras estendidas, a mandíbula aberta, desejosas de afundar-se sobre carne.
Eduardo correu. Suas pernas pareciam afundar-se e ficar presas no chão a cada passo dado, impedindo-o de se mover mais rapidamente. O ar lhe escapava, sangue pingava de sua mão, sua visão se tornara turva. O rosto fora tomado por um formigamento, como se o sangue o tivesse escapado. O monstro parecia mais próximo a cada segundo. Eduardo gritou, tentando alertar sir Alóis, que virou-se para ver a criatura que estava prestes a cair sobre ele.
“Não pense… ”
Então Eduardo pulou, jogando seu corpo contra o monstro, o impacto fez o mundo girar, erguer-se e cair diante de seus olhos. As garras, as presas, o monstro, tudo o acertou com força e violência. Caiu no chão, sem sentir o impacto. Algo pressionou seu capacete. Um cheiro pútrido invadiu seu nariz e um líquido gosmento se espalhou por seu rosto, junto do que parecia uma língua viscosa. Sentiu uma força tentando virar sua cabeça abruptamente, tencionando seu pescoço. Parecia prestes a rompê-lo. Então sentiu-se livre, repentinamente. Viu o céu azul sendo rasgado por um clarão prateado, que deixava rastros luminosos por onde passava. Viu sua luz e então tudo escureceu.
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